26/08/2011

Adeus

"É um adeus...

Não vale a pena sofismar a hora!

É tarde nos meus olhos e nos teus...

Agora,

O remédio é partir discretamente,

Sem palavras,

Sem lágrimas,

Sem gestos.

De que servem lamentos e protestos

Contra o destino?

Cego assassino

A que nenhum poder

Limita a crueldade,

Só o pode vencer a humanidade

Da nossa lucidez desencantada.

Antes da iniquidade

Consumada,

Um poema de líquido pudor,

Um sorriso de amor,

E mais nada".


Miguel Torga

17/08/2011

s.A.l.A.

Esperar. Esperamos nas salas de espera das salas de espera da espera. Olhamos, de olhos entreabertos, a clareza absurda das cadeiras adoecidas pelo passar do tempo e dos corpos. Esperamos a esperar o que vai chegar e fingimos que sabemos exactamente o que pretendemos esperar sem que realmente o esperemos. Caras caídas sobre os colos cansados distribuídos, sem qualquer harmonia, sobre as cadeiras dispostas em filas sem fim. O chão branco a lembrar o frio do inverno que não tarda a chegar e que demora tanto a partir. Esta é como as outras salas. Uma sala onde esperar se tornou outro lugar diferente. Uma sala onde mais não há do que o corpo de quem esperar vazio de vontade de esperar.

paradise

- não tenho vontade nenhuma de viver. por mim dava já um tiro na cabeça.

- onde é que tens a arma?
- não tenho. mas arranjo.

-queres que te vá comprar uma agora?

- quero. vai já e dou já o tiro na cabeça. à tua frente.


15/08/2011

secretum

Tenho no corpo um segredo guardado.
Rasgo cada aresta da minha pele enquanto embato de cabeça na areia molhada deste deserto em que me deixei ficar.
Não chove aqui. Não nascem flores, nem arbustos, nem nada que possa cobrir o resto das minhas cinzas.
Esta terra é negra como o sarro que as minhas mãos ocupam e tenho no corpo um segredo que ninguém pode conhecer. Cada poro respira e jorra sangue vivo. Sangue cansado. Sangue sem sangue.
Queria poder saber fazer nascer qualquer coisa desta abrupta ruptura entre o que sou e o que fui e não encontro forma. Nem geométrica, nem forma sem forma de forma nenhuma.
Amei como se amam as coisas que têm sempre que partir e fiquei na espera que elas regressassem aqui. Mas o que parte desta terra de areia não volta mais.
Tremem-me as mãos na incerteza de ser possível dormir hoje. Os ossos rangem no silêncio que só quem foi abandonado assim sabe ouvir. O silêncio é imenso. Ininterrupto. Voraz e absorve-me de toda a capacidade de respirar.
Aqui não nasce vida. Não cresce nada. Por causa deste segredo que morreu dentro da minha pele e que jamais alguém poderá chegar a saber.

10

Morri há tanto tempo que nem me lembro de ter chegado a estar vivo.
Os anos, os dias, os segundos detêm todos a exacta medida das coisas que não estão no seu lugar. A exacta medida do não haver nada. Morri morrendo sem saber que morri e aqui está o que sobrou.
A determinada altura esqueci o que me descrevia. A prepotência da humanidade em querer nomear tudo. As palavras a não serem menor que sinais, que descrições, que caminhos, que certezas, que penas e fados. Morri morrendo sem saber que estava vivo. Desde que te perdi. Não. Desde que partiste. Não. Desde que te perdiste. Partiste. Perdeste. Perdi. Já nem sei bem a palavra para nomear a tua ausência. Pensei que ia cheirar eternamente a flores aqui. No lugar em que te deixei ficar estes 10 anos. Mas já não cheira. Tenho o olfacto tão envelhecido como os cabelos que se branqueiam sobre o meu olhar cansado. Conto os anos pelos dedos das mãos. 10. 10 dedos.  Sigo-te na linha ténue de um pensamento enfraquecido pela desfragmentação do tempo e quase, quase te ouço rir. Faz-me frio dentro de mim quando insisto em negar que o tempo passou assim sobre a tua ausência de mim e eu não cesso, e eu não paro para esquecer. Às vezes queria esquecer. Às vezes queria lembrar que existe um lugar onde eu não esqueço que a dor termina. E a dor não chega a terminar nunca porque eu não chego a esquecer. Porque tenho medo de esquecer por não querer mesmo nunca, chegar a esquecer-te. Morro morrendo na certeza de que a morte me abandonou aqui quando te levou. E quando a olho nos olhos, todas as noites que me penam a adormecer, quase te ouço rir. E quase chego a recordar que há um lugar onde a solidão terminava.

10/08/2011

inquestionabilidade

Não sei porque insisto em ficar quando tudo insiste para que eu vá.
aprendi a não olhar para trás
a não ceder ao medo
a ouvir as portas que rangem e que se batem
aprendi a questionar o inquestionável e a ter sempre dúvidas
a ouvir e a escutar as palavras dos outros
a perder
aprendi a perder
a deixar partir
a saber deixar partir
a esquecer de saber sentir
a sentir e a saber esquecer
aprendi a aceitar e a não ter fé
a escrever o apocalipse
a remendar o passado e a construir a possibilidade do futuro
a saber resolver o irresolúvel
a prendi a cair e a levantar
a andar de pé descalço na areia
e sobre as fendas dos estilhaços
a roubar o fogo aos deuses e não aos homens
a tactear o começo e fim da escuridão inteira
aprendi a não olhar nunca para trás
a perdoar o mundo
a não me perdoar a mim
aprendi a não saber aprender a aceitar que o mundo é um lugar que eu não quero mais conhecer. abandono o que sobra do que conheci, cada segundo que passa, para dentro da areia do meu deserto. Encerro os lugares da memória, da vontade e da inquestionabilidade e vou quedando. Vou deixando cada pegada revelar a minha necessidade de fuga e vou, de frente para a tempestade, aprendendo a desistir de conseguir ser mais do que isto.