canta-me numa morna
suspende-me nas notas quentes
e tristes
da velha guitarra com que choras.
canta-me numa morna
prometo que morrerei devagar.
vejo-te as lágrimas caídas sobre a madeira que reveste a mesa.
talvez não haja, de facto, fim para o que se sofre por dentro da voz, no interior mais fino das planícies desérticas da solidão.
a sombra das coisas que foram coisas antes de serem apenas as sombras das coisas que eram, vertem seus silêncios, em segredo, por entre os veios tristes da madeira velha.
não há nada que nos segure a queda. nem a liberdade. nem a gravidade dos gestos. só a força dos agueiros. só a paixão do apelo quente do abismo. mas nada que nos segure nos braços.
vejo o que permanece distante no reflexo triste das tuas lágrimas.
não há palavras
nem gestos
nem madeira
nem água
que possa calar o silêncio das sombras.
Tenho-te nos braços quando acordo só e me imagino à deriva.
Trago-te na saliva quando a apneia me reduz ao sentido da asfixia.
Levo-te nas mãos quando mergulho na altura inteira do mar que me esconde das marés.
Guardo-te sobre a epiderme para me vestir da tua essência e conseguir respirar.
Inalo o aroma da tua voz e deixo ecoar dentro de mim toda a gravidade solene da poesia que reside na melodia de ti.
Olho os outros que se movem na correnteza suja da cidade e penso como sou indiferente à névoa de cinza que se abate sobre o tempo.
Tenho só a pele dos braços quando acordo à deriva, no mar alto de cinzas apagado, sem me lembrar de como respirar.
há fogo a devastar os silêncios
os segredos
as ausências
os erros
os infortúnios.
há fogo a lavrar os campos
as colinas
as serras
as marés
as palavras.
há lava a cravar a pele
os dentes
as bocas
a saliva
a direcção.
há fogo a queimar o interior
de mim
de ti
de nós
de vós
de todos.
resta
esperar
em apneia
pelo regresso
do prenúncio
da chuva.