31/07/2010

muralha

É nas noites sem par, por entre as muralhas de um castelo adormecido à meia luz do fogo, que encontras a tua voz. De frente, o mar a lembrar-te de que a solidão é um lugar eterno por onde nos passeamos vezes sem conta.
Podias ter tentado perder-te por entre as escadas que rodeiam as muralhas. Mas não.
O céu estava condensado, a suster um suspiro que se encontra na razão de se ser, simplesmente, assim.
Encontraste a tua voz no lugar da terra, na proa da traineira, na insistência do nevoeiro. Encontraste-te na música, nas gentes, na razão de uma qualquer existência.
Quiseste dizer, a quem não te vê nunca, que és o tudo que pode ser por entre as muralhas de um castelo. E isso, podendo ser o lugar mais inteiro da tua distância, pode ser o lugar mais perfeito da possibilidade da tua entrega.
E foi quando a noite caiu sobre a música e eu te ouvi nas palavras que eram minhas, e que encontraste a possibilidade de sair do caminho que há tanto atravessas só.

26/07/2010

Voltaire, "Cândido e o Optimismo"

“É impossível que as coisas não estejam onde elas estão.”

"Haverá coisa mais tola do que querer carregar continuamente um fardo que se quer a todo o custo largar por terra?”

"Quando não somos tidos em conta num mundo, encontramo-la num outro.”


“E que coisa é esse optimismo? Dizia Cacambo. – Ai! Disse Cândido, é a mania de defender que tudo está bem quando tudo está mal.”

"Todos os acontecimentos se encadearam no melhor dos mundos possíveis.”



Cândido e o Optimismo
VoltaireTinta da China

1ª Edição
2006

Dado a conhecer ao meu mundo por uma criatura sublime de um outro mundo sublime a quem muito agradeço!
um livro delicioso. imensamente bem escrito. intensamente cheio.
escrito em 1759. imperdivel para os curiosos da história.





24/07/2010




Debaixo das folhas não há só terra, sabias?
Preciso que saibas isso. Pode ser a última coisa que eu venha dizer.
As pessoas todas se afastaram daqui. Ninguém ficou para me contar uma história, para me olhar nos olhos e saber quem eu posso ser debaixo das folhas.
Consegues ver as linhas que desenhei? Foram a carvão. Consegues ver debaixo da areia? As linhas estão lá. Desenhadas com o que sobrou da madeira queimada. Com o que sobra do fogo.
Estão longe da água. Viste? Conseguiste ver?
Fica só um mais um bocadinho. Toda a gente desapareceu e agora só sobraram as dunas.
Há demasiado silêncio aqui e é quase como se eu também já não estivesse. Já não me ouço. E não posso errar outra vez no caminho. Desta vez não vou saber regressar. Estou demasiado cansado.
Lembras, quando corríamos juntos na areia? Lembras-te do dia em que deixámos de ter medo? Olhámos para debaixo das folhas e vimos o resto. Deixámos de ter medo.
Se pudesses ficar mais um bocadinho, de certeza que não haveria tanto ruído. Não havia tanto silêncio. Podias contar-me uma história.
Sabes... já não está mais ninguém para chegar. Já não há mais ninguém para partir. Eu sou a folha e tu estás além da terra.
Eu vou perder-me agora que não consigo ouvir nada. Não tenho medo desde que atravessámos as dunas a correr e era só deserto que vinha depois. Mas agora estou demasiado cansado para me recordar do caminho de volta.
Mas já não tenho medo de me perder outra vez.
As linhas, se olhares bem, vês que ficaram tortas. Será também o caminho torto? Talvez seja como a linha de água. Confuso, indeterminado, cheio de sal, de espuma, sem direcção definida. Talvez seja preciso errar no caminho. Ainda que depois não se consiga voltar.
Debaixo da terra das folhas há tudo o resto. Tu sabes.

21/07/2010


E só por isso escrevo – para que continuadamente me reconheça vivo no escrever, para que o sondar-me desencontradamente seja ainda uma forma de me encontrar, para que o ininteligível de mim e da vida seja ainda vida e o simples inteligível dela como vida que é.
(pág. 44)
Vergílio Ferreira
Invocação ao meu Corpo
Bertrand
3ª Edição, 1994
Então se verá que essa força que nos vive não tem princípio nem fim, é uma pura luz de se ser, imóvel, eterna, necessária. Então se verá que a coragem de enfrentarmos o insondável é a que define a nossa última luta, essa que espera a notícia de todas as vitórias na vida. Luta desigual porque não há inimigo a vencer, porque não há sobretudo vitória a conquistar.”
(pág. 29)
Vergílio Ferreira
Invocação ao meu Corpo
Bertrand
3ª Edição, 1994
Conta-me nos passos, conta-me nas pedras da calçada. Soma um mais um e descobre o que podes subtrair. Conta-me nos dedos, multiplica-me. Retira o que estiver a mais depois da divisão por dois. Não escondas nenhuma parte. Deixa tudo no sítio certo. Sou o lugar reservado ao silêncio mais cruel. Estou exausto. Sou a marca das unhas de sal na tua pele macerada pela areia. Sou o deserto aberto ao sol. O absoluto da solidão em estado puro. O lugar onde não sei terminar as coisas por começar. Sou o expoente máximo da insanidade e não tenho medo de cair. Sou o limiar do tempo, o limiar da dor, o contorno da distância do resto do mundo.
Conta-me uma história para eu adormecer. Depois podes ir embora. Depois podes não voltar. Mas agora fecha-me os olhos e deixa-me desaparecer na tua voz.

15/07/2010

"Oficio Exacto" - Gonçalo M. Tavares

"Persistir em dar forma ao que permanece escondido sob a escuridão (e que jamais viste) poderá ser considerado teimosia inconsequente, mas, também, o mais puro dos actos de escultor. "



Gonçalo M.Tavares
Breves Notas Sobre o Medo
Ed. Relógio D'Água
2007
O deserto tem a cor que lhe souberes dar. Assim como o mar. Assim como a areia que te cobre os pés e as mãos. Como o sentido do caminho.
O mundo tem as cores que conseguires ver. Por todo o lado. Em cada lugar. Em cada tempo.
E talvez até se possam ver os cheiros que cada cor tem. Magnólia. Jasmim. Camélia. Sol. Chuva. Tempo.
O deserto tem a cor que se pode saber ver.
Enquanto se souber caminhar de pés descalços sobre a areia quente e sobre a terra molhada, é possível chegar a saber (quase) tudo.

14/07/2010

Podia até fazer de conta que não estás, que nunca estiveste aqui.
Aproximar-me à beira da tua sombra e ver-te sem te ver.
Tocar-te na ausência de ti e saber o teu lugar por ser.
Unir-te no que sobra de mim (como se em mim restasse alguma coisa)
Sem saber exactamente o que unir significa porque não chego a ti e é
Como se mais nada houvesse entre aquilo que nos separa e aquilo que nos colocou no mesmo lugar sem tempo.
Antes de tudo o resto, chegaste para partires das minhas mãos. E isso vai ter de ser o resto do que falta.



je te vais laisser disparaître.

13/07/2010

O


Segura-me os dedos das mãos enquanto me viro de costas.
Puxa a pele. Toda. Inteira. Não hesites.
Rasga tudo o que te parecer a mais. Até veres a carne toda. Até veres o osso.
Agora lambe.
Enquanto eu estiver assim não te vejo. Enquanto eu não te vejo, não preciso de ti.
Faz o que quiseres. Liberta-me as mãos. Coloca-te sobre o meu vazio e fode-me. Assim. Em silêncio. Como se eu não estivesse aqui e voltasses a ser só tu.
A noite não arrefeceu o suficiente hoje. Cala-te. Cala-te. Cala-te. Cala-te. Cala-te. Cala-te.
Segura-me as costas. O cabelo. Segura. Enquanto não te vejo não me fazes falta. Não digas nada. Devasta-me. Destrói-me. Hoje não sou mais do que isto. Enquanto não te vejo não me reconheço. Deixa-me de frente ao meu vazio e fecha as mãos sobre o teu sangue.
Aniquila-me. Agora. Cala-te.
Cala-te.

11/07/2010

percorro-te as feridas na língua e sinto o sal a queimar.
coloco as pontas dos dedos no contorno do sangue e sinto-te cair.
seguro-te no momento em que o tempo se esvai e o sentido se perde quase como que irremediavelmente.
e depois da iminência da queda chega o fragmento do tempo que
- ébrio e em nudez absoluta -
anuncia a lugar das coisas suspensas em silêncio.


escrito em out de 2006, aqui
http://rasgosdeluz.blogspot.com/

10/07/2010

Não tem nenhuma importância o tempo. Os dias e as noites sucedem-se como deve acontecer. Como sempre aconteceu. Com maior ou menor rapidez o tempo foi-se sucedendo e hoje chegámos aqui. No fundo, o mundo é capaz de ter uma ordem pré-estabelecida. Ou qualquer coisa de aproximado. Ou nada do género mas, em boa verdade, a vida acontece no espaço efémero em que o dia e a noite se tocam.
Hoje olho para mim e encontro tão pouco. Olho para a ausência de ti e vejo o caminho inteiro que eu fiquei por percorrer. E talvez tenha medo. Talvez não saiba bem onde estou. Talvez não consiga reconhecer, com precisão, o lugar que ocupo aqui.
Tu não estás aqui. Não estás aqui há tanto tempo que dentro do meu sangue e da minha pele parece uma eternidade – como se a eternidade se pudesse sentir como algo de mensurável – mas foi tudo ontem. Foi só ontem. Foi hoje. Agora. Neste preciso momento em que sinto tudo a desaparecer. Em que tento segurar a fugacidade dos momentos nas mãos e não sei agarrar nada.
Tento respirar. Tu sabes que eu sempre tentei respirar como se o ar fosse aquele que só passa no cimo das montanhas. Pequeno, rarefeito, cheio de ausências.
Mas olho para mim e não vejo o que me falta. Sei que sou tudo o que não sei ser e essa é a pior parte de mim e tu, tu eras a melhor parte de mim e agora eu sou pouco. E isso, na maior parte dos dias não me chega. Na maior parte das noites não me satisfaz.
Não sou aquilo que era suposto ser. Não chego a ser aquilo que era previsto. Depois de ti deixou de haver lugar para mim.
Ainda hoje escavo com os dedos em ferida a terra e as folhas e o húmus à procura do que me falta. Às vezes tenho a certeza que não vou encontrar mais nada. Às vezes acredito que vou saber procurar melhor no dia seguinte. Às vezes não sei rigorosamente nada.
O tempo tem toda a importância que eu lhe consigo dar. Hoje sei que vai ser tudo tão magoado como tem sido até aqui. Vai sendo cada vez menos. Vai acontecendo tudo cada vez com menor incapacidade. Mas quando fecho os olhos vejo os teus. Sinto o teu cheiro como se estivesses nas minhas mãos.
Deixo de existir no dia que te perder daqui.
Mas mesmo assim não estás. Não estás aqui há muito tempo. Fiquei eu a procurar o que me falta do caminho. Fecho os olhos para acreditar que vou conseguir olhar para ti de frente e sentir que me seguras as mãos outra vez. Fecho os olhos. Conto os dedos. 9.
Sabes que me resta pouco. Por mais que tente. Por mais que julgue ser capaz. Sabes melhor que ninguém quem eu fui até ti. E guardas o segredo na tua pele. Nas tuas mãos fechadas. Nos teus olhos negros a desenhar-me em asas de anjos dourados. E isso vai ter de continuar a bastar-me. Mais um dia. Mais uma noite. Até eu desaparecer.

07/07/2010

Could I be the only stone still standing in the way?
Could it be that I am absolutely unable to move aside and let everyone else pass through?
I am sure that it will only take a little bit longer.
Just a little bit longer until I realise I was never really
here
anyway.

03/07/2010

innuendo

Toda a vida fui um farsante. Joguei-te a ti e aos outros como peças de xadrez. Manipulei-te nos movimentos, manipulei-vos a todos. Fui quem quis ser, como quis ser sem olhar de frente para vocês. Míseras peças de xadrez a saltar de quadrado em quadrado a meu belo prazer. Foi assim a minha vida toda. Um teatro ao ar livre. Não te desiludas com isto, não há motivo. Lembra-te apenas que quem tu és é um fruto da minha manipulação. Não te sentes feliz? Ri-te agora que terminamos o jogo. Ri. Não tenhas medo de me dizer tudo o que tiveres para dizer. Não me faz qualquer diferença. Estou no limiar de perder tudo. E isso é a única coisa que não posso disfarçar. Pelo menos não hoje. E sabes que mais? Não me interessa absolutamente nada.

01/07/2010

everything else

Não te conheço. Olho-te no vento da rua feita de noite e não sei quem és.
Tua infinidade está muito além das minhas mãos.
Só tu podes ser como o vento.