27/12/2020

DePois

É quando olho para trás, para o que ficou à nossa frente, que compreendo tudo. Compreendo que aqui não é um lugar de cântico dos cânticos antigos. Aqui é um lugar feito de quimeras pelo que o amor é bordado em pontos de nuvem e banhado em resquícios de ilusão.

Talvez, olhando agora distanciado do momento exacto em que te permiti saires de dentro de minha pele, tu não sejas mais do que um lugar místico onde permiti que a minha insanidade se repousasse pelo tempo necessário para eu (re)acordar por dentro da vida materializada na (im)possibilidade.

Eras um lugar de cântico enquanto eu sonhava num sono inquieto. 

És agora lugar de canto do cisne que parte, enquanto eu vivo. 

20/12/2020

ton odeur brule encore sur ma peau.


je suis presques a devenir en cendres par dedans. 

nOrTejO

respiro fundo enquanto atravesso a ponte. por cima do rio. por cima da neblina que acorda o nascer do dia e que traz, por dentro, um manto inteiro de possibilidades. 

sinto o vento gélido que acaricia os primeiros raios de sol. sinto o sangue a ferver por debaixo da pele que arrefece quando o vento chega até aqui. sinto o suor a percorrer-me o corpo. um tremor ligeiro que se apossa do ventre. uma angústia deliciosa. 

vou vendo como o meu lado do rio fica para trás. já não posso recuar. não há como voltar ao lugar de onde se partiu agora mesmo. quando inicias o caminho, deves manter-te no caminho. 

demoro-me neste pensamento e revejo o princípio da história. 

hesito. recomeço. suspendo. recomeço. acelero. recomeço. 

atravesso o tempo o mais depressa que consigo para poder minimizar o atraso que se adia em mim. conto chegar no tempo certo mas o tempo ilude-me na (in)certeza de estar a tempo. como a manhã que emergia do frio e finalmente acaba por se entregar nos braços do calor improvável de dezembro.  

é no teu olhar que encontro a imensidão da curiosidade. o fenómeno incompreensível da necessidade de compreender tudo o que acontece em nós. o mundo é um lugar demasiado grande para ser compreendido em todas as suas dimensões. assim como nós. assim como eu que tão pouco sou no (teu) mundo. 

meço as palavras. não quero que me saibas. 

ignoro os gestos. quero que me vejas.

sinto a leveza das cores apesar do negro que crês habitar em mim. sinto como se o mundo inteiro coubesse no teu sorriso. na palma da tua mão que hesita em tocar-me a face. 

acredito que o mundo para de respirar no momento em que me permites ver-te. se fosses um livro, terias ainda muitas páginas por abrir porque, na verdade, há mais para além do universo de pecados que te assolam e te fazem desfazeres parte do caminho. e é como se, por vezes, esse fosse o lugar do teu despotismo.

o rio desaguou em mim com a dimensão de um oceano e fiquei com tanto para compreender. ou talvez tanto para explicar. acordei, por dentro da noite que entrega o começo do dia, com um manto imenso de palavras por ouvir. a tua história em gotas de rio ou em pedaços de lixo ou em ideias de luxúria ou em espaços por preencher ou em (des)amores adiados. desaguaste em mim como um livro que precisa ser escrito. 

enquanto atravesso a ponte de regresso ao lugar de onde inicialmente segui, suspendo-me na ideia de que talvez seja em ti que falta construir uma ponte. o lado certo do teu lado do rio. o lado exacto da tua fragilidade. o manto de possibilidades que ainda permanece em ti. a ligação entre o que te faz e o que te desfaz. 

13/12/2020

inDifErenÇa

não há nenhuma semelhança entre nós. não há nada que nos aproxime porque tudo é a tese e a sua antítese. o verso e o reverso. o poema e a prosa. a água e o fogo. a madeira e o carvão. 

não te posso dizer o que sou de verdade. o que eu sou não tem lugar no que tu sabes. o que tu aceitas não tem lugar para o que eu virei a ser depois. 

porque te permites as perguntas se as perguntas trazem em si as respostas e as respostas tu as colocas nas mãos e as feres de palavras que se deixam ser moldadas na/pela/com indiferença de sentido quando o sentido parece/é tão distante, inevitavelmente oposto, do caminho em que te colocas. 

as perguntas sem resposta deixam de ser, essencialmente, toda e qualquer coisa porque sem resposta, uma pergunta deixa de existir em si mesma. as perguntas existem pela mera razão da existência da dimensão incomensurável das respostas que podem ser dadas.

respondo a todas as perguntas. mas fico a queimar por dentro quando as respostas não se ouvem pela razão apenas de não serem as do lado certo. as do sentido certo. as do caminho certo. respostas que não são ouvidas, deixam de ser respostas. fico a ouvir por fora o que se desfaz nas mãos e que depois se desfaz por dentro. 

as palavras têm o poder de nos fazer desfazer. a indiferença é hábil na condução da alma ao desvio do lugar onde as perguntas se permitem acontecer. se há indiferença, não há lugar às respostas que existem em mim. que são de mim. que sobram do que eu sou. 

não te devia ter respondido. poderia ter deixado a pergunta solitária, a navegar no caminho, até se poder desfazer com o tempo no mar inóspito das perguntas que perdem a sua razão à razão de não terem sido respondidas. 

as respostas que existem em mim, para as perguntas que possam vir, são da minha verdade e a minha verdade não te é tangível e remete à indiferença e a indiferença não me cognoscível. e assim, não seremos nunca nada mais que eu o carvão, a água, a prosa, o reverso e a antítese e tu sempre a tese, o verso, o poema, o fogo e a madeira.