27/09/2010

na voz
a aspereza dos dias
sós.

nas mãos
o desencontro dos escombros
ternos.

nos olhos
a desventura esperançada despedaçada do sorriso
aventurado.

na chuva
a melodia do mais brando e cruel
silêncio.

no andar
a tentativa de fuga do esgar do fogo
vazio.

no mar
a possibilidade segura de não mais
respirar.

na porta
a certeza única do caminho a não fazer
jamais.

10/09/2010

devolutus

Ainda me lembro de ti, quando atravessavas a noite até ao fundo para me encontrares. Atravessavas as ruas ébrias e sujas e cheias para chegares até mim. Fosse a que horas da noite fosse, tu perscrutavas a escuridão até me veres.

Ainda me lembro da forma como as tuas mãos me seguravam no vazio e de como eu quase aprendi a fechar os olhos. Por entre o que restava do suor e do dia, a tua língua a saber-me as palavras que eu podia não dizer.

Às vezes consigo lembrar a que sabia o cheiro de ti, do teu corpo, do teu hálito quente a padronizar-me a pele. Se tentar com vontade, consigo chegar até à memória das noites de verão quente em que os nossos restos se fundiam, se diluíam, se consumiam como se o mundo fosse terminar aqui. Aí. Depois de nós.

Se quisesse, lembrar-me-ia do teu nome, dos contornos da tua face, da languidez dos teus dedos.

Se pudesses chegar ao fim desta noite, depois das ruas que são vazias antes de mim, gostaria de saber que nome te lembrarias de me chamar.

06/09/2010

pra.ia

A praia está deserta. Deserta como as terras do sul daquele continente onde já não vais há demasiado tempo. Deserta como os lugares que perdem a vida e os sonhos. Deserta como os espaços que deixam de se ocupar, como as bocas que deixam de rir. Se fechares os olhos sentes a água a desaparecer no céu. Sei que já não faz calor, não, o verão já chegou ao fim. Ainda assim, a água desaparece no ar. Quase, mas mesmo quase, como se nunca estivesse estado lá. Aqui. Ali. Neste lugar reservado, hoje e para todo o sempre, ao deserto abandonado e só que há em ti.

estilhaço

Não consigo falar contigo.
Está aqui uma parede
de betão,
não,
de ferro,
não,
de aço,
não,
de fogo,
não,
de lama,
entre as minhas palavras e a tua capacidade de escuta.

Estou cansado.
Quero que saibas que estou cansado e que esta noite vou desistir sem tu saberes que eu desisti.
Estou tão exausto que não sinto os pés, não preencho a pele, não reconheço os restos dos meus restos.
Esta é a noite em que eu desisto de continuar a tentar. Não sei mais. Ninguém me estende as mãos à terra e me faz compreender. Ninguém transpõe o muro que
talvez,
de certa forma,
não seja o teu,
mas
o meu,
e o meu seja,
de certa forma,
idealmente,
muito maior que o teu.

Estou cansado.
Tenho lágrimas feitas de sal a escorrer-me nas chagas que me são os olhos.
Não quero ouvir mais nada hoje.
Não quero ver mais nada esta noite.

Sabes,
quero que saibas que desisti de tudo
mas não o vais saber.
Não,
não queres saber.
Não,
não vais saber do muro,
não vais escutar nada,
enquanto eu partir,
enquanto eu me desfizer
em lama,
não,
em fogo,
não,
em aço,
não,
em ferro,
não,
em betão,
não,
em chuva.
Enquanto eu não me desfizer em chuva.

05/09/2010


Levamos uma vida inteira a tentar saber quem somos.
Perscrutamos cada parte do caminho, devastamos o corpo e a alma na demanda de uma qualquer razão,
de um sentido consentido,
de um porto para atracar.
Mas é no momento exacto em que nos reconhecemos,
ainda que sem espelho,
ainda que sem imagem,
e nos sabemos,
que quedamos como aves padecidas em pleno voo
e quedamos
e quedamos
e quedamos
sem nada a amortecer a queda,
até embatermos na terra fria.