30/09/2019

ImA

Vejo-te a olhar o vazio enquanto contas os passos.
um.
dois.
três. 
Paras. Olhas em redor de ti.  Não sabes onde estás. 
quatro.
cinco.
Procuras por entre os transeuntes um qualquer rosto conhecido. Parado no tempo.
seis.
sete.
oito.
Recuas.
sete.
seis.
cinco.
Recomeças.
seis.
sete.
oito.
Escutas o que as vozes te trazem guardadas por dentro do vento. Paras. Voltas a parar.
oito.
O corpo deixa de te responder.
oito. 
Reconheces a tua imobilidade. Não reconheces mais nada nem ninguém. Só tu, inteira e absolutamente encerrado por dentro de ti. 
oito.
Tentas de novo. Um passo para a frente.
nov...
Recuas. 
Encaras o vazio. 
oito. 
sete.
seis.
cinco.
quatro.
três.
dois.
um. 
Nada mais. 

yEaRn

perdoa não ter conseguido chegar até ti. doem-me as mãos. os dedos. dói-me por dentro em lugares que já não recordava puderem existir. dói-me ser eu em mim mesmo e ser isto inteiro que se revela tão intensamente em ti. doí-me ser o que fica aquém do que podia ter sido. perdoa mas não consigo querer mais. 

hiAto

Lembro o momento exacto em que me tocaste pela primeira vez. Lembro-me a que cheirava o ar
 - a sândalo e a jasmim - 
a que sabia a chuva 
- a deserto e a infinitude - 
o que me dançava na pele 
- mar e asas. 
Lembro de tudo como se estivesse a suceder neste momento exacto em que respiro. A mesma dor no peito. O mesmo espaço entre as palavras. O mesmo hiato entre mim e o que realmente estava acontecer em nós. 

27/09/2019

anGel

é quando a luz começa a cair, no fim do dia, que me chega a memória de ti

como se tu fosses a própria luz
como se a essência de ti repousasse nos traços doirados dos restos do sol caídos sobre estes lugares que magicamente encontro
como se tivesses sido desenhado por D em tinta de oiro

caMinhO

Não adianta. Não há nenhuma asa de gaivota que te possa levar para mais longe. Não se pode fugir do destino que nos foi traçado no dia em que nos cruzámos com o mundo. 
É inevitável que tentes correr. Sentes a perna presa, a dor a recordar-te a incapacidade, os ossos a ruir, o cansaço a chorar a pele. A impossibilidade da fuga reflectida na incapacidade que te reside no corpo. 
Tens a alma aprisionada há demasiados anos. Evitas olhá-la de frente, encarar o que de mais simples e real está de frente para ti. Evitas. Ignoras. Crês que é uma bênção ignorares até que ela te esmaga de frente, olhando-te nos olhos. Pele contra pele. Beija-te a testa. Segura-te as mãos e depois dilacera-te. Desfaz-te na pele até sangrares por dentro. Até não seres nada mais para além do sangue a correr como a chuva do inverno. 
Persegues-te na tua própria sombra. Finges que percorres sonhos e vontades mas não sais do mesmo lugar. Iludes-te a sentir-te grande por dentro, assente no orgulho que te faz crescer só, mas não desarmas na vontade do innuendo. Mascaras a face e o corpo na idealização de uma construção onírica em que, quando te convenceres a ver de verdade, só encontrarás pó de cinza.
És feito de nuvens densas que descem sobre a praia emudecida. Não há nada para além do silêncio mesmo depois das marés, mesmo depois das vozes, mesmo depois dos gritos das gaivotas. 
Não adianta.
Ainda não te cumpriste. 

24/09/2019

"(...) O homem é um pássaro sem asas  -dissera-lhes Iskander -, e um pássaro é um homem sem mágoas (...)"

"Pássaros sem asas"
Louis de Bernières
2009
Editora Asa

pASsé

O passado dança sobre a pele como se a vida não tivesse, nunca, a possibilidade do fim. Enquanto caminhas por sobre a terra árida que este lugar se tornou, evitas tropeçar nas asperezas de teus arrependimentos. Tacteias, com os pés descalços, as inseguranças que te trouxeram até aqui e seguras, de cara erguida, as certezas que te completaram. O passado está vivo dentro desta casa que morre devagar. Em cada divisão, em cada fragmento de madeira, de vidro ou chão, há resquícios de ti, do que foi a tua vida, do que te trouxe até aqui. Há um odor consistente a livros velhos, linho rasgado e almas antigas. Sente-se, em cada espaço, força e maldade, amor e guerra, paixão e desesperança. Caminhas de frente para ti, na aridez de seres tudo o que és e de seres ainda tanto por ser e tão pouco que és, aqui, neste exacto momento. 

chove dentro de mim

chove na areia e chove dentro de mim.
o mar serena na brisa fria que acaricia o começo do outono. 
arrisco a olhar para trás, para o passado, para tentar perceber o agora em que me vejo
consigo sentir o odor que emana do húmus que cobre tudo o que enterrei na terra húmida.
serenamente imagino-me a caminhar sobre o lodo, sobre as folhas caídas.  
terei eu chegado antes do outono?
terei eu caído antes do prenúncio da folhagem dos freixos e das acácias?
passa um gaivota a rasgar o ar a anunciar a retirada breve do sol.
sinto a espuma de sal que chega até à nudez de meus pés e respiro tão fundo quanto me é possível.
a chuva queda mansa, abraçando-me no infortúnio que reside dentro da minha alma .
olho de frente a linha que me separa do que foi e questiono onde irei a seguir.


chove dentro de mim.


19/09/2019

ahava

a vida urge. o tempo foge. o amor acontece. a tragédia sucede. a agonia aperta. a alma instala-se. a saudade perturba. a angústia persiste. o corpo envelhece. a voz enfraquece. a certeza desperta. a crença segura. a verdade transforma. o reflexo enegrece. a vontade aniquila. a suspensão devora. a vida urge. o tempo voa. a alma envelhece. o corpo transforma-se. o amor foge. a vaidade aperta. o tempo devassa. o amor permanece. a verdade segura. o amor. 

12/09/2019

reveLation

Procuro por ti no odor da minha pele quente.
Preciso ver-te para te saber no tempo.
Construo uma ideia de ti emersa no desejo que cresce em mim.
Idealizo, imagino-te feito de azul e de luar
de mar e de sol
de frio e de lava. 
Imagino-te sobre minha pele com a intensidade com que a tinta acaricia esta folha de papel
eu folha, tu tinta
eu pauta, tu melodia.

Sento-me na aresta da pedra a escutar teu nome nas asas do vento.
Procuro por ti no limiar do tempo até me desfazer no segredo que se revela em mim.

fEveR

a febre despe-me de frente ao espelho.
a casa está escura. não há nenhuma luz que possa entrar aqui, agora, neste preciso momento em que olho - sem ver - meu corpo desnudado.
não me reconheço. não me encontro na imagem que se reflecte na escuridão. 
a febre alivia-me o devaneio enquanto me tento segurar.
tenho os dedos emagrecidos na pele envelhecida a acariciar a parede fria.

sabes que faz frio quando está escuro?

dispo-me de frente para mim e, em delírio, encontro a certeza de ti no meu abraço. 

começo sem ti. 
a verdade é que não chego longe. 
é mais fácil dizer sem dizer. ficar em silêncio. remeter tudo para a indiferença. evitar. anular. não olhar.

se olhar para ti agora estou seguro que me perco. de verdade, me entrego sem questionar rigorosamente nada. 
começo sem ti. 
se não vieres, a verdade é que eu não vou chegar até mim.