Queimo na pele a tua ausência. Sinto
a tua boca mergulhada na minha distância e recordo a dimensão eterna que
residia no teu beijo. Rasgo a tua voz na violência do meu pensamento. Corto o
sangue que me escorre das mãos e deixo de ver a nitidez de mim. Danço absolutamente
ébrio na intensidade esquecida da noite fera que me traz até ti e me deixa
depois completamente só. Verto-me no asfalto e espero que alguém me dilacere e
me desfaça de encontro ao gelo da estrada. Evado-me na certeza de que tuas mãos
me cobriram os olhos de todas as vezes que não pude chorar-te, me calaram o
grito de todas as vezes que não pude chamar-te, me seguraram o corpo de todas
as vezes que me deixei cair na imensidão da insuportável solidão de ser eu
mesmo dentro de mim. Queimo na pele a marca da tua ausência. Olho em redor e
não vejo muito para além do nevoeiro que chega com a manhã dos dias que
continuam a vir, um atrás do outro, de passos mansos e agressões atrozes. Deixa-me
recordar-te até ao dia em que o meu sangue se esqueça de respirar. Deixa que
teu beijo percorra todo o meu corpo e eu padeça de tanto te amar. Emolo-me na
certeza de que não regressas mais a mim.
23/03/2016
Sossega. Hoje já chega. Não tenhas
pressa. A noite já começou. Já quase que não faz frio. Ainda há gelo no chão
mas quase que já não faz frio. Podes passar na sombra e esperar que o dia comece.
Podes olhar para mim e mesmo que não me vejas não precisas ter receio. Vou estar
no mesmo lugar em que me deixaste.
12/03/2016
"I don´t want to wait in vain for your love"
Creio que estou a chegar ao final
da minha capacidade de te esperar. Queria ter podido esperar mais tempo. Queria
ter podido ser melhor mas só consigo ser melhor quando estás e tu não estás
aqui. Procurei-te na cidade pela noite dentro a ansiar a tua voz. Perdi-te no
começo de cada rua, no virar de cada esquina, no passar de cada fracção de
tempo. Perdi-te irremediavelmente da primeira vez que te toquei. Perdi-me
indefinidamente da primeira vez que me olhaste. Morri na certeza de que existir
era apenas em ti e por isso sou hoje o limbo do que existe aquém do que existe
em ti. Queria ter podido ser melhor. Prometi que iria sempre ser melhor e não
cheguei até ti. Estou a vaguear na aresta da minha capacidade e temo que não
tenha mais por onde andar. Espero-te, em vão, desde que comecei
a amar-te e espero-te ainda e depois e antes e sempre. Mas creio que não terei
mais possibilidade de continuar. Sabes, agora que tudo em mim parece querer
desaparecer, deixo de novo de ser o suficiente para te chegar. Compreendo tudo
o que acontece em ti e abandono tudo o que acontece em mim na esperança eterna
de que um dia possas voltar a cruzar-te comigo no começo de uma qualquer rua
numa qualquer noite em que minha alma não seja apenas uma sombra de mim.
gaIvotA
Está tudo a desparecer. A desvanecer.
A transparecer a antiguidade e o desespero. As paredes choram o salitre e a tinta desfaz-se na inteireza do pó que já não abandona este lugar. Caem as
madeiras e os tectos. Rangem os soalhos e as desgraças. Reza-se a história e
desaparecem os personagens. Aqui e ali há um resto de uma memória apagada no
rastro frustre das asas de uma gaivota adoecida pelo ondular do mar. Nada faz
falta aqui se não um recomeçar. Do princípio. Longe deste fim que se aproxima
com a velocidade das coisas que se não desejam. Queria partir e não consigo. Meu
corpo está preso nas garras do que não chegou a ser a vida que era suposto ter
sido vivida. Está tudo a desvanecer. A cair. A apagar-se. Vai ficar apenas este
enorme lugar onde tudo se passou como se nada tivesse sido. Cedem as madeiras e
cedem os telhados sobre o voo de uma gaivota envelhecida. Gritam as ondas e
grita o vento e gritam as vozes dos que morreram aqui e deixaram tudo por
terminar. Cai a tinta das paredes e caem as paredes dentro de si mesmas e levam-nos
consigo. As memórias são apenas pó do que restou aqui a marcar os lugares
certos das coisas incertas. Queria ter podido ter a liberdade de partir para
sempre e para sempre estou condenado a ser o pó deste lugar. Indefinidamente,
até que a minha existência seja, serei o lugar em que tudo desvanece e queda,
como uma gaivota que em pleno voo desiste de existir e desafia a gravidade até
encontrar o que possa ser o seu lugar certo para a queda.
09/03/2016
02/03/2016
en pAssAnt
Não sei o que é este movimento
que acontece em mim de cada vez que desapareço. O mundo deixa de me encontrar e
eu sento-me e espero. Trespassam-me as pressas dos outros que me não vêem e me
atravessam como se nada estivesse no seu caminho. Como se eu não estivesse no
seu caminho. Como se eu não existisse junto deles.
De cada vez que desapareço, o
mundo deixa de me saber e eu sinto a liberdade de poder ser qualquer coisa para
além disto. Revejo-me fora do que existe em torno de mim e sobrevoo tudo o que
acontece como se não estivesse.
Vivo sem viver. Existo sem
respirar. Quedo sem sequer conseguir andar. Não sei o que é isto que acontece
em mim mas encerro as muralhas que durante anos construí e fecho-me na torre. Nada
me toca aqui. Nada me pode ferir aqui. Olho quem passa e quem me ultrapassa com
a mesma inocência com que me vejo a morrer. Sou uma sombra do que resta
acontecer em mim e espero enquanto o mundo fica cego do meu respirar e me
abandona na esquina da vida que fica inteiramente por viver.
nãO me Fales
Não me fales da morte enquanto
aqui estou. Não me olhes como se soubesses que o meu mundo vai terminar. Não to
permito. Deixa-me estar dentro deste lugar que reservei à minha sólida angústia
de me saber vivo enquanto morro. Deixa-me caminhar e deixa-me correr até eu
cair. Deixa-me segurar nos dedos a areia fria da praia que ainda existe em mim e
deixa-me dançar como se amanhã a música não fosse terminar. Deixa-me gritar as
vezes que eu quiser, o nome que eu quiser, e não me julgues. Nunca me julgues. Quero
ser quem decidi ser até ao fim do que começou em mim. Não me questiones, não
perguntes porquê. Deixa-me ir assim, na ilusão de que não parti e na certeza de
que o mundo continuou a acontecer apesar de mim. Deixa-me sonhar na minha
infinita tristeza de ter de partir, mas permite-me ainda sonhar. As vezes que
eu quiser, as vezes que eu precisar, deixa.me sonhar que ainda estou aqui e que
meu caminho pode ser mais longo, pode ser mais inteiro, pode ser mais do que
apenas isto. Deixa-me olhar-me no espelho para me recordar quem fui, não este
corpo que vejo agora aqui de fronte da minha finitude, mas aquele que bailou a
vida sem ter medo de cair. Lembra-te, nunca tenhas medo de cair. Há sempre areia
para te segurar nos dedos. Há sempre mar dentro de ti. Dentro de nós. Dentro do
olhar que encerro e se despede em mim. Não me fales da morte enquanto ainda resiste uma réstia de vida em mim.
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