27/01/2020

emunah

diz-me,  
Senhor de mim, 
como chegarei ao lugar certo da tua perfeição se não me encontro para além da escuridão que insiste em repousar em torno 
- e por dentro - 
de tudo o que me fez ser 
- inteiro -
assim?

.

toco no final de cada palavra que te não ouvi dizeres.
sinto, 
na ponta de meus dedos, 
a letra escrita a tinta negra por dentro da memória que guardo do que não chegou a ser dito.
construo,
por dentro dos meus olhos cerrados, 
a  história que não chegaste a contar.

sinto saudades da praia que corre por dentro da tristeza do inverno,
do abraço da areia nos pés enregelados enquanto a pele corre mais lenta que o vento que navega o voo das gaivotas cansadas.
sinto a tristeza inteira a desfazer-se em pó das estrelas que quedaram,
sem nenhum nome,
na noite do firmamento.


toco-te no final de cada palavra que te não disse.
sopro, 
na tristeza da tinta que me escorre dos olhos, 
o vento que te leva nas asas das gaivotas,
de volta até ao mar cansado do inverno. 

26/01/2020

pArtIr

deito as mãos no rio enquanto partes.

se te olhasse agora, sabia reconhecer que nunca estiveste - verdadeiramente - aqui.
se te olhasse a sair, saberia como nunca tinhas chegado a chegar aqui.


mas a verdade é que te não olho.

olhar-te seria ter de me ver a mim e tudo o que permiti que acontecesse aqui
e isso seria como cravar a água inteira do rio - gelada - por dentro do meu sangue 


até eu desaparecer. 


por isso deito as mãos no rio na esperança vã que todo o meu corpo parta na maré do princípio da manhã
e que tudo o que me trouxeste ao lado errado de mim, desapareça nos primeiros raios de luz que trazem a possibilidade da salvação nas asas da sua verdade.

se te olhasse agora, seria eu inteiro como um rio porque me desfaria em lágrimas frias da maré do que houve no lugar do meu sentir de ti
até tu me condenares ao lugar mais solitário de todos - aquele em que nos enganamos e nos perdemos de nós na consciência fera de termos visto tudo sem querermos ver nada. 


deito as mãos ao rio enquanto me gela o sangue
e parto nas ondas da maré,
até começar em mim um novo dia.

18/01/2020



aguardo que entregues teus dedos na pele da minha alma.




esPerA

Espero a esperar sem saber que espero e espero a esperar o que espero.
Quero sem dizer que quero o que quero sem o querer.
Evito o inevitável sem saber como o evitar.
Grito sem ouvir a voz até que o silêncio seja tudo o que permanece por dentro do grito. 
Caminho sem me mover até que o caminho seja o tempo em que parar é tudo o que pode ser caminho. 


Espero a esperar o que quero evitar no grito silencioso do caminho que ainda não o é. 

14/01/2020

sou uma espécie de saltimbanco que se arrasta nas misérias do teu esquecimento.
meu mundo é o que fica por dentro de ti e que tu guardas tão longe, 
imensamente longe de mim. 
deixei o corpo à espera de chegares mas foi o vento que assola o inverno que me cobriu,
que me amou, 
que sussurrou meu nome na voz que padecia dentro da pele da minha inteira comiseração.
cantei à noite o meu fado triste até me desfazer em lágrimas e perder a voz pelo caminho. 
no fundo, pensei sempre que não ficarias tão perdidamente longe, 
que eu não teria lugar no teu esquecimento, 
que o caminho te traria de volta na primavera.
agora, a verdade é que salto de memória em memória até me esquecer qual era o caminho que te levaria de volta até aqui. 
e perco, na voz que era teu nome, 
toda a esperança de me reencontrar.

06/01/2020

Respiro a saudade do momento exacto em que ensandeci.
Recordo como tudo foi claro, 
como tudo em mim encontrou sentido, 
como todas as palavras se alinharam no poema, 
como todos os fragmentos de meu corpo se entregaram, sem medo, nas asas do mar.

Reflicto, agora, a pureza do lugar preciso em que perdi a memória do outrora.
Aquilo que fui, tudo o que havia no antes, 
remetido ao mais longínquo exílio,
ao mais profundo dos aniquilamentos,
o mais recôndito dos lugares que podem ser lugar. 

Respondo o silêncio que o mundo me entrega sobre as mãos, do mesmo modo que a paz responde aos ventos bélicos: 
a repetir meu nome,
até que a exaustão tome posse de vós e vos conceda um sofrimento semelhante ao que persiste em mim. 

Mergulho, enfim, na certeza da serenidade que repousa nas asas renascidas em meu corpo e seguro-me no lugar mais insano que reconheço
completamente,
como o único em que posso, 
verdadeiramente,
existir.  

03/01/2020

Caminho descalço sobre a pedra. A pele a arder sobre o frio da madrugada.
Caminho como se parar fosse a mais impensável de todas as possibilidades.
Pe ante pé, numa aresta feita de gelo fino que atravessa o lugar mais recôndito do interior da minha alma.
Caminho como se caminhar fosse o único prenúncio possível. Como se seguir fosse a última inevitabilidade. Como se continuar pudesse ser o meu derradeiro reduto.

Sinto no corpo a vertigem que vem com a inevitável certeza da queda sobre o abismo que se abriu por dentro de mim.
Há uma distância que o meu corpo sente como intransponível e minha razão aceita como a condenação perfeita da salvação adiada.
Caminho sem saber qual o destino que me aguarda do lado invisível das coisas que ficam por dizer.
Guardo cada memória pelo tempo absolutamente necessário, até conseguir libertar-me do medo.
Anseio reconhecer em mim os sinais do retorno da certeza que residia no lugar de mim.
Correm lágrimas pela minha pele a lembrar-me que o caminho é feito do que ficou na dor e no frio do ter podido ser.

Caminho descalço sobre meu próprio corpo feito em pedra.
Um aroma a jasmim na noite enovoada pela insónia.

Cheira a jasmim enquanto tudo arde por dentro da vertigem.