29/05/2022

São flores de jacarandá que me cobrem os pés descalços sobre a pedra negra das entranhas da ilha.

São gotas de chuva feita de mar que me cobrem a pele e o cabelo solto no vento que me grita poemas queimados.

Respiro fundo para travar as palavras todas que me invadem no lugar mais fundo das coisas que se não podem dizer.

Fecho os olhos sobre o cinzento que pinta o céu e aniquila a vontade de estar. Aqui ou acolá.  Antes ou depois. Agora ou nunca.

Sinto o corpo a ferver por dentro e a pele a chamar por ti.

Espero uns segundos antes de abrir os olhos e de deixar cair as pétalas lilases de que são feitas as lágrimas na maré vazia que só se encontra no silêncio das palavras perdidas. 

Escrevo nas páginas vazias do tempo

as lágrimas que me fogem dos dedos cansados.

Dia após dia, 

mês após mês 

como se o tempo fosse um nada que é

como chumbo agrilhoado 

no meu andar. 

Não caminho, 

arrasto a existência.

Não vivo. 

Arrasto a vida.

Não encontro nada...

Tudo morreu contigo. 

20/05/2022

Há sangue na estrada. Há sangue dentro do calor que ascende do asfalto pregado nas rugas desta cidade envelhecida. Sinto o corpo a adoecer e não consigo segurar nada nas mãos. Sou feito de água. Sou feito de nada. Tenho os braços abertos para me segurar mas "braços abertos não agarram nada"...

Há sangue a sair de dentro de mim. Sei que vou perder a voz. Sei que me vou perder de mim. Sei que devia ter parado antes de cair no calor desta estrada mas não o quis. Agora sou eu o sangue. Agora sou eu a pele enrugada da cidade. Agora está em mim o princípio do fim.

Abafo o grito na água. Fecho os braços para segurar o sangue. 


Cheguei tarde.

Seguro o amargo da tua ausência nas coisas que ficam presas na voz. Sei a que sabe o fel enquanto recordo a que sabiam os sabores de ti antes do grito se afogar por dentro.

05/05/2022

Arrasto 

o sabor 

dos teus 

dedos

agrilhoado 

dentro 

da 

minha alma.


Todo 

o corpo 

se 

incendeia 

por dentro 

e

ardo 

sem 

desaparecer. 


Desfaço-me 

por dentro 

sem 

que 

se vejam 

as

chamas. 


Transformo-me 

em 

cinzas 

em 

carvão 

com que 

escrevo 

nas linhas 

do horizonte 

o teu 

nome 

gritado 

em sangue 

ao silêncio 

que 

cobre 

o interior 

do 

meu 

deserto.


Finge 

que 

me seguras 

com 

teus 

dedos 

feitos 

de 

água.


Deixa cair 

tua boca

sobre 

o lugar 

triste

de minha 

alma 

despida

detida 

vencida

e repete 

repete

repete

repete

que 

já parti.  

04/05/2022

vou mudando coisas de lugar. mudando os lugares das coisas. 

não sei bem se procuro o lugar certo ou se é somente a necessidade de mudar. deixar o que foi. partir para o que é. pensar no que pode vir a ser. 

caminho, lento, sobre o deserto do meu interior, até sentir que me abandonei. podemos começar de novo de cada vez que nos abandonamos. quando nos perdemos nas lâminas do nosso próprio abandono, talvez sejamos forçados a arriscar escolher um caminho. qualquer direcção. talvez para nos perdermos ainda mais. talvez para nos procurarmos. talvez somente porque precisamos de continuar o movimento. talvez porque não esperamos nada. talvez porque não queremos ou porque queremos demais. 

depois de sentir o deserto a desfazer-me por dentro dos dedos do vento do norte, corro selvaticamente pelas planícies douradas à procura de flores frescas onde possa deixar cair a pele dos pés. 

depois volto a mudar as coisas de lugar. ponho as flores no deserto e a areia planto-a ao vento das planícies. 

03/05/2022

compreendo que não é de mim que fogem os pássaros

fogem do medo que lhes roube o voo