31/10/2010

Podes passar a lâmina pelos meus dentes. Já não faz diferença.
Podes passar o ferro quente nas minhas costas as vezes que te apetecer. Já não tem importância.
Podes deixar-me de frente para ao muro que eu não vou abrir os olhos desta vez. É indiferente para onde me viras. Onde me deixas. Onde me abandonas.
Esquece-me quando começares a andar. Não te lembras? Já não estava aqui desta vez. Já não estava aqui desde a última vez. Já não era eu. Porque não te lembras?
Mente o resto das palavras que faltam na frase que me vai completar.
Honestamente que não quero saber o que falta porque o que falta já não vai trazer nada de novo a este resquício de tempo que guardo no sangue que me escorre da língua.
Passou tempo demais e eu agora, desde há muito tempo, que não consigo.
Confundo-me na vontade, nas palavras, nos gestos. Confundo-me na dança, atrapalho-me nos movimentos, esqueço as linhas que devia seguir e deixo cair tudo no chão. Ando dois passos tão rápido como recuo três. Agora acabou. Nem sequer vale a pena tentares de novo porque eu não vou ver nada.
Vou estar virado de frente para a merda do muro de olhos fechados à espera que o tempo acabe de me torturar.


18/10/2010

apneia

Sustém-me em apneia.
Conta até três.
Fecha os olhos como se não quisesses ouvir nem mais um ruído deste mundo.
Conta até quatro.
Segue-me as linhas todas do corpo como se aqui fora fosse de dia.
Sustém-me enquanto conseguires.
É como se estivessemos submersos e tudo em volta fosse água. Sentes?
Conta até cinco.







Agora respira.

17/10/2010

lonjura


Quando a encontrei, estava sentada no cimo de um muro alto, na berma da estrada.
Não dizia uma única palavra. Não expressava nenhum som. Olhei-a como se olham as coisas que estão no cimo de nós e esperei que me olhasse de volta. Insisti até a posição do corpo me dizer para colocar os olhos sobre a terra.
Havia lama na berma. Tinha chovido toda a noite. Algo me fazia crer que ela teria ali estado o tempo inteiro que uma noite leva a passar. Debaixo da chuva. No cimo daquele muro.
Chamei-a pelo nome e recordei-me de como adoro a forma como tu dizes o meu. Sorri como quem se lembra das coisas importantes da vida e retomei a olhá-la. Chamei mais uma vez.
Ela acabou por olhar para mim e a ver-me como se vêem as coisas que se não querem ver. Olhou através do meu corpo e não ligou nenhuma importância ao facto de estar ali, parado, com os resquícios da noite de chuva nos pés e na roupa.
Percebi que tinha saído descalço de casa…há quanto tempo não saía assim? Como poderia ter-me esquecido? Como podia ainda não ter sentido o frio da lama – sim, como estava fria sob o cerco do frio de Novembro – a passear-me na pele.
Imaginei que me tocavas nos pés à medida que recomeçava, tão lentamente, a chover. Percebi que sempre fez parte de mim – ainda antes de te ver pela primeira vez – essa forma como sorris. Sempre. A parte de mim que ainda não tinha encontrado.
Percebi, quando recomeçou a chover fortemente, o motivo pelo qual ela permanecia sobre o muro, inexpressiva. É que do cimo das coisas, podemos ver mais longe e na lonjura, ela estava certa que o sol acabaria por chegar.
Soube o lugar de ti enquanto retomava o caminho de regresso a casa. De pés despidos sobre a berma desta estrada fria, reconheço-me no cimo do muro, a olhar a distância e a saber por certo que, um dia, também tu acabarás por chegar.

07/10/2010

Prelúdio

Parar entre dois mundos: tudo é feito do ser da aparência, a aparência de ser. É vazio atrás de vazio, mentira atrás de mentira, jogo atrás de jogo, manipulação atrás de manipulação, disfarce atrás de disfarce, logro de logro, adulação de adulação, aniquilação de aniquilação, inverdade de inverdade – é uma vazante mal cheirosa e viçosa de nada. Tiramos prazer de nada, sorrimos face a nada, abraçamos nada, adormecemos com nada, acordamos para nada, vivemos de nada. Esta pauperricidade que nos invadiu e percorre o nosso ser em vez de sangue, que usa o pulsar cordial na pujança da vitalidade é a nudez e é feia, para além de crua e de desproporcionada, é asco feito nojo. Nojentos que a morte não dignifica e a vida perpetua.

Onde está a lucerna que tantos e tão antigos proclamaram acerca da humanidade? Que é feito dessa faísca que chispa da fogueira anímica e sustém o universo, no cantar de Orfeu? A conversão euridiciana será sempre a nossa fatalidade e a esperança somente repousa em Cronos, que nos devora, inimbuchável, da nossa miséria feia e de asco.

ra.va.ge.

Se pudesse, segredava-te no corpo que me dói tudo aquilo que deixei acabar aqui. E, logo de seguida, gritava-te dentro do vazio que sobra em mim, até sangrares nos dedos. Colocava meu escutar sobre a tua boca e esperava que fechasses os olhos e dissesses…
dissesses…
que…dissesses…
Levava os dedos ao teu olhar fechado para que me visses a desaparecer e dissesses…e…
Despia a roupa toda na noite gelada – faz frio aqui, lembras-te? – e esperava que abrisses a boca para me veres quebrar e dissesses…
Se pudesse, segredava-te nos dedos a que sabe o meu sangue e não esperava, mais, que me olhasses nos olhos e fechasses a boca no silêncio sepulcral que só tu podes saber.
Se pudesse, obrigava-te a gritares dentro do meu vazio que já não há mais nada que me possa doer. Que dissesses…
que dissesses…
que
agora
não
vai
doer.

Mas só estou eu aqui. Lembras-te?

04/10/2010

"9 Crimes"

(Damien Rice feat. Lisa Hannigan)

Leave me out with the waste
This is not what I do
It's the wrong kind of place
To be thinking of you
It's the wrong time
For somebody new
It's a small crime
And I've got no excuse

Is that alright?
Give my gun away when it's loaded
Is that alright?
If u don't shoot it how am I supposed to hold it
Is that alright?
Give my gun away when it's loaded
Is that alright
With you?

Leave me out with the waste
This is not what I do
It's the wrong kind of place
To be cheating on you
It's the wrong time
She's pulling me through
It's a small crime
And I've got no excuse

Is that alright?
I give my gun away when it's loaded
Is that alright?
If you dont shoot it, how am I supposed to hold it
Is that alright?
I give my gun away when it's loaded
Is that alright
Is that alright with you?

Is that alright?
Is that alright?
Is that alright with you?
Is that alright?
Is that alright?
Is that alright with you?

No...
“Se o vento passar por aqui, amanhã, diz-lhe que não estou.
Diz-lhe que já parti.
Diz-lhe, por favor, que já não vou voltar mais. “


03/10/2010





As casas estão tapadas com panos pretos nas janelas. Cheira a cinzas. Cheira a solidão quando atravesso a rua.
Os passos estão parados. As pessoas amontoam-se junto à berma. Não na estrada. Permanecem na berma na esperança vã de que algo os venha tocar nas faces arrefecidas. Cada um mais só de que o outro. Juntos, no mesmo espaço fingido, e ninguém se entreolha.
Faz frio aqui. Faz frio antes de chegar à água. Atravesso as ruas sozinho. Mais ninguém vem. Mais ninguém olha o resto do caminho.
Junto ao rio, todas as pedras escorrem sal como se o sal fosse tinta como se a tinta fosse pele.
A possibilidade do sonho é uma arma dirigida ao pano preto que me cobre os olhos. O dentro. Esvazio-me enquanto ouço a água a avançar.  

Cobre-me com panos pretos e encerra as janelas. Não quero mais atravessar nenhuma rua.



02/10/2010


tenho,
nas mãos,
um poço
vazio,
sem fundo,
onde
me deixo
cair.