olho para trás. miro a vida desenhada numa linha sinuosa,
de contornos de avanços e de recuos, de becos sem saída e de autoestradas de
vias percorridas, de veredas calcorreadas a pé descalço ao fruto de suor e de escorridas felicidades. uma linha de vida traçada ao fio de grãos de areia:
imponente e impotente ao abraço da brisa que sopra ao rés-do-chão da vida. foi.
olho para trás. e toda a linha é uma extensão desalinhada
e alinhavada com pedaços colhidos e deixados para que o peso fosse suportável.
Miguel Torga tem uma expressão invejável pela sua imagem completa: será que
desta vida fica ao menos uma baba como a do caracól que possa reluzir quando o
raio do sol nela toque? permanecer.
olho para trás. em nenhures da linha escrevi que entre a
autenticidade (a vida do espírito) e a efectividade (a vida da acção) da vida
existia um hiato tão grande que nele cabiam outras tantas vidas. somos tantos e
tão diferentes a viver a mesma vida, a aguentar a areia desta linha desalinhada
de direita – ser tantos de um e um em tantos: estou aqui sentado.
diferentemente.
olho para trás. ser é ser incomunicável: por maior e mais
alto que seja o grito existencial, ele soará sempre a silêncio. escutar.
olho para trás. há momentos em que tudo corre alucinante
de tão rapidamente que só é comparável à lentidão imóvel de outras ocasiões. a
clareira de um sorriso dá sentido à floresta inteira, porque há sorriso e há floresta
em não haver. respirar.
a meio da vida estamos mortos: olho para trás e aí miro a
extensão da linha defronte; poderia ser maior ou mais curta, mas é tão-somente a
extensão onde descansar o peso que, na tal-vez, seja incomportável ou ainda o
lugar onde erguer uma montanha de movimento. interlúdio.
tudo o que puder ser, desafiando a impossibilidade,
repousará sobre os ombros do meu mirar e desse peso farei a minha sepultura.
esperar.