31/05/2023

canta-me numa morna

suspende-me nas notas quentes

e tristes

da velha guitarra com que choras. 


canta-me numa morna

prometo que morrerei devagar.

23/05/2023

vejo-te as lágrimas caídas sobre a madeira que reveste a mesa. 

talvez não haja, de facto, fim para o que se sofre por dentro da voz, no interior mais fino das planícies desérticas da solidão. 

a sombra das coisas que foram coisas antes de serem apenas as sombras das coisas que eram, vertem seus silêncios, em segredo, por entre os veios tristes da madeira velha. 

não há nada que nos segure a queda. nem a liberdade. nem a gravidade dos gestos. só a força dos agueiros. só a paixão do apelo quente do abismo. mas nada que nos segure nos braços. 

vejo o que permanece distante no reflexo triste das tuas lágrimas. 

não há palavras

nem gestos

nem madeira

nem água

que possa calar o silêncio das sombras. 

22/05/2023

 (...)

Darkness starts inside of things

but keeps on going when the things are gone.

(...)

Darkness Sarts by Christian Wiman

21/05/2023

Tenho-te nos braços quando acordo só e me imagino à deriva. 

Trago-te na saliva quando a apneia me reduz ao sentido da asfixia.

Levo-te nas mãos quando mergulho na altura inteira do mar que me esconde das marés. 

Guardo-te sobre a epiderme para me vestir da tua essência e conseguir respirar.

Inalo o aroma da tua voz e deixo ecoar dentro de mim toda a gravidade solene da poesia que reside na melodia de ti. 

Olho os outros que se movem na correnteza suja da cidade e penso como sou indiferente à névoa de cinza que se abate sobre o tempo.

Tenho só a pele dos braços quando acordo à deriva, no mar alto de cinzas apagado, sem me lembrar de como respirar.

09/05/2023

há fogo a devastar os silêncios

os segredos

as ausências

os erros

os infortúnios. 


há fogo a lavrar os campos

as colinas

as serras

as marés

as palavras.


há lava a cravar a pele

os dentes

as bocas

a saliva

a direcção. 


há fogo a queimar o interior

de mim

de ti

de nós

de vós

de todos. 


resta

esperar

em apneia

pelo regresso 

do prenúncio

da chuva. 

07/05/2023

pousa a mão na terra. 

a pele no alcatrão. 

os dedos no fogo e os lábios no carvão. 

pousa o corpo na terra.

o calor no chão. 

a água no tempo e o tempo na mão. 

larga o sangue na terra

e a despedida calada.


a partida 

depois de chegada

deixa de ser partida.