27/08/2017

obliVio

quero dizer-te que nesta praia onde nos esquecemos de ter sido, fomos tudo o que podíamos ser. mais não teria sido possível.
o mar leva o que resta do que ficou por dizer.
podes até ter esquecido os traços do meu corpo, mas jamais poderás esquecer as cicatrizes do que lhe infligiste ao longo de todos estes anos.
agora está tudo em ruína. agora está tudo a respirar sal pelas feridas e a ceder à lei da gravidade que o tempo comporta por dentro da vida. agora tudo apodrece e se desfaz nas nossas mãos.
quero dizer-te que é o mar que leva as palavras e me afoga. quero dizer-te que o tempo deixou tudo por dentro de minhas mãos e sou eu agora que ruo perante as cicatrizes de minh’alma e perante a memória do que foste.

Oblívio tudo o que jaz perante a luz morna desta lua de outono e entrego-me à certeza de que não posso ser mais do que o pó apodrecido desta praia ferida. 

distÂncia

sinto-te na ausência mais próximo do que alguma vez antes. 
penso no que pensarás agora que o silêncio se instalou aqui e eu já não posso falar mais. 
penso no que te assola a vontade agora que a agonia começou a desaparecer. 
diz-me o que fica entre estes vales e não chega ao rio. diz-me o que repousa sobre as cinzas da terra e sobre o fogo do teu olhar. diz-me como fazes para superar a tristeza que vem quando se perde o lugar certo. ensina-me a estar nesta distância. 
o silêncio atravessa-me no tempo antes do sino tocar. ergue-se a igreja de frente para um céu que não vejo inteiro. que não sei completo. que desconheço onde termina.
em frente há tudo sem haver nada. uma descontínua continuidade de qualquer coisa que ainda não sei bem o que é, o que será, o que poderá vir a ser.
seguro na ponta dos dedos a esperança. inalo no fumo a instabilidade que chega com o desconhecido de nós. confronto-me com o pó dos dias e a névoa que caiu sobre este espaço.
seguro o silêncio na ponta dos lábios enquanto aguardo as palavras certas.

23/08/2017

fiNe

procuro as palavras para te dizer que agora já não regresso aqui. 
procuras os gestos para me mostrares que tu permaneces. aqui.
como se dois caminhos não chegassem nunca ao mesmo lugar.
como duas linhas paralelas que nunca se tocam no mesmo ponto. 
assim ficamos nós. 
como se tudo o que foi já não tivesse espaço para ser mais. 

podemos terminar aqui. 

21/08/2017

dEstitueEre

Sinto que não sei dizer o que sinto. Não sei sentir o que sinto. De cada vez que te ouço. De cada vez que as palavras que dizes me atropelam por dentro e eu deixo de sentir. De querer sentir. Sinto sem sentir. Sem poder sentir. Sinto sem saber que sinto. Não quero sentir e por isso encerro-me sobre a ausência de mim mesmo e espero. Pego nas minhas mãos em silêncio e seguro-me por dentro. São finos fios de seda que me seguram por dentro. Sinto que sei que sinto o que não sei que sinto mas que sinto sem saber como sinto, onde sinto, porque sinto e sinto que não sei sentir como se sentir não fosse mais do que a própria existência em si e se eu não sinto talvez eu não exista e tudo aconteça aqui sem que eu faça realmente parte seja do que for desta confusa circunstância em que me encontro. Sinto que não sei sentir e sinto o vazio da existência inteira que se ausenta do interior de mim. Fico destituído de quem sou de cada vez que me penso e que me confronto comigo e deixo de querer sentir. Sinto que há pouco a que me segurar de cada vez que me permito sentir. Como se sentir não fosse mais do que o acto de morrer em agonia. Guardo-me. Escudo-me. Escolho parar. Tenho as mãos em silêncio e o pensamento em fuga. Não sei onde estou. Acordo suspenso na memória do que fui e onde estive antes de chegar aqui. Surpreendo-me quando meus pés tocam neste mesmo chão e desperto para o que me espera no caminho. Não me encontro em nada do que dizes. Tuas palavras são lanças projectadas sobre a minha incapacidade de ser mais, de sentir mais, de querer mais. Confundo-me e divido-me. Atropelo-me e desfaço-me na estrada em que começo agora a caminhar. Olho em frente e procuro encontrar algo a que me possa agarrar sem ter medo de me perder. Pego no silêncio que resta em mim para recomeçar a sentir. A sentir que posso sentir sem medo do que posso sentir. Sem me confundir. Pego na ausência de mim e sinto que posso começar. De novo. A sentir-me. 

16/08/2017

aGony

Tenho medo do que sinto. Não sei descrever o que se passa dentro da minha interpretação do que acontece em mim hoje. Confundo-me nos sons e nos olhares. Cesso. Espero. Perco-me nas mãos e nos corpos. Procuro por ti no meio das multidões e do fumo. Procuro por mim por dentro até que me afogo. Espero. Recomeço. Sinto o ar desaparecer por dentro. Tudo por dentro. Como se mais nada existisse. Como se mais nada pudesse ser depois disto. Esvazio-me por completo e não compreendo o que me assola. O que me agoniza. O que me aniquila. Procuro-te no meio da multidão e encontro-me, sozinho, suspenso no tempo, a olhar para um lugar vazo de sentido, na esperança eterna de que amanhã possa ser menos difícil estar aqui. 

15/08/2017

NightiNgale

Sento-me na pedra da janela a sussurrar a solidão. A noite abraça-me na sua pele quente e tremo. Pego nos fios do tempo suspenso entre o que foi e o que me espera e entranço-me na certeza de que o tempo não vai chegar.
Tenho os pés sujos de tanto caminhar descalço. Tenho as mãos feridas de tanto tactear o espaço que vai deste lugar que agora ocupo, até ao lugar que reservei ao meu fim.
Sinto o corpo ficar dormente. Sinto a boca a secar nas palavras enroladas, inventadas, perdidas, fundidas e as esquecidas. Sento-me à janela enquanto o fumo se dissipa no ar e entra na minha pele. Cheira a noite e a solidão.  Tudo sabe a acre e a desilusão. Tento falar mas guardo-me em silêncio. Não há ninguém a ouvir.

Cheira a solidão o abraço da noite de hoje. Sabe aos fios do tempo que se enlaçam e se desfazem e se aniquilam como se mais não fossem do que um sussurro a desaparecer no lugar reservado às coisas que permanecem na ausência. 
Sento-me na noite e aguardo o momento em que me desfaço no ar. 

nAuseaR

doí-me no corpo a desesperança. 
em todos os gestos, minha ideia de mim desfaz-se no ar.
tenho pouco que esperar deste lugar. pouco por que aguardar. 
tenho a náusea a navegar-me a alma. a segurar-me na pele. a dilacerar-me por dentro. 
reside uma quase total inexistência e mim. um pensamento único invade-me cada momento do tempo e furta-me o espaço de outro caminho.
tremo de frio enquanto lá fora não chove e tudo parece arder. 
estou a desfazer-me por dentro. doí-me a náusea inteira dentro de mim.

4 waLLs

Há coisas que se movem dentro de palavras e dentro de movimentos que se repetem dentro de mim ate à exaustão. Que se repetem até à minha decadência. Palavras e sentimentos que não se podem organizar. Olho-me no espelho e não me reconheço. Penso que estou a morrer nos momentos em que o mundo inteiro me diz que estou vivo. Acredito que estou vivo quando o mundo inteiro entende que morri. Sou o que começa e acaba sem ter chegado a ser. Sou o lugar de partida, a meta, o percurso que vai daqui, deste lugar que me parece que ocupo, até um qualquer ponto em um qualquer lugar onde seria suposto eu chegar. Perdoa o meu desconforto, mas não me encontro. Nem aqui nem fora de mim. Nem neste lugar nem em nenhum outro. Há movimentos que se perpetuam dentro do que penso. Coisas que me tocam, onde eu chego com a ponta dos dedos. Coisas que e fogem e que não recupero se não cair mais fundo no abismo que se abre ininterruptamente em mim. Coisas que me definem e que em mim definham. Coisas que começam. Outras que terminam. Outras que ficam a meio caminho entre mim e o resto. Um intermediário interminável e intransponível. Um homem sentado numa cadeira dentro de quatro paredes que se tocam apenas com a pele, que se lambem com o respirar, que se encerram na voz, que definem o tamanho de dentro da minha solidão. Sou o poema e a sua antítese. Sou a teoria e sua falha. Sou a constelação e a estrela que queda e se desvia. O fogo e as cinzas. O deserto e a mar. E tudo acontece em mim a uma velocidade incontrolável e com uma força que apenas parece inabalável. Sou a sombra e a luz. A noite e a alvorada. O meio do caminho. Não chego a partir nem chego a chegar. Há coisas que se movem dentro de mim em palavras que eu não conheço, de lugares que eu não compreendo completamente e que me conduzem eternamente a uma exaustão abissal na mais profunda das solidões possíveis.  

14/08/2017

sanGre

Caminhei descalça no asfalto quente até não poder mais sentir. 
Peguei nas palavras todas que dançavam dentro do meu pensamento e deixei-as no lugar reservado às cinzas. 
Viajei por dentro até embater numa parede inominável. Perscrutei o espaço onde o deserto se instalara e ouvi tudo o que me dizia o silêncio que me dilacerava a pele. 
Caminhei por dentro do meu pensamento até sangrar. 

Respiro pesadamente
aqui
onde o tempo não permanece 
aqui.

Respiro imensamente
enquanto procuro
sem procurar
o lugar onde
por mais uma vez
me esqueci.
aqui.

Não pertenço 
a este lugar
de aqui.

Respiro liminarmente
aqui
onde uma ultima vez
me perdi. 
De aqui. 

siLênCio

Seguro nos dedos o silêncio.
Lá fora, tudo permanece num movimento incessante.
Ouço tudo  que acontece fora de mim. Tudo o que permanece fora de mim.
Fecho as mãos sobre os dedos.
Silêncio.
Abro os olhos para me saber vivo. Seguro-me, imutável.
Inalo o ar pesado da tarde ardida em labaredas que não cessam nunca. Limpo as cinzas do cabelo e desfaço-me por dentro.
Seguro o  silêncio na ponta dos lábios. Não digo o que sinto. Não me sinto no que fica por dizer.
Há granito nas minhas mãos queimadas. Granito que se desfaz em cinza de cada vez que me ouço por dentro.
Sento-me na distância de mim e abro as mãos.
Fecho os olhos.
Silêncio.

tiNta

posso pegar na folha e chegar a lado nenhum. ler todas as palavras em todas as letras de todas as linhas e não chegar a lado nenhum. podia voltar a tentar, começar do principio, pegar pelo fim, acreditar que tudo ia mudar e, mesmo assim, não chegar a lado nenhum. 
projecto-me sobre o rio e caio na água fria. faz frio aqui quando abro os olhos, quando me levanto, quando pergunto por ti e não ouço nada de volta. deixo-me cair na água com o peso inteiro do mundo sobre minha pele. deixo-me diluir na água com o peso inteiro de ti sobre o pensamento. e quase me afogo. quase me desfaço. quase que me vejo impossibilitado de começar de novo.
escrevo as palavras sobre a água do rio enquanto faz frio dentro de mim. pensei que podia começar a chorar quando a minha voz perguntou por ti. mas não. hoje não. hoje começo partindo do fim e termino (n)as palavras todas.