29/11/2010

nEoMe

Não tenho permissão para atravessar o barro. Está coberto de listas negras e listas brancas e não posso passar. Não tenho permissão para dar nem mais um passo. As paredes estão a obrigar-me a recuar desde ontem, desde hoje, desde sempre. Sabes que nos sonhos são cobras e serpentes que passam sobre as memórias ridículas das coisas que suposto era terem acontecido? Recuo na certeza de que os pés vão falhar a velocidade certa e que vou ruir sobre a areia. Mas a neve vestiu o chão de listas negras. A parede a chegar até ao lugar onde eu juro que já não queria estar, juro, e não tenho forma de me suster de pé. Imagino que esteja frio o chão. Imagino que estejas frio no chão. Coberto de barro, não, coberto de neve. Sabes que está a nevar aqui dentro? Neva enquanto as paredes se deslocam num espaço que, rapidamente, deixo de reconhecer como meu. Tacteio tudo com a língua na aspereza da terra fria e sei que vou esquecer o meu nome e tudo o que vem antes. Não posso passar daqui. Espero que a neve trave o avançar desta corrente, não, desta parede de barro que agora me cobre os cabelos de tinta branca. Estou certo de que vou cair em breve. Juro que não queria. Tento – apesar de saber como qualquer movimento nesse sentido não só pareça ser perfeitamente ilusório, assim como é inteiramente desnecessário ou evitável de uma forma extremamente coerente dado que não é possível contornar a inevitabilidade da queda de um pé despido sobre a primeira neve – tactear com o que resta do sangue a possibilidade de me segurar seguramente na parede insegura que me tem feito recuar. Não tenho permissão para tentar mais nada. O barro está coberto de listas brancas e de listas negras e em nenhuma delas aparece, nunca mais, no meu nome.
Qual é o meu nome?

23/11/2010

chuva ardida

Estou e é como se não estivesse. Talvez não esteja mas esteja sem estar. Posso não estar, efectivamente, e isto seja tudo mero delírio. Ilusão. Memoria errada de um movimento errático. Ébrio. Vazio.
Sou o que resta da tua ausência. Sou o que sobra depois da chuva ardida. Sou o momento exacto em que as coisas param de ser. Posso até estar mas não estou.
Estou no lugar das coisas que já não estão e não sei voltar a estar nas coisas que são qualquer coisa outra que não isto.
Sou o gesto sem tempo. O tempo sem pele. A pele sem cor. A cor sem espaço. O espaço sem lugar. O lugar sem terra. A terra sem vida. A vida sem tempo.
Sou as cinzas do que queria ser e atirei-me ao mar. Estou mas é como se não estivesse.


19/11/2010

cc II

Quero dormir no lugar onde mais nada possa crescer. Quero deitar-me sobre a areia, não, sobre a terra, não, sobre húmus a apodrecer, e respirar tão fundo quanto consiga.
Quero dormir como se não houvesse mais necessidade de acordar.
Já não suporto o cheiro que as minhas unhas encontram no rasgar da parede. Já não tolero o sangue que me sai negro do cabelo quando me encontro de frente para os vidros. Já não sinto o que resta do meu caminhar nem recordo onde deixei a capacidade de andar.
Quero dormir como se não fosse preciso, nunca mais, voltar a despertar.
Não posso continuar aqui. Nesta sala só há tempo. Neste espaço só há espera. Nesta casa não há nenhum resto de mim para além desta minha sombra a rasgar a parede com as unhas abertas. Aqui só tenho a esperar o que se não pode esperar assim, desta forma. Aguardo que chegues com a pressa dos desesperados. Aguardo que me abraces com a força dos cegos. Aguardo que me beijes num beijo de anjo esquecido num qualquer lugar reservado ao limbo de mim, e me sorvas o que resta do meu respirar.
Se fechar os olhos agora sinto o cheiro podre que vem da minha pele. Talvez estejas a chegar. Talvez eu te encontre debaixo das folhas, da terra, da areia, do lugar onde já nada pode crescer.
Quero dormir e não mais voltar aqui.
Já não estou à espera de me encontrar no lugar em que te deixei. Devasto o que resta da ânsia para chegar até ti ou para que chegues aqui. Se me virem sorrir, sabem que o meu anjo chegou. Se me virem fechar os olhos e desistir saberão que ele está perto o suficiente.
Por favor, vem depressa. Não consigo mais estar aqui.

cc

Quero morrer.
Era tudo o que tinhas para me dizer hoje.
Quero morrer. O tempo é o que mais há aqui para passar.
Foi como quando ele me disse que não queria.
O quê?
Sapatos.
Porquê?
Porque me dói nos pés.
Mas faz frio.
Não quero.
O quê?
Sapatos.
Foi como quando me disseste que não há mais nenhum sitio para ver a vida passar. Que a vida vivida a passar assim não é vida para ser vivida.
Porquê?
Porque me dói.
Onde?
Em todo o lado.
O quê?
A vida. Dói-me a vida. Devia ter morrido ali. Devia ter morrido.
Porquê?
Porque não quero.
O quê?
Viver assim a vida sem ter vida.
Quero morrer.

04/11/2010

Compreendo o porquê exacto que te leva a não chegares aqui.

[Tão louca razão que sabe não querer saber quando sabe.]

Vejo que o deserto não pode ser um lugar para quem só sabe amar o mar.

[Que há saudade do mar somente no deserto, finge:]

Percebeste, pouco depois de tocares esta areia, que o lugar de ti não podia acontecer aqui.

[e foi assim um feito des-feito]

 Não podia ser agora.

[com desfecho:]

Sei porque é que não me tocas quando me suspendo no teu respirar.

[a distância encarnada, uma ligeira travessura:]

Sei porque não me olhas quando rasgo os pulsos e escorro o sangue como se fosse chuva.

[de seres impossível várias vezes, repetida e tragicamente, acontecida gota a gota.]

Reconheço que não saibas os passos que danço quando estás de costas para o lugar onde eu ainda consigo existir.

[Respira. Sente. Respira. Pensa. Respira… e mais um pouco, a pouco.]

Sei bem porque é que eu sou ainda um deserto.

[Acordo e sei que por detrás da janela – lá fora –  há, inevitavelmente, gente.]

Sei bem que tu vais ser sempre o mar. Longe.

[E que ser gente é, paradoxalmente, evitável.]

03/11/2010

Compreendo o porquê exacto que te leva a não chegares aqui.
Vejo que o deserto não pode ser um lugar para quem só sabe amar o mar.
Percebeste, pouco depois de tocares esta areia, que o lugar de ti não podia acontecer aqui. Não podia ser agora.
Sei porque é que não me tocas quando me suspendo no teu respirar.
Sei porque não me olhas quando rasgo os pulsos e escorro o sangue como se fosse chuva. ´
Reconheço que não saibas os passos que danço quando estás de costas para o lugar onde eu ainda consigo existir.
Sei bem porque é que eu sou ainda um deserto.
Sei bem que tu vais ser sempre o mar. Longe.