27/08/2019

és sede em mim,
não desejo
porque com desejo a alma sobrevive
com a sede,
não. 

tHunder

sabes bem que não há como regressar.
troveja sobre a ponte. é como se o céu se rasgasse em agonia. 
raios de luz que rasgam a noite como se fosse a carne do corpo, como se fosse o reflexo de tu' alma, como se fosse o lugar que se reserva ao que já não é. 
anuncia-se uma tempestade aqui enquanto mundo inteiro arde. 
será que o que vai sobrar de aqui é apenas sangue e cinzas?
apenas aço e carvão?
apenas lágrimas em rasgos impossíveis de luz que desfazem o negrume desta noite quente?
sabes bem que já não há como regressar ao que já não é. 
partimos em busca do mundo olvidando a tempestade que estava a crescer no interior de nós.
seguimos em busca de um sentido sem assegurar se sabíamos exactamente onde nos encontrávamos. 
emanámos da lama em perfeito desnorte sempre na demanda de um norte que se desvelasse no caminho que nos arriscámos a tactear.
perdoa-me. 
estou a arder com o resto do mundo. 
será que vai sobrar apenas cinzas do que restava da luz que havia em mim?
sabes bem que não há como regressar.

steLLa

Pego nos espaços vazios que ocupam a solidão de ser eu. Coloco-os uns sobre os outros até que não reste nenhum. Peça perante peça. Como se conjugasse um jardim labiríntico em que me pudesse perder do mundo. 
Pego na solidão que me ocupa no vazio e sigo num caminho emerso em estrelas. Neste manto negro que me cobre, só eu vejo tudo o que brilha. Pontos de luz que anunciam o fim e o recomeço, o limite e margem, o estar e a queda.
Pego no que resta da minha existência e ocupo todos os espaços com a luz que emerge de cada ponto estelar no manto interminável do céu que me toca nos cabelos. 

21/08/2019

percorro os corredores que parecem nao poder terminar. paredes brancas. o chão frio de pedra branca. portas que se abrem mas não revelam nenhum destino. janelas fechadas no ar que se pesa nas sombras. paredes brancas a tocar no chão frio. portas fechadas que não sabem o lugar que guardam. como se nunca tivessem sabido o lugar que guardam. faz frio por dentro destas paredes mas é o corpo que gela. as sombras arrefecem o caminho por entre o que chega e o  que desaparece. faz frio aqui enquanto o suor escorre nas palmas das mãos brancas. vultos parecem passar por entre os espaços que nao findam e que se fundem nas memórias das coisas idas e das pontes submersas. faz frio enquanto a febre ensandece o corpo e tudo parece ter um outro sentido que estas portas já não revelam. guarda-se o tempo por entre as sombras pacificadoras que escondem a dor de quem aqui se entregou. faz frio enquanto arde uma lareira e o fogo transforma as sombras em cinzas e em segredos.
fico suspenso na possibilidade de um amanhã.
a verdade é que as manhãs estão submersas no nevoeiro que se abateu sobre a praia vazia.
pensei que te poderia encontrar se fechasse os olhos de novo. pensei que estarias deitada na linha do horizonte a aguardar por mim.
fico emerso na irrevogável certeza de que não voltas. que mesmo que amanhã chegue até este deserto que me vai aniquilando na medida certa da minha incapacidade, tu não vais estar.
pensei que te encontraria no lugar em que me encontro agora.
mas tu já não estás. 

19/08/2019

ciElo

há uma distância intransponível que vai de ti até mim. 
somos duas partes de um mesmo lugar que se divide em si mesmo em opostos absolutamente díspares.
somos duas linhas paralelas que seguem mas que não se encontram em ponto algum, mesmo tocando na infinitude de tudo o que é. de tudo o que se pode sentir. 
sou um lugar de heresia em que me desfaço em cinzas e de onde renasço sempre cada vez mais longe de ti.
és um lugar reservado às coisas mais sagradas na distância do qual eu jamais poderei chegar. 

ChiaMatA

Derramei-me na ponta da madeira velha. Foi depois da noite que começou. Tudo a acontecer por dentro do meu pensamento. O mar a embater na ravina. O vento a enfurecer o mar. A ravina a descer de encontro ao inferno que arde por dentro de mim. 
Vazei-me na aresta de um copo cheio. 
Dancei nas lágrimas da noite que passou pelo meu corpo sem me dizer sequer o nome. 
Não ouvi o meu nome. Chamaste por mim?
Sinto a madeira a abraçar-me no corpo. Detém-se. Contém-me. Amarra-me nas mãos, nos pés, no peito, enquanto o delírio me consome, me desfaz em chamas, me leva a embater contra a ravina, me sopra no vento ao ouvido um nome. 
Chamaste por mim?
Não ouvi meu nome.
Ouço a madeira cantar-me a noite ao ouvido. Até que a manhã me traga de volta ao mar de mim. 

14/08

A verdade é o lugar mais ambivalente de nós.
O mais doce e o mais amargo.
O mais simples de todos porém o mais complexo.
O mais definitivamente leve e inteiramente denso. 
Macio em toda a sua superfície mas áspero quando toca na pele.
Mágico e hediondo.
Perfeito e caótico.
Cheio de paz e repleto de angústia.
Perfeitamente imperfeito e irrevogavelmente perfeito.
A verdade é o lugar onde os encontramos mais despidos e mais cobertos. 
A planar e soterrados.
Junto de outros e igualmente sós.
A verdade é o lugar mais belo de toda a fealdade. 
O lado mais difícil de toda a nossa existência. 

07/08/2019

rEbElo

Estou a morrer, sabes? 
Ainda no outro dia toquei na morte. Segurei-lhe a pele da face com as minhas duas mãos. Toquei-a na ponta dos dedos, no âmago da alma. Senti tudo o que vivi na vida. Naquele momento a minha vida ficou imensamente grande num tempo imensamente insuficiente. Naqueles breves segundos  olhei-a de frente para me ver. A mim. Inteiramente a mim. Sem qualquer dúvida, sem qualquer anseio. 
Senti-me triste, sabes? Infinitamente triste. 
Pensei que fosse mais fácil partir. A verdade é que sinto que meu corpo me trai, me abandona, me encerra. 
A verdade e que me dói respirar, me dói não poder falar, me angustia que tu não me entendas. Queria poder explicar-te tudo, sabes? Dizer-te hoje que não entendo porque me sinto no limite do cansaço. 
Não precisas dizer que vai correr tudo bem, não precisas de dizer que tenho de parar de tentar dizer-te tudo. A verdade é que eu não quero parar, entendes? Não quero desistir. Estou assim, tão desoladamente triste porque o meu corpo se está a despedir de mim e está a levar-me aos poucos.
Sinto a minha mente a abandonar-me também. Compreendes como isto é uma traição? 
Consegues ver como tudo isto e uma injustiça? Não quero que consideres que não é justo eu morrer porque o é. É justo para todos nós. Nascer, viver, morrer. E eu tive a bênção de nascer, o prazer de viver e reservo-me no direito devido de morrer. 
Só queria que pudesse partir inteiro dentro de mim, sabes? Que tivesse as ideias no lugar certo, as mãos na dimensão certa, a alma na serenidade certa Consegues ver como já nada disso acontece em mim?
Queria dizer-te tudo isto e não posso. Meu corpo está a abandonar-me na alma e eu já não te consigo dizer nada. Nem pela voz nem pela tinta. 
Peço-te que fiques. Que não me deixes ficar só. Ninguém deve morrer a sentir-se só, sabes? 
Perdoa-me se te peço tanto. 
Queria partir comigo inteiro dentro de mim. Mas vou partir em fragmentos de mim. Pequenas partes que vão indo até que eu termine.
Preciso que fiques aqui para confirmares que todas as partes de mim me acompanham, compreendes?

06/08/2019

vAle

olha para mim.                                  sou o reflexo da tua sede.
repete as palavras da tua oração.   em voz alta.                      até que eu ouça.
canta para mim.              contra o vento que ecoa no primeiro rasgo da manhã.
diz-me tudo o que guardas por dentro da tua condescendência. até que eu entenda. 
senta-te no lugar onde começa o fim da noite.  sou o que resta da tua certeza.  
olha para mim. sou o reflexo da noite que amanhece na tua prece.
           

04/08/2019

auReo

Estou preso dentro do meu corpo. Não me consigo mover. De cada vez que me enfrento, perco. Cada luta que travo, por dentro, comigo aflito por dentro da minha pele, comigo perdido por dentro da minha ilusão, comigo escondido por dentro da minha solidão. Estou parado dentro de mim. Sinto o sangue a correr, a pele a respirar, a angústia a permanecer. Dói-me no peito e nos olhos a certeza incerta que tenho de mim. Receio partir. Temo cair num lugar de onde não consiga voltar. Esqueço-me das palavras, dos gestos, das vozes, das certezas. Esqueço-me de tudo quando a dor me ocupa por inteiro enquanto grito sem que ninguém me consiga ouvir. As paredes, aqui, nesta sala, demasiado brancas, demasiado frias, eternamente desprovidas de vida. Não me reconheço neste corpo que me aprisiona, nesta voz que me silencia de cada vez que tento cantar, nestas mãos que não tocam se não em ar e pó das paredes que ficam quando o dia termina. Pergunto como posso continuar quando tudo me impele à queda. Como vencer o cansaço que me devasta de cada vez que tento respirar. Estou infinitamente preso dentro de mim a ver-me partir. 

LinHa

Comecei pelas linhas. Desci pelas letras até encontrar o poema. 
No poema tacteei as letras que perfazem teu nome. 
Pedi ao silêncio que te levasse ao princípio da linha. Segredei-lhe que o princípio da linha poderia ser a possibilidade do recomeço. Sussurrei-lhe que a possibilidade do recomeço poderia ser o meu princípio. 

Comecei pelas linhas mas terminei aqui. 

VeriTas

Estou despojado de fé. 

Tuas palavras seguram-me na face, prendem-me na vida.
Teu silêncio é como uma noite inteira que me beija na testa.
 Tua fé é tudo o que resta em mim quando tua voz me toca nas mãos.  

LeMe

Tua voz navega-me por dentro. 
Rasga-me do peito a certeza e, lentamente, retira e repõe fragmentos da minha inabilidade de ser mais para além de maré vaza. 
Navega-me por dentro como um barco sem leme, sem vela, sem mar, somente ao dispor do vento.
Sobe e desce na corrente que se ausenta de cada vez que tento tocar no tempo que se me esvai por entre os dedos magros da perfeita insanidade que me habita de perto.
Desce definitivamente na vertigem do abandono da terra em que fui teu porto, em que tu foste areia, em que fomos quase ilha.
Um barco que navega sem leme não tem lugar onde atracar. Não tem tempo para se encontrar. Não reconhece a madeira que o (des)faz. 
Tua voz é um lugar sem âncora numa maré irremediavelmente vazia.

Procurei por tudo o que escrevi na chuva da noite em que partiste. 





Não me encontrei em palavra alguma.