27/05/2020

Atravessas, descalço, a ponte de pedra que te aparta do dia que foi, em si mesmo, tumulto.
Inalas o silêncio insuportável da noite quente por dentro do corpo lânguido e sentes como as paredes brancas do quarto velho se encerram sobre ti.
Cada segundo que passa, a confirmação de que estás imerso na incontornável imensa comiseração que habita o deserto pela certeza de que nada, aí, pode chegar ao momento certo de terminar.
E é deserto o que a noite hoje te traz.
Vigil, tacteias o escuro que só se encontra por dentro das sombras que abraçam os sonhos lentos, e entoas uma qualquer prece que te possa conduzir ao lugar certo.
Ingénuo, seguras a languidez na superfície da pele enquanto as paredes desabam.
Atravessas,descalço,o deserto que se instalou, lento e quente, dentro da insónia que te beija na escuridão do quarto caído.

26/05/2020

asPeTTa

por vezes,
esperar é uma coisa doce.
outras vezes,
puro fel.

esperar,
por vezes, 
é uma alegria nas mãos de uma criança que aguarda, 
ansiosamente, 
a sua recompensa.

e esperar, 
por vezes,
é ter a alma agrilhoada em correntes de ferro 
enquanto corpo se move no innuendo de uma liberdade iludida no vulto de uma quimera.

esperar,
por vezes, 
é lugar onde permanece uma angústia incerta,
uma incerteza angustiante.

esperar,
outras vezes,
é um lugar devasso onde não cabe a esperança, 
a paciência, 
ou a compaixão. 
mas,
por vezes, 
é um lugar infinitamente paciente onde não cabe a pressa dos dias que se dissolvem. 

esperar, 
hoje, 
é uma sensação que perdura pendurada na dor
a ver o tempo imenso a pesar na tão próxima
iminência 
de tudo poder terminar 
assim
abruptamente 
e depois
ficar tanto por ter sido. 

24/05/2020

as palavras que ficam por dizer, não são mais do que as penas caídas dos pássaros que fogem da solidão que habita o lugar de silêncio imerso no peso da noite vigil
nasce,
no lodo,
a imensa possibilidade da vida
terra, água, húmus, musgo,
restos mortais do outrora vivido agora a escorrer nas paredes frias
e lentas,
do lado mais pantanoso da vida.
escorre-nos
pelas mãos
o elixir do tempo
ferido.
os telhados anunciam o norte
as andorinhas indicam o caminho para sul.
respira,
no lodo,
a necessidade do regresso.
a casa.

18/05/2020

Teu corpo desfeito,
preso na madeira velha
sob as ondas do mar triste
que te leva na vida o último fôlego.

Teu olhar
terno e decidido,
entrega-se sem se render
e rende-se sem se entregar.

Nas arestas de Teus lábios
permanece a certeza da constância,
a constância da certeza,
o limite do amor.

Tuas mãos rodeiam as estrelas,
seguram o tempo no espaço aberto
tocam a pele do sangue
num gesto eterno de perdão.

Teu corpo
o testemunho
Tu'alma
a confirmação.

Nasce de tua dor,
paz e luz e
de teu olhar,
caminho e sentido.

Fazes-te o mar inteiro
no momento do abandono.
E regressas,
no mistério da alvorada,
com o suspiro da vida inteira por dentro.
Ouve minha voz enquanto te mostro o que ficou por dentro das linhas de arame negro.
Há uma besta que brame seus anseios no lugar onde a terra encontra um braço de água.
A imagem de ti suspensa no meu olhar já vazo, é o lugar onde a tinta se derrama.
Ouve a besta que me grita no desejo e me desarma o corpo no arame que se desfez na água pintada de negro.
Sente a besta que se perde em mim. 

10/05/2020

fico sentado na estrada húmida a ver minha mente desfazer-se dentro da chuva de maio.
a alvorada insistiu em levar-me pela mão até ao princípio da alegoria. até ao lugar que é o momento em que desejava, 
ardentemente,
perder-me 
verdadeiramente.
passei pela vida a caminhar no cristal fino da inquietude que dança rasgada sobre o basalto que se faz ser base sob meu caminho de lava e de vidro.
procurei tentar saber sempre mais do que o que era apenas visível aos olhos fechados, enquanto a água me lavava o corpo da angústia de se saber ser algo que um destino qualquer escreveu com tinta dourada nas linhas desfeitas da estrada molhada.
fico sentado com o corpo dormente enquanto a pedra se transforma em vidro,
enquanto a chuva se encontra com o fogo,
enquanto o vidro se entranha nas linhas da pele, 
enquanto a minha mente se entrega ao ardor.

deixo-me a arder,
até que a história termine.

09/05/2020

sibila a água
no corpo que é estrada
na estrada que é caminho
no caminho que é lugar
no lugar que é certeza
na certeza que é tempo
no tempo que é palavra
na palavra que é segredo
no segredo que é deserto
no deserto que é possibilidade
na possibilidade que é inevitabilidade
na inevitabilidade de ser
a chuva
e da chuva saber a sangue
e do sangue saber a lágrimas
e das lágrimas saberem a distância
e da distância saber a confirmação.

sibila a chuva por dentro do vento que é noite dentro de um sonho ébrio.
Sento-me sobre ti
a segurar o mundo por dentro
da extremidade mais distante
na pele

Abraço-te sob o corpo
enquanto o tempo se torna água
e a água se torna finitude
na pele

Toco-te nos lábios
e sinto-te por dentro a navegar
o lado mais estranho que me habita
na pele

Guardo teu nome
dentro da fé
que fica a suster-se aqui.
Despida.



Esta é a confirmação 
absoluta
da inevitabilidade 
da queda
que fica 
(in)sustentada
na finitude 
do por ser.

02/05/2020

deSencoNtro

podia começar a história que te queria contar, pelas letras que se cumprem na palavra em que te guardo. 
escolho começar exactamente no lugar em que te confirmo. no lugar onde agora descanso o sentido. na margem certa do rio.
podia dizer-te que debaixo desta luz, 
morna e terna, 
consigo ver tudo melhor. aqui, neste lugar onde tu eras só tu e mais ninguém tinhas que ser, e eu era só eu mas era, ainda, a possibilidade do lugar onde o rio poderia repousar.

se for um lugar de encontro o que eu verdadeiramente procuro, porque é que não consigo parar de caminhar?
pode o encontro encontrar-se no caminho daquele que não cessa de caminhar?
pode o caminho levar ao encontro mesmo se o encontro se desencontrar no caminho?
posso pedir que o caminho possa mudar e que o cansaço possa não vencer a guerra que acontece em mim de cada vez que o fogo me faz recuar, mas a verdade é que o caminho não cessa de ser caminho e a demanda não cessa de ser o caminho em si. 

podia começar a história do que acontece em mim, deitando-me sob a luz de tuas mãos, mas aqui, nesse preciso lugar, reside a certeza de que 
se me tocares me desfaço em cinzas 
se me segurares me emolo até desaparecer 
e só restaria a possibilidade eterna que permanece imóvel na linha ténue que divide a verdade, do lugar que reservei ao inferno que habito. 

se o verdadeiro significado reside no aprender a tocar os limites mais profundos da vida vivida, onde fica a possibilidade do encontro do lugar certo para o encontro se o encontro é, na verdade, tudo o que acontece em mim enquanto navego os limites das arestas do caminho de minha vida sem nunca tocar o fogo que arde nas margens do rio que desagua nas tuas mãos abertas.