30/03/2023

GaRgalHaDa nO eScUro

"O amor é 

uma palavra 

suada 

entre os meus dedos"

Ondjaki


Se o amor é uma palavra suada entre meus dedos, são minhas mãos a prova da essência que soa, ressoa e entoa quando ouso segurar-te na pele.

Trago nas mãos a palavra que te guarda do interior de minha alma. Trazes na água a antítese da tese sintetizada onde tudo é irremediavelmente intransponível. 

Se te dissesse as letras da palavra sem ser no suor dos dedos, iria chegar-te à garganta um grito ácido que se corroeria por dentro e te iria impelir à fuga para mar alto. 

Há almas que nasceram na gutural eterna insatisfação de não ser possível tolerar ser-se amado. Nem no suor dos dedos, nem no sangue das palavras, nem na profundidade dos gestos guardados no sentido das mãos

És meu alimento quando vens. Meu naufrágio quando partes. Meu alimento quando partes. Meu naufrágio quando chegas.  Queria poder dizer-te palavras que suam como lágrimas e soam como preces. Não digo. És profeta e herege. Salvação e condenação. Bênção e pecado. Não te posso dizer. Pois queres tanto quanto não queres. Podes tanto quanto não podes. Desejas tanto quanto não desejas. Começas tanto quanto terminas. Terminas tanto quanto começas. Tens tanta vontade de chegar como a vontade que tens de partir. 

E eu permaneço na silenciosa intenção de ir em busca das estrelas que brilham na gargalhada que desperta do âmago da escuridão que te habita a alma. 



29/03/2023

Entranço o cabelo.

Dispo-me das roupas. Devagar.

Desfaço-me do dia. Sem sentir pressa.

Lavo a pele fendida nos ganchos que me sustêm até não sobrar sangue.

Deito-me no chão frio da madeira que sustenta o grito do inverno e permito-me desaparecer no som dos passos que ecoam no ranger do caminho.

Sei que não poderei mais regressar. 

Aceito. 

Fecho os olhos. 

Entrego-me ao silêncio da noite. 

Até que minha pele se funda com a agonia da madeira e nada, depois do vento do norte sibilar, possa sobrar.

27/03/2023

Deixaste-me o sol. 

Espero que regresses antes de eu recomeçar a chover.

23/03/2023

sou o que resta do naufrágio. 

morro na solidão da madrugada, num canto deixado à sombra na praia. tal como os animais de água que perdem o rumo. como todas as coisas que naufragam no alto mar. como todas as peças que se perdem. encalhada nas rochas. 

tenho a boca cheia de água. tenho o ar cheio de água. tenho a pele encharcada. tenho os braços abertos. como todos os pássaros que morreram dentro da minha voz. de asas abertas. de mãos fechadas. com as penas negras nas letras das palavras. 

devia ter mantido o silêncio no segredo e ter aberto as mãos enquanto fechava os braços. vai fazer sempre noite dentro da água que se me arrasta no sangue. vai ser sempre sombra no lado mais recôndito da praia de calhau negro. 

sou o naufrágio do que resta. 

18/03/2023

CeRtEzA

Os pássaros deviam morrer sempre de asas abertas e olhos fechados.

14/03/2023

o anúncio da primavera grita efusiva por todos os poros

de todas as peles

de todos os lugares 

de todos os movimentos deste mundo. 


já só sinto falta do outono. 

13/03/2023

Apetece-me gritar a dor e fazer parar o tempo. 

Cheira a limões acabados de colher e a mortes acabadas de anunciar.

Sei como ruem as vidas suspensas na certeza de que não é o tempo que se move. Eu quero que seja tempo do tempo se mover e da vida poder parar. Se pudermos parar, agora, talvez a morte que te acaricia a pele possa cessar, possa deixar-te ficar.

Quero gritar até que pare a dor do tempo não parar. 

11/03/2023

Danço ao som da tua melodia.

Mas a música parou. 

04/03/2023

Que pode o melro fazer, 

andando num qualquer chão,

em fuga, 

com uma asa partida na impossibilidade do voo?


Que posso eu fazer 

com a alma enrelhada

 no interior das penas pretas 

de uma asa que já não voa?


sEntIdo

permaneço parado

nas sombras do inverno. 


seguras-me com um dedo 

para,

quase de imediato, 

me afastares com as duas mãos abertas. 


chegas aqui

no gesto lânguido das palavras mortas

para logo não estares 

nem aqui nem em lugar nenhum em que eu possa ficar parado. 


o inverno é isto.

pedires-me para me mover

mas se ousar um passo, 

um passo que seja,

nada encontro para além do abismo de frente ao vazio. 


volto atrás. 

vou recuar até me cruzar com os ventos áridos

avançar na direcção oposta

ao lugar que o inverno reserva para ti. 


estou a arder por dentro.

vou consumir o pouco 

o que resta 

antes do primeiro grito da primavera.