27/12/2020

DePois

É quando olho para trás, para o que ficou à nossa frente, que compreendo tudo. Compreendo que aqui não é um lugar de cântico dos cânticos antigos. Aqui é um lugar feito de quimeras pelo que o amor é bordado em pontos de nuvem e banhado em resquícios de ilusão.

Talvez, olhando agora distanciado do momento exacto em que te permiti saires de dentro de minha pele, tu não sejas mais do que um lugar místico onde permiti que a minha insanidade se repousasse pelo tempo necessário para eu (re)acordar por dentro da vida materializada na (im)possibilidade.

Eras um lugar de cântico enquanto eu sonhava num sono inquieto. 

És agora lugar de canto do cisne que parte, enquanto eu vivo. 

20/12/2020

ton odeur brule encore sur ma peau.


je suis presques a devenir en cendres par dedans. 

nOrTejO

respiro fundo enquanto atravesso a ponte. por cima do rio. por cima da neblina que acorda o nascer do dia e que traz, por dentro, um manto inteiro de possibilidades. 

sinto o vento gélido que acaricia os primeiros raios de sol. sinto o sangue a ferver por debaixo da pele que arrefece quando o vento chega até aqui. sinto o suor a percorrer-me o corpo. um tremor ligeiro que se apossa do ventre. uma angústia deliciosa. 

vou vendo como o meu lado do rio fica para trás. já não posso recuar. não há como voltar ao lugar de onde se partiu agora mesmo. quando inicias o caminho, deves manter-te no caminho. 

demoro-me neste pensamento e revejo o princípio da história. 

hesito. recomeço. suspendo. recomeço. acelero. recomeço. 

atravesso o tempo o mais depressa que consigo para poder minimizar o atraso que se adia em mim. conto chegar no tempo certo mas o tempo ilude-me na (in)certeza de estar a tempo. como a manhã que emergia do frio e finalmente acaba por se entregar nos braços do calor improvável de dezembro.  

é no teu olhar que encontro a imensidão da curiosidade. o fenómeno incompreensível da necessidade de compreender tudo o que acontece em nós. o mundo é um lugar demasiado grande para ser compreendido em todas as suas dimensões. assim como nós. assim como eu que tão pouco sou no (teu) mundo. 

meço as palavras. não quero que me saibas. 

ignoro os gestos. quero que me vejas.

sinto a leveza das cores apesar do negro que crês habitar em mim. sinto como se o mundo inteiro coubesse no teu sorriso. na palma da tua mão que hesita em tocar-me a face. 

acredito que o mundo para de respirar no momento em que me permites ver-te. se fosses um livro, terias ainda muitas páginas por abrir porque, na verdade, há mais para além do universo de pecados que te assolam e te fazem desfazeres parte do caminho. e é como se, por vezes, esse fosse o lugar do teu despotismo.

o rio desaguou em mim com a dimensão de um oceano e fiquei com tanto para compreender. ou talvez tanto para explicar. acordei, por dentro da noite que entrega o começo do dia, com um manto imenso de palavras por ouvir. a tua história em gotas de rio ou em pedaços de lixo ou em ideias de luxúria ou em espaços por preencher ou em (des)amores adiados. desaguaste em mim como um livro que precisa ser escrito. 

enquanto atravesso a ponte de regresso ao lugar de onde inicialmente segui, suspendo-me na ideia de que talvez seja em ti que falta construir uma ponte. o lado certo do teu lado do rio. o lado exacto da tua fragilidade. o manto de possibilidades que ainda permanece em ti. a ligação entre o que te faz e o que te desfaz. 

13/12/2020

inDifErenÇa

não há nenhuma semelhança entre nós. não há nada que nos aproxime porque tudo é a tese e a sua antítese. o verso e o reverso. o poema e a prosa. a água e o fogo. a madeira e o carvão. 

não te posso dizer o que sou de verdade. o que eu sou não tem lugar no que tu sabes. o que tu aceitas não tem lugar para o que eu virei a ser depois. 

porque te permites as perguntas se as perguntas trazem em si as respostas e as respostas tu as colocas nas mãos e as feres de palavras que se deixam ser moldadas na/pela/com indiferença de sentido quando o sentido parece/é tão distante, inevitavelmente oposto, do caminho em que te colocas. 

as perguntas sem resposta deixam de ser, essencialmente, toda e qualquer coisa porque sem resposta, uma pergunta deixa de existir em si mesma. as perguntas existem pela mera razão da existência da dimensão incomensurável das respostas que podem ser dadas.

respondo a todas as perguntas. mas fico a queimar por dentro quando as respostas não se ouvem pela razão apenas de não serem as do lado certo. as do sentido certo. as do caminho certo. respostas que não são ouvidas, deixam de ser respostas. fico a ouvir por fora o que se desfaz nas mãos e que depois se desfaz por dentro. 

as palavras têm o poder de nos fazer desfazer. a indiferença é hábil na condução da alma ao desvio do lugar onde as perguntas se permitem acontecer. se há indiferença, não há lugar às respostas que existem em mim. que são de mim. que sobram do que eu sou. 

não te devia ter respondido. poderia ter deixado a pergunta solitária, a navegar no caminho, até se poder desfazer com o tempo no mar inóspito das perguntas que perdem a sua razão à razão de não terem sido respondidas. 

as respostas que existem em mim, para as perguntas que possam vir, são da minha verdade e a minha verdade não te é tangível e remete à indiferença e a indiferença não me cognoscível. e assim, não seremos nunca nada mais que eu o carvão, a água, a prosa, o reverso e a antítese e tu sempre a tese, o verso, o poema, o fogo e a madeira. 


28/11/2020

rAzÃo

Não compreendo o motivo pelo qual fico suspenso nesta espera sem sentido 

pois sei 

com toda a certeza que cabe dentro das coisas certas

que nunca seria possível chegares. 


Não compreendo porque me permito o engano perfeitamente desenganado

e me alimento dele para respirar um breve momento mais

enquanto invento motivos para me esquecer de parar.


Não compreendo porque este lugar chegou até ao espaço de ti

que sentido nenhum fazes dentro de mim

mas que o olhar por dentro de tua voz me tocou como se fosse ferro 

e eu 

apenas fosse feito de pó. 

 

Compreendo 

agora 

porque me permito permanecer a dançar nesta doce ilusão porque é enquanto a (des)verdade me mantiver à tona 

eu me suspendo num lugar em que é permitido continuar a respirar.

16/11/2020

eScaRpa

Desenho te na linha das escarpas

de frente para o lugar onde as ondas chegam 

para gritar -

para cantar - 

para erodir - 

para esculpir -

para devastar - 

para recriar - 

para afogar - 

para libertar - 

a rebentação das ondas que suportam o impacto da tua ausência nas rochas que enegrecem no sabor do sal.

aguardo que olhes para mim. não. que me vejas. não. que me saibas. não. que me reconheças. 

lanço-te do cume das rochas e assisto à tua queda. não verto nenhuma lágrima. não fecho os olhos. apenas sigo no grito das ondas, atrás de ti.

lambe a morte de dentro da minha vontade e conta-me uma história de adormecer. 

eu só queria que pudesses tirar-me de dentro de mim. uma vez apenas. seria o suficiente. 

o mundo não pára lá fora. sabes bem que nada pode parar. 

sabes também como a vida tem apenas um destino e que no caminho até lá não podemos deixar de seguir. em frente. 

leva a vontade de dentro da minha morte e adormece a lado da minha vigília. 

15/11/2020

Aspettami

fico à espera. 

de encontrar. de saber. de chegar. de confirmar. de entender. de parar. 

espero enquanto esperar for a forma de te encontrar. de me saber. de sermos, de certa forma, uma e a mesma única coisa. como se eu só pudesse ser, verdadeiramente, depois de te encontrar. 

fico à espera na esperança de chegar até ao lugar certo do caminho que não escolho, que me escolhe, que me espera na espera em que me encontro perdido. talvez esteja à espera para me encontrar. para saber o resto que falta de mim. para assegurar. para deixar de estar sempre a sentir-me suspenso nos teus dedos sem que realmente me saiba nas tuas mãos. 

vou na demanda mas permaneço parado. quieto. num tumulto insaciável que aguarda serenar. porque te sei e porque espero a esperar saber esperar da maneira certa. fico à espera do teu encontro mas não te tenho ainda em mim da forma como espero poder esperar ser a certa. a única forma certa de esperar.  

talvez não espere o que espero mas sim o que esperava esperar quando a espera se torna profundamente tudo o que sou. ou talvez eu seja tudo o que posso ser sem ser ainda, ou ter já sido, e a espera do que se pode encontrar, depois de mim, seja o que me consolida na espera(nça) de chegar a ser exactamente o que sou suposto ser. em ti. depois de ti. contigo. sem mim? comigo?

fico à espera. de entender tudo o que falta entender. de confirmar o que falta confirmar. de chegar onde é suposto eu estar. de saber o que eu sou. de encontrar as tuas mãos. de parar junto a ti. 


14/11/2020

NoRTada

procura por mim no vento que vem de norte



estarei no lugar das ondas. 

11/11/2020

 A vida começa a terminar no momento exacto em que compreendes o significado que reside dentro da impossibilidade. 

10/11/2020

 Há um cavalo negro a correr desenfreado por dentro do meu peito. 

08/11/2020

EucaliPto

 As paredes exalam um aroma a eucalipto que escorre na ponta da tinta em que alguém escreveu o lugar do mundo.

Corro, descalço, com a pele a beijar a lama fria, enquanto o inverno encontra o lugar certo dentro do poema que se faz em mim.

Meu corpo parece permanecer parado no mesmo lugar enquanto, na verdade, corre até a pele cair em lágrimas quentes de suor que lavam a certeza da queda premente. 

O chão permite-se cobrir das folhas vermelhas que se precipitam dos plátanos cansados que seguram as orlas do jardim, enquanto cantam o último suspiro. Como se fossem cisnes preparados para partir.

As paredes em torno deste jardim contam uma história. Basta que feches os olhos, que abras as asas e o peito, e poderás ler tudo o que ainda não foi escrito. Como uma viagem que se começa. Como um poema que ainda só se sente. Como um caminho que, temerosamente, se enceta. 

Tudo a exalar, na pele que navega os lugares de lama, o aroma triste de um eucalipto que chora. 

26/10/2020

gritas

(sem que percebas)

e é só lodo que te sai na voz.

gritas

(sem que sintas)

e é só fel que te lambe os lábios gretados.

morres

(sem que saibas)

no lodo que apodrece no grito que te dilacera inteiro por dentro.

seguras tua mão na minha como se temesses ficar sem chão. minha pele diz-te que não há futuro possível aqui. tua voz diz-me que teu corpo mente perfeitamente na ilusão da noite que arrefece quando o outono se deita sobre o espaço que sobra entre o que falta dentro da (im)possibilidade.

05/10/2020

Em breves momentos, a praia fica deserta. De tempo. De pessoas. De restos. 

Permanecem, aqui e ali, apenas os poucos corpos que resistem ao ar que arrefece a pele. Rapidamente se transformam em vultos que se deslocam no aro dourado que acaricia a areia enquanto o sol, lento e lascivo, se recolhe por entre a rocha negra. 

No mar, afogam-se orações e memórias.

Deixas que tuas mãos mergulhem no toque salgado das palavras de abandono entoadas no segredo do silêncio do crepúsculo. 

Gaivotas chegam em voo raso, lento, sereno, para descansar do calor tórrido que fervilha nos horrores que residem nas entranhas da cidade. Deitam-se sobre o lugar em que o calor se demora a abandonar a areia fina, mesmo junto ao silêncio que preenche o vazio que salga o interior de tuas mãos. 

Não há medo nem temor aqui. 

O deserto que cabe dentro de ti, é tão fundo quanto o mar. Tão lento quanto o bailado do sol na areia.Tão serenamente dilacerante quanto o voo triste das gaivotas cansadas. 

Em breves momentos, a praia fica deserta. Já não há medo aqui.

escavo

por mim adentro

e

é apenas um silêncio

estéril

o que se pode encontrar.


silêncio feito terra 

árida

desfeita

na severidade do deserto.


nada mais

a encontrar.

 cala-te.

já não suporto o odor da tua voz a desenlaçar-me o sangue. 

03/09/2020

No vento que chega com o fim do dia, sinto como a voracidade de baco toma posse do lugar que antes era o lugar de mim. Flutuo na pele. Desloco-me do corpo e vagueio, noite adentro, como se desenhasse o mar inteiro nas mãos que te (quase) tocam. Entoo uma melodia que mais se parece com uma oração. Repito teu nome como se a palavra pudesse ser a única salvação possível quando é o ar que se desloca de dentro do corpo. Danço na apneia que começa precisamente no lugar onde te deixei da última vez. As palavras seguem nas ondas das marés que entoam a canção que se deixa a repousar na pele. Termino o dia com o corpo vazio e ébrio, na ânsia de se poder salvar no caminho de regresso ao lugar em que sou (quase) eu. 

31/08/2020

 tocas-me com a voz caída sobre o chão. 

é asfalto velho o que nos rodeia. 

podia haver terra e árvores mas não. nada mais do que a pele a colar no asfalto e a esperança a rasgar-se na pele enquanto caminhas até mim. 

fecho os olhos. pego na lâmina que guardo dentro das mãos e desfaço-te. dura um momento breve por isso não receies. prometo que não demoro. prometo que desfaço tudo num instante. prometo que não vai sobrar nada de ti sobre a estrada vazia no calor que fica do sol de agosto. 

toco-te com o sangue a cair-me das mãos sobre teu corpo velho caído sobre o chão que é só asfalto. 

16/08/2020

Suspendo o tempo na espera que o tempo possa ter tempo de ser tempo.

Espero o tempo à espera de me tornar o lugar que espera pelo tempo que não espera.

Espero, suspenso no tempo, a ser espera de poder vir a ser um lugar a tempo. 

10/08/2020

pOinT

 há um silêncio que cresce em mim

permanece sobre mim

respira por mim

quando chego até ao lugar em que tu estás. 

Sento-me na madeira enegrecida pelo tempo ido e descarrego, aos pés, tudo o que me soterrava no caminho até aqui. 

Olho em volta com o olhar de quem aprendeu a poder ver o que há além do que é aqui - a ver o que há de divino - e esqueço todos os que me circundam. 

Escuto as pessoas, reparo nas suas sombras à luz da vela, escuto as suas vozes sussurradas, imagino os suspiros das suas angústias e da expiação dos seus pecados - latim orado na boca de quem sorri perante todas as coisas do mundo. 

Sinto o cheiro velho que as igrejas trazem dentro de si - no seu âmago visceral - como se fossem lugares que nunca terminam e onde o tempo - por mais que se deseje - nunca passa. 

Oiço o ranger da pedra e o frio da madeira. Sinto - nas mãos - as lágrimas que quedam por dentro enquanto meu corpo parece mais leve dentro de si mesmo. Um corpo na ilusão de ser - naquele momento - menos puído, menos flagelado.

Escolho olhar-me de longe do olhar dos outros que vêm o que querem ver. Algo em mim quer perecer como Tu - aqui a meu lado - guardado aos pés de tua mãe - sozinho - no caminho mais terno e tenebroso da humanidade. E nós todos a olhar-te, a sentir-te, a saber-te por perto, mesmo não estando aqui - ou em qualquer lugar em que possamos repousar os pés feridos. 

Quero acreditar que guardas em ti todos os que já partiram de mim. Quero acreditar que o teu abraço terá espaço para me receber, terá tempo para me escutar - mesmo enquanto o meu silêncio for tudo o que seja possível existir em mim - e paciência para esperar que eu possa parar de chorar - por dentro. 

Queria poder ser mais do que o que perante ti hoje represento, que perante o que se passa no meu mundo, significo. Queria poder ter sido melhor, ter feito mais, perdoado mais de mim. Queria poder estar - hoje - perante Ti sem lágrimas nas mãos, sem feridas na alma, sem a dor a pesar-me no corpo. Queria ter podido vir ver-te a dançar e a cantar - sem medos. 

Mas nada disso encontrarás em mim.

Estou despido sobre as cobertas do mundo. 

Estou integralmente despojado na madeira antiga e fundo-me com as suas rugas e suas asperezas, seus desesperos e suas esperas. Sou a parte mais negra do granito que acompanha os passos do chão desta casa. 

Perdoa-me mas não sei ser mais do que isto. Procura em mim - se quiseres - a certeza de que o medo não ocupará mais espaço na minha alma enquanto eu me sustenho na pureza da incerteza que faz de nós as tuas - o resto eterno das tuas  - mágoas. 

Perdoa por não conseguir ser mais, por não ter podido ser mais.

Permaneço quieto a olhar o segredo que as paredes sussurram dentro de si. Guardo-o em mim - no lugar mais fundo de minh'alma - para que nunca o venha a esquecer. Seguro o tempo nas mãos frias e percebo que o tempo não pode ser mais do que o que se espera que venha a ser. 

Sento-me, na Tua presença, despido de mim, com as mãos cheias de lágrimas e imploro - enquanto implodo - que um dia - talvez um dia - eu possa chegar até onde é suposto ser. 


Igreja das Carmelitas

Porto 

Março /2017


08/08/2020

 se começasse de novo,

neste preciso momento,

não saberia por onde ir.

reCogNitiOn

reconheço que não sou mais do que a evidência da tua humildade

que venho de um lugar que estava reservado nas coisas que pertencem ao passado 

- talvez não se deva voltar ao passado -

onde foste buscar-me pela mão

agora

deixas-me suspenso no limite da folha

quase a cair da tinta

da letra insegura da palavra de um poema que não chega a ser escrito.


reconheço que não sou mais do que um lugar de abandono

mas foste tu quem me deixou humilhado na suspensão do passado revivido na palavra quente na tinta negra nos dedos de uma ilusão. 

17/07/2020

o calor expande-se
como asas negras,
dentro do meu peito.

15/07/2020

You've been so long
Well it's been so long
And I've been putting out fire with gasoline
Putting out fire with gasoline

Cat People
Putting out fire with gasoline

11/07/2020

fecho os olhos
dispo a roupa
seguro os pés despidos na madeira aquecida pelo inferno do verão. 

anseio teus dedos a contornarem meu nome
a desfazerem-se na minha pele.

beijo-te
no silêncio perfeito 
num momento de apneia em que o mundo inteiro desaparece
por breves segundos

fecho os olhos.
mais nada existe agora. 
Passam por nós os anos que o tempo não permite fazer parar de correr. 
A vida como que voa, como que se desfaz, como que mergulha nas brechas e farpas da madeira antiga que te edificou na memória segura da minha solidão incontornável. 
Reza por mim quando teus pés tocarem nesta madeira. 
Reza por mim quando chegares a casa. 
Recordo a tua voz enquanto escrevo o teu nome sobre as linhas invisíveis da minha estreita capacidade de te manter viva por dentro. Fecho os olhos e toco as asas de corvo que viviam ansiosamente nas linhas do teu cabelo. 
Quando chegares ao lugar em que não devias estar, recorda-te de mim. Não me permitas ficar no abandono que se sente no calor infame que invade a cidade suja. 
As cordas que entoam no átrio frio da igreja conduzem-me até ao passado que deveria ter sido mais do que nos foi permitido ser. 
Naquele dia, teria trocado a minha vida pela tua. Mas a verdade é que não há mais aleluias e não vais poder rezar por mim. 
As palavras vão-se tornado cada vez mais o silêncio que vive dentro da noite. Vão-se transformando no absurdo do obsoleto. Na insignificância que reside dentro da insuficiência. 
Talvez me afogue na minha própria angústia, em breve. Ou talvez encontre formas diferentes de respirar dentro de mim.
Questiono se estarias aqui, se eu pudesse ter trocado tua partida pela minha. 
Se ficarias a aguardar por mim.
A velar por mim.
A temer por mim. 
A procurar encher o vazio incomensurável que habita a noite que é inteira em mim. 
Perdoa se já não sei falar contigo. Se o silêncio me abraça com tamanha força que me leva na fraqueza. 
Perdoa se me esqueço de viver.
Perdoa se me continuo a agrilhoar e não sou merecedora de estar aqui. 
Posso apenas prometer-te, enquanto minha voz ressoar nas paredes frias desta igreja vazia, que vou continuar o caminho como se estivesses aqui. 

30/06/2020

O sol crava na pele a dor adiada pelo tempo esquecido nas coisas que ficam por dizer.
Bramem as marés que não regressam à praia do teu abandono.
As sombras dançam a dança que emana da tua voz enquanto me imolo por dentro. Até que tudo passe. 
O vento canta caricias nas folhas das árvores doentes, como canções de embalar a solidão.
Na areia, hesito cravar o meu necessário sepulcro. 
No azul perdido do céu que me cobre, anseio depositar minhas asas.
No fim deste tempo, terei terminado meu lugar em ti. 

27/06/2020


Pode o passado devolver-nos o presente?

Um regresso a casa, às arrecuas, pode levar-nos de volta ao caminho?

Se dermos por nós a andar para trás, não estaremos, na verdade, a andar de encontro ao que vem depois?

Hoje somos, talvez, o resultado do ontem e a definição do possível amanhã. Se não soubermos regressar, recuar, voltar às origens, não nos saberemos reconhecer no lugar de agora e jamais saberemos compreender o que nos vai levar no caminho do amanhã.
Somos o que somos e somos tudo o que nos fez ser até este momento em que somos o que está por detrás do pano que cobre o palco incomensurável da vida.

Regresso a casa para me lembrar onde estou, agora, e para onde vou, depois. Às arrecuas, para chegar mais perto.

15/06/2020

rEpTo

seguro a ânsia nas mãos enquanto meu corpo inteiro se incendeia. 
penso como seria fácil levar tudo até à aresta do abismo, fechar os olhos e deixar-me cair. 
como seria rápido, breve, intensamente imediato, atirar tudo para o limite que vem com as coisas mais simples e ver tudo desaparecer na manifesta impossibilidade de retorno. 
penso como seria tão docemente inequívoco entregar tudo nas mãos do impulso e permitir ao desejo queimar tudo. até não poder sobrar rigorosamente nada. 

"Amamos mais o desejo do que o ser desejado"dizia Nietzsche. Amaremos verdadeiramente o desejado quando o desejo é o que nos consome por dentro e nos alimenta?
será o desafio de querer ter o que se deseja, o que inevitavelmente se impõe à alma? 
ou pode a alma ser o que se impõe à angústia que reveste a pele do corpo? 

és tu quem eu desejo ou o é o desejo que tenho por ti o que eu verdadeiramente desejo?

arrisco chegar próximo de uma prece...uma que me serene as chamas por dentro, que me devolva a mim, que me recoloque no lugar de ser.
desafio a impossibilidade da verdade materializada no momento certo e procuro forma de remeter tudo o que desejo para o lugar mais distante da minha pele. 
pego no fogo que me devastava por dentro e queimo tudo, 
os pensamentos
as imagens,
a ânsia, 
a tentação, 
a névoa,
os sentimentos, 
a certeza das tuas mãos, 
na distância que só quem precisa aprender a amar sabe encontrar dentro das cinzas de uma solidão esmagadoramente essencial.  

MaTeriA

Há uma melodia que exala do ranger da madeira destas escadas velhas. Faz lembrar teu nome. 
De cada vez que alguém por aqui passa nos passos, 
despercebidamente, 
seguro-me diante da porta. Fechada. 
Antecipo-me ao vazio que só se pode encontrar perante uma porta que abre para ninguém. 
De cada vez que as escadas cantam, é teu nome que eu ouço. É tua voz que eu escuto. É teu chegar que me aparece na utopia. 
Fecho os olhos no momento exacto em que quem passa, não para. Em que quem passa, segue. Em que quem passa, não fica do lado que fica no lado oposto desta porta fechada. 

Há uma melodia que nunca se completa. 
Um chegar eternamente adiado. 
Uma madeira que envelhece suspensa por dentro do ranger da minha exasperação. 

07/06/2020

Pinta-me de vermelho enquanto te carrego. 
Desenha-me no teu peso e enterra-me no ar. 
Tuas palavras são determinantes, uma sentença. 
Tua voz, condenação perfeita
Teu silêncio, o crime insigne. 
Rega-me de labaredas enquanto te carrego. 

Desapareceremos os dois. 

27/05/2020

Atravessas, descalço, a ponte de pedra que te aparta do dia que foi, em si mesmo, tumulto.
Inalas o silêncio insuportável da noite quente por dentro do corpo lânguido e sentes como as paredes brancas do quarto velho se encerram sobre ti.
Cada segundo que passa, a confirmação de que estás imerso na incontornável imensa comiseração que habita o deserto pela certeza de que nada, aí, pode chegar ao momento certo de terminar.
E é deserto o que a noite hoje te traz.
Vigil, tacteias o escuro que só se encontra por dentro das sombras que abraçam os sonhos lentos, e entoas uma qualquer prece que te possa conduzir ao lugar certo.
Ingénuo, seguras a languidez na superfície da pele enquanto as paredes desabam.
Atravessas,descalço,o deserto que se instalou, lento e quente, dentro da insónia que te beija na escuridão do quarto caído.

26/05/2020

asPeTTa

por vezes,
esperar é uma coisa doce.
outras vezes,
puro fel.

esperar,
por vezes, 
é uma alegria nas mãos de uma criança que aguarda, 
ansiosamente, 
a sua recompensa.

e esperar, 
por vezes,
é ter a alma agrilhoada em correntes de ferro 
enquanto corpo se move no innuendo de uma liberdade iludida no vulto de uma quimera.

esperar,
por vezes, 
é lugar onde permanece uma angústia incerta,
uma incerteza angustiante.

esperar,
outras vezes,
é um lugar devasso onde não cabe a esperança, 
a paciência, 
ou a compaixão. 
mas,
por vezes, 
é um lugar infinitamente paciente onde não cabe a pressa dos dias que se dissolvem. 

esperar, 
hoje, 
é uma sensação que perdura pendurada na dor
a ver o tempo imenso a pesar na tão próxima
iminência 
de tudo poder terminar 
assim
abruptamente 
e depois
ficar tanto por ter sido. 

24/05/2020

as palavras que ficam por dizer, não são mais do que as penas caídas dos pássaros que fogem da solidão que habita o lugar de silêncio imerso no peso da noite vigil
nasce,
no lodo,
a imensa possibilidade da vida
terra, água, húmus, musgo,
restos mortais do outrora vivido agora a escorrer nas paredes frias
e lentas,
do lado mais pantanoso da vida.
escorre-nos
pelas mãos
o elixir do tempo
ferido.
os telhados anunciam o norte
as andorinhas indicam o caminho para sul.
respira,
no lodo,
a necessidade do regresso.
a casa.

18/05/2020

Teu corpo desfeito,
preso na madeira velha
sob as ondas do mar triste
que te leva na vida o último fôlego.

Teu olhar
terno e decidido,
entrega-se sem se render
e rende-se sem se entregar.

Nas arestas de Teus lábios
permanece a certeza da constância,
a constância da certeza,
o limite do amor.

Tuas mãos rodeiam as estrelas,
seguram o tempo no espaço aberto
tocam a pele do sangue
num gesto eterno de perdão.

Teu corpo
o testemunho
Tu'alma
a confirmação.

Nasce de tua dor,
paz e luz e
de teu olhar,
caminho e sentido.

Fazes-te o mar inteiro
no momento do abandono.
E regressas,
no mistério da alvorada,
com o suspiro da vida inteira por dentro.
Ouve minha voz enquanto te mostro o que ficou por dentro das linhas de arame negro.
Há uma besta que brame seus anseios no lugar onde a terra encontra um braço de água.
A imagem de ti suspensa no meu olhar já vazo, é o lugar onde a tinta se derrama.
Ouve a besta que me grita no desejo e me desarma o corpo no arame que se desfez na água pintada de negro.
Sente a besta que se perde em mim. 

10/05/2020

fico sentado na estrada húmida a ver minha mente desfazer-se dentro da chuva de maio.
a alvorada insistiu em levar-me pela mão até ao princípio da alegoria. até ao lugar que é o momento em que desejava, 
ardentemente,
perder-me 
verdadeiramente.
passei pela vida a caminhar no cristal fino da inquietude que dança rasgada sobre o basalto que se faz ser base sob meu caminho de lava e de vidro.
procurei tentar saber sempre mais do que o que era apenas visível aos olhos fechados, enquanto a água me lavava o corpo da angústia de se saber ser algo que um destino qualquer escreveu com tinta dourada nas linhas desfeitas da estrada molhada.
fico sentado com o corpo dormente enquanto a pedra se transforma em vidro,
enquanto a chuva se encontra com o fogo,
enquanto o vidro se entranha nas linhas da pele, 
enquanto a minha mente se entrega ao ardor.

deixo-me a arder,
até que a história termine.

09/05/2020

sibila a água
no corpo que é estrada
na estrada que é caminho
no caminho que é lugar
no lugar que é certeza
na certeza que é tempo
no tempo que é palavra
na palavra que é segredo
no segredo que é deserto
no deserto que é possibilidade
na possibilidade que é inevitabilidade
na inevitabilidade de ser
a chuva
e da chuva saber a sangue
e do sangue saber a lágrimas
e das lágrimas saberem a distância
e da distância saber a confirmação.

sibila a chuva por dentro do vento que é noite dentro de um sonho ébrio.
Sento-me sobre ti
a segurar o mundo por dentro
da extremidade mais distante
na pele

Abraço-te sob o corpo
enquanto o tempo se torna água
e a água se torna finitude
na pele

Toco-te nos lábios
e sinto-te por dentro a navegar
o lado mais estranho que me habita
na pele

Guardo teu nome
dentro da fé
que fica a suster-se aqui.
Despida.



Esta é a confirmação 
absoluta
da inevitabilidade 
da queda
que fica 
(in)sustentada
na finitude 
do por ser.

02/05/2020

deSencoNtro

podia começar a história que te queria contar, pelas letras que se cumprem na palavra em que te guardo. 
escolho começar exactamente no lugar em que te confirmo. no lugar onde agora descanso o sentido. na margem certa do rio.
podia dizer-te que debaixo desta luz, 
morna e terna, 
consigo ver tudo melhor. aqui, neste lugar onde tu eras só tu e mais ninguém tinhas que ser, e eu era só eu mas era, ainda, a possibilidade do lugar onde o rio poderia repousar.

se for um lugar de encontro o que eu verdadeiramente procuro, porque é que não consigo parar de caminhar?
pode o encontro encontrar-se no caminho daquele que não cessa de caminhar?
pode o caminho levar ao encontro mesmo se o encontro se desencontrar no caminho?
posso pedir que o caminho possa mudar e que o cansaço possa não vencer a guerra que acontece em mim de cada vez que o fogo me faz recuar, mas a verdade é que o caminho não cessa de ser caminho e a demanda não cessa de ser o caminho em si. 

podia começar a história do que acontece em mim, deitando-me sob a luz de tuas mãos, mas aqui, nesse preciso lugar, reside a certeza de que 
se me tocares me desfaço em cinzas 
se me segurares me emolo até desaparecer 
e só restaria a possibilidade eterna que permanece imóvel na linha ténue que divide a verdade, do lugar que reservei ao inferno que habito. 

se o verdadeiro significado reside no aprender a tocar os limites mais profundos da vida vivida, onde fica a possibilidade do encontro do lugar certo para o encontro se o encontro é, na verdade, tudo o que acontece em mim enquanto navego os limites das arestas do caminho de minha vida sem nunca tocar o fogo que arde nas margens do rio que desagua nas tuas mãos abertas.

29/04/2020

tira-me da roupa, 
amor.
despe-me até eu ficar desprovido de tudo o que me é em demasia. 
roda em torno de mim até que a fúria da vida se encha inteira de minha mansidão e aprenda a parar.
preenche-me de noite. depois vaza-me até caber o dia inteiro dentro das ruas que são teus olhos e o meu sonho.
descobre-me, 
amor, 
até que reste pouco
que meu tempo já está surdo e quase, mesmo quase, a chegar ao seu fim. 
seu eu morrer, 
amor, 
segura-me na alma, 
respira-me na ausência, 
despede-te de mim em risos e melodias, 
leva meu corpo por dentro da tua memória até que só sobre o pó e eu permaneça inteiro do lado que fica aquém do conflito do momento que me fez saber a verdade do mundo. 
tira-me de dentro de mim, 
amor, 
e faz-me livre enquanto beijas a minha vida. 
deslizo para a linha do porto que me amansa
e o rio diz-me que faz falta o mar por dentro.
resvalo na incerteza do amor à memória do que não esqueço
e o mar canta-me um poema de abandono.
mergulho na boca inteira do mundo que sonhei
e o tempo abandona-me na falta do poema. 
dispo-me do que faltava antes de ter chegado  
e invento a antítese de meu desespero. 
é vã e lisa a linha da mansidão do porto 
onde meu rio repousa até o mar ser tudo o que fica da memória de um abraço.  

23/04/2020

pesa-me o corpo submerso no peso do dia.
sento-me sobre a beira da janela à espera,
pacientemente,
que a noite passe.
não a oiço no silêncio que faz por dentro de mim. não a vejo na imagem que tenho dentro de ti.

deito-me de costas no chão de madeira fina e espero que o pó me cubra.
sinto teus dedos tocarem minha pele, tão leves como se fossem palavras que se dizem no vento que chega antes das marés de Setembro.
imagino-te deitado a meu lado, como se fosses o prolongamento de meu corpo. como se fosses a continuidade da minha certeza incerta. como se pudesses ser uma frase solta num poema aberto.
sinto como aqueces o pulsar do sangue que quase morria em mim e como o meu corpo começa a dançar submetido à tua devassidão.
ou será a tua devastação?

espero o momento exacto em que começas a cantar-me ao ouvido.
tua voz pousada sobre minha nuca,
tua melodia a descer-me sobre a pele das costas,
tuas mãos a desertarem por dentro da minha alma despida.

tudo o que acontece aqui, fica sob o peso da noite que espera,
pacientemente,
que uma janela se feche.

22/04/2020

se eu pudesse escolher

se me fosse dada a possibilidade de escolher entre o céu e o inferno, hoje escolhia o inferno
escolhia deixar-me queimar até ao último fôlego, 
decidia permitir-me rasgar até ao ultimo milímetro de pele
deixava-me dançar nua até perder o controlo
perdoava a minha incerteza e caminhava descalça até cair desfeita em cinzas.

se eu pudesse escolher entre o feio e belo, hoje escolhia o feio
deixava-me corromper até não sobrar nada da minha alma
permitia-me aniquilar até não ser mais do que pó ao abandono da chuva de abril
pintava-me de cinzento até desaparecer por completo por dentro da náusea do mundo
desfazia-me de tudo e deixava só o erro

se me fosse possível escolher entre eu e tu, escolhia o eu
deixava-me caminhar as estradas da minha ilusão
desfazer-me em lágrimas surdas até me ouvir cantar
entregar-me ao prazer infinito da ausência de critica
deixar-me vestir de pecado e caminhar pelas páginas do teu livro

se me fosse dada a liberdade de escolher, 
escolhia chegar cada vez mais próximo de ti
enquanto me afastava.


11/04/2020

priMus vEr

Março está a chegar ao fim. Ainda nada terminou mas tantos outros momentos já iniciaram a sua marcha. A primavera foi anunciada antes das chuvas de Abril e está sentada entre nós. Aguarda, pacientemente, o momento em que possamos parar para a vermos. 
Hoje sou como uma criança a dançar no campo de flores que sempre residiu dentro de minha pele. 
Calcorreio as pedras da calçada, danço no ar que beija as copas das árvores do jardim, pinto-me do vermelho que repousa na madeira antiga dos bancos. Atravesso as gentes até chegar à beirinha do mar. Aí, devoro-me na contemplação do tempo e agradeço o que a vida me deixa ficar nas mãos, todos os dias. 

moMentO

Diz-me, onde fica a verdade? 

Onde fica quando tudo o resto parece não ser mais do que um cenário idílico numa película antiga a rotar dentro da tela numa sala de teatro vazia. 

Diz-me, onde fica a verdade?

Quando tudo parece ser a antítese da possibilidade da salvação. Em que tudo começa a confundir-se e a tornar-se cada vez mais cinzento, mais ilimitado, mais profundo, terrivelmente triste.

Diz-me, 
onde estamos, 
na verdade?

mAs...

"Para aquele que ama, não será a ausência a mais certa, a mais eficaz, a mais viva, a mais indestrutível, a mais fiel das presenças?" (Marcel Proust)

mas eu não sei  o que me sucedia se tua voz parasse de cantar por dentro da minha alma
não sei o que seria de mim se deixasses de existir aqui
não sei para onde poderia ir pois não se pode conceber qualquer sinal de vida num mundo em que tu não te encontres. 

02/04/2020

Kv


Começas no momento exacto em que o sol desponta na miragem do prenúncio do dia e terminas quando o corpo te segreda a necessidade de parar.

Guardas em ti o silêncio que é mistério, que é segredo, e que dança nas margens indefinidas (indecisas?) da verdadeira magia de se ser apenas inteiramente seu.

Como se fosses feito de água por dentro, navegas à deriva das margens do rio que defines ser necessário atravessar, até que encontres o lugar de terra - não areia, terra - onde possas, enfim, serenar. 
Procuras e tocas para logo te esconderes por dentro das árvores que cantam nessa terra acre (ou doce?) do teu sul, até que consigas regressar ao norte que te orienta.

És lugar de luz onde a noite aceita repousar como se fosse feita da harmonia mais imperfeitamente perfeita que reside na certeza incerta do que permanece por dentro das sombras. 
Guardas as arestas finas da fé e a rugosidade da distância que vai de ti até ao lugar em que precisas saber-te. E acabas (quase?) sempre por te reencontrar.

Tão claro como a água do rio que te desfaz por dentro, olhas através de ti para evitar ver-te em toda a imensidão do que fica por entre as margens. Evitas chegar ao lugar em que te sabes ser- absolutamente - como se não quisesses saber-te - finalmente - inteiro.

Danças sobre a tua angústia de braços abertos ao tempo que te conduz como um cavalo a correr o vento na terra quente, na esperança (vã?) que o resto do pó que te cobre te abandone e te permita (re)começar.

Amas com a intensidade de quem vai partir e partes com a imensidão de quem precisa parar.

És lugar onde pode terminar a ânsia e onde as palavras cobertas de lágrimas se podem tornar música, e a música se pode fazer silêncio sem medo de morrer. Lugar onde a espera cessa de ser e a incerteza regressa ao lugar reservado às coisas que se podem deixar partir. 

És verdade que se guarda na sombra dos dias e na margem das noites, onde o silêncio acaba e onde o silêncio tem espaço para regressar. 

É lugar onde outros aprendem a respirar e em que lhes seguras, na sua frágil vulnerabilidade - com as pontas leves dos dedos esguios - a amargura da sua inconstância e lhes permites pousar em terra branda. 

Começas o dia no primeiro fôlego de luz e terminas quando o mundo se permite cobrir de esperança e pó de estrelas. 
Repito as palavras como se fossem memórias.
Repito e repito para que possa, jamais, vir a esquecer. 

31/03/2020

"Se não nos amas pelo que somos, ama-nos por tudo o que lembramos de ti, de tudo o que foste, de tudo o que poderias ter sido, e ter podido ser não será um pouco, enquanto o pensavas, o mesmo que ter sido?"

Marcel Proust
Argumento

sIriA

perdoa se não sei dizer o teu nome. teu nome é o teu lugar, o que te define, o que te é, o que te diz. perdoa se não o entendo, se não o vejo e se não o aprendo. sabes bem como, por vezes, há coisas que nos são tão difíceis de (a)prender. coisas que são apenas demasiado imensas para se poderem guardar. falta espaço, por vezes, por dentro de nós. perdoa se não te sabemos dizer. teu nome é o que te faz ser. e és demasiado grande para caberes dentro deste aqui. 

30/03/2020

mUrO

Ontem comecei a construir um muro em torno da casa.
Peguei nas pedras e no barro. Moldei a ideia nas mãos molhadas de terra branda e desenhei tudo até não caber mais nada por dentro do sonho.
O campo a estender-se para além da linha do horizonte e eu a cavalgar o vento no momento exacto em que o sol começa a descer na seara.
Sinto o pulsar da crina negra do cavalo que me conduz por entre as linhas dos limites que impus ao tempo.
Observo a casa que desejo em mim e refaço o muro em pedras de granito enquanto o barro me arde nas mãos. 
Deixo minhas mãos mergulhadas na água branda até que nasçam jarras onde vou colocar as roseiras e os ventos que emergem com o sol do sul que é o meu caminho inteiro. 
Ontem comecei a construir um muro em torno da casa para nada ficar fora do sonho. 

29/03/2020

o que tu fizeste, amor,  foi abandonar-me nua a dançar por dentro do fogo.





e isso não tem perdão. 

mAr

Às vezes faz escuro no lugar onde te guardo.
Tão profundamente escuro
como se fosse o lugar mais fundo do mar.
Não se vê,
também não se consegue tocar,
nada se pode ouvir
e não há forma de respirar.
Às vezes,
lembrar-me de ti
é morrer
numa dança lenta.

22/03

seriamos,hoje, irmãs de tempo. eu e tu a segurar a vida inteira nas mãos. a olharmos para o que fizemos, para tudo o que escolhemos, a determinar até onde isso nos havia trazido. até ao dia de hoje. a decidirmos, depois, para onde iríamos amanhã. 
se aqui estivesses,perto de mim, neste caminho da vida que atravesso, talvez eu não tivesse tido tanto medo. talvez eu tivesse sido melhor. 
se me pudesses ver agora, o que encontrarias tu no caminho que eu fiz sem ti?

26/03/2020

ninguém pode desaparecer de onde nunca chegou a estar
Sento-me à beira da janela a ver a cidade em silêncio.
Olho a rua por debaixo de meus pés enquanto nenhum movimento parece acontecer. 
Se fechar os olhos, estou certo de que encontro o momento exacto em que o mundo se equilibrou num fio de seda.

Penso em tudo o que cessou de acontecer. Como tudo, de repente, pareceu ficar mais lento,mais inteiro, mais sereno. 
Mais verdadeiro. 
Quem não podia parar, parou. 
Quem não conseguia mudar, virou.
Quem não queria ver, entendeu. 
Hoje parece estar tudo diferente. Mas, na verdade, está tudo exactamente igual. 

O medo tomou conta das ruas e das vidas. 
A consciência assolou todos, enquanto os pássaros passaram a viver mais livres. 
O mundo abrandou e recomeçou a respirar. Suavemente. 

Na outra parte da cidade, longe desta janela, é o cenário bélico que se impõe contra o silêncio.
Os heróis que sempre o foram, são homenageados no segredo da noite, nas preces entoadas no som da esperança, no sangue, no suor e nas lágrimas de quem escolhe - como se vivesse nas asas dos pássaros - não parar. De quem não pode parar porque parar é a impossibilidade de quem se debate na guerra. 
O mundo está agora dividido em dois lugares confinados aos segredos mais obscuros que se escondem nas asas do medo - a incerteza e a esperança. Dois lugares irmãos, dois lugares inimigos. Dois extremos da mesma carne. Dois sentir do mesmo fundo. 

Sento-me na beira da janela a ver o silêncio que se instala no mundo. 

19/02/2020

ap

sabemos o que é melhor para nós os dois.
e o melhor, é uma coisa triste. 

17/02/2020

A vida corre por entre as amendoeiras que se abrem nos caminhos em flor.
Tudo começa exactamente no lugar em que um outro terminou seu tempo.
E tudo, um dia, termina na certeza de que algo novo despontará de um ramo, num qualquer caminho, em direcção a um novo lugar.

27/01/2020

emunah

diz-me,  
Senhor de mim, 
como chegarei ao lugar certo da tua perfeição se não me encontro para além da escuridão que insiste em repousar em torno 
- e por dentro - 
de tudo o que me fez ser 
- inteiro -
assim?

.

toco no final de cada palavra que te não ouvi dizeres.
sinto, 
na ponta de meus dedos, 
a letra escrita a tinta negra por dentro da memória que guardo do que não chegou a ser dito.
construo,
por dentro dos meus olhos cerrados, 
a  história que não chegaste a contar.

sinto saudades da praia que corre por dentro da tristeza do inverno,
do abraço da areia nos pés enregelados enquanto a pele corre mais lenta que o vento que navega o voo das gaivotas cansadas.
sinto a tristeza inteira a desfazer-se em pó das estrelas que quedaram,
sem nenhum nome,
na noite do firmamento.


toco-te no final de cada palavra que te não disse.
sopro, 
na tristeza da tinta que me escorre dos olhos, 
o vento que te leva nas asas das gaivotas,
de volta até ao mar cansado do inverno. 

26/01/2020

pArtIr

deito as mãos no rio enquanto partes.

se te olhasse agora, sabia reconhecer que nunca estiveste - verdadeiramente - aqui.
se te olhasse a sair, saberia como nunca tinhas chegado a chegar aqui.


mas a verdade é que te não olho.

olhar-te seria ter de me ver a mim e tudo o que permiti que acontecesse aqui
e isso seria como cravar a água inteira do rio - gelada - por dentro do meu sangue 


até eu desaparecer. 


por isso deito as mãos no rio na esperança vã que todo o meu corpo parta na maré do princípio da manhã
e que tudo o que me trouxeste ao lado errado de mim, desapareça nos primeiros raios de luz que trazem a possibilidade da salvação nas asas da sua verdade.

se te olhasse agora, seria eu inteiro como um rio porque me desfaria em lágrimas frias da maré do que houve no lugar do meu sentir de ti
até tu me condenares ao lugar mais solitário de todos - aquele em que nos enganamos e nos perdemos de nós na consciência fera de termos visto tudo sem querermos ver nada. 


deito as mãos ao rio enquanto me gela o sangue
e parto nas ondas da maré,
até começar em mim um novo dia.