31/01/2021

começo por despir a boca

depois os dedos...um a um.

fecho os olhos. quero sentir tudo, o momento em que (quase) te sinto a chegar.

desfaço-me da roupa que me cobre. o corpo arrefece quando se confronta com a noite que desce sobre o sangue e entra por dentro da pele que começa a respirar.

sento-me sobre a tua ausência. dispo-me (por fim) de mim e cubro-me de tua pele. ouço-te a sussurrar-me no ouvido as palavras melódicas da terra que te tem por dentro da alma e tudo (por dentro de mim) começa a arder. 

um por um, teus dedos recontam a história dos dias em que teu barco navegou as ondas do mundo inteiro. enquanto eu esperava. por dentro da tua ausência. ancorada na orla do porto. com os pés dentro da água que te traria de volta ao aqui. 

abro a boca já despida e o silêncio comporta a desonra em que me permito perder. não há nada para além de pecado neste lugar em que me permito permanecer. lânguida e sôfrega. perene e efémera. desesperada e pronta. 

não permito ainda (para prolongar a doce angústia em que me desfaço) que o ar me traga de volta a mim. quero sentir o odor da tua ausência dançar sobre o fogo que arde por dentro da minha eterna devastação. 

há um aroma que se suspende no ar. a maresia e a calor. a tempo e a possibilidade. a sonho e a terras distantes. 

há um sabor a vontade e ao adiado. a encontros desencontrados. 

há intenção de ir. desafiar tudo e, simplesmente, ir. 

abro os olhos. visto-me nos dedos. silencio a tua voz da mesma forma que uma âncora beija o fundo do mar. 

e deito-me (de novo) sobre as minhas próprias cinzas. 

é quando me confronto com a minha iminente efemeridade que, num movimento 

obsceno 

de tão banal, 

inusitado

de tão ridículo, 

primário 

de tão instintivo

me questiono sobre o que ficou por ser. 

30/01/2021

Está tudo a mudar. O espaço. O tempo. O agora. O por vir. O que foi. O que é. O que era e já não é. O que estaria para ser. O que podia ter sido. O que não chegou a ser. O que ficou. O que partiu. O que não chegou a chegar. O que nunca pôde partir. O que veio para ficar. O que ficou para vir. O que eu fui. O que tu és. O que fomos. O que o mundo era. O que o mundo é. O que a vida foi em ti. O que a vida mudou de mim. O que mudou em nós. O que ficou em nós. O que está a meu lado. O quem está a meu lado. O quem tu és. O quem eu fui contigo. O quem fui depois de ti. O que eu queria ter sido. O que vou chegar a ser. O que chegaste a ser. O que não podias ter sido. O que eu desejo. O que tu renegas. O que eu anseio. O que tu ignoras. O que eu atravesso. O que tu abraças. O que eu renego. O teu abraço. O que não podia voltar a ser. O que foi de volta. O que pôde voltar. O que ainda pode voltar. O que perdemos, os dois, nos braços do (nosso) mundo. O mundo que nos moldou. O que moldámos no mundo. O que eu posso fazer. O que tu podes dizer. O que eu disse. O que tu fizeste. O que eu disse que iria fazer. O que tu fizeste por ser. O que eu não consegui. O que tu não conseguiste. O que nós deixámos de ser. O que nos tornámos. O que passou a ser impossível. O que se tornou possível. O que morre. O que morreu. O que pode vir a morrer. O inimaginável. O que imaginámos sem saber. O inegável. O que podemos negar. O irrefutável. O que podemos contrariar. O tudo e o seu contrário inteiro. O vazio que nos assombra. O vazio que nos assombrou. O vazio que tomou conta do nosso mundo nas mãos fechadas sobre a face. O que podia ter sido um beijo. O que o vento não chegou a trazer. O que o mar não conseguiu levar de volta. O agora. O depois. O que está a chegar aqui. O que vamos ter de fazer. O que vamos perder. O que já perdemos. O definitivo. O que está a mudar. O espaço. O tempo. Tudo está a mudar. 

tenho  um lábio a sangrar. a pele dormente, a certeza da tua chicotada a dançar-me na memória_ou na pele?

espera um pouco. será que podes voltar_ atrás? recomeçar? voltar ao início de todas as coisas? 

podes escrever tudo na parede _ de novo _ com o sangue que me despe a boca que canta teu nome, para eu não poder esquecer o caminho de volta? 

será que podes dizer o que disseste antes de dizeres o que acabaste de dizer? a dor que permanece depois da tua mão, aniquila a minha capacidade de entender o que fica por debaixo da melodia do teu grito. repetes?

fecho os olhos e sinto a voz da tua mão a desafiar o vento_ o tempo_ e a cair no lugar onde antes eu tinha um sorriso onde poderia caber o lugar inteiro do mundo...

se pudesses esperar o suficiente para eu recuperar o fôlego, eu conseguiria ouvir. sabes, é que a forma como tua voz me arrastou para o chão foi a forma como as tuas mãos puderam dizer o meu nome.

recupero parte de um fragmento que pertence à capacidade do acto de respirar. apenas uma parte.

tenho o peito a sangrar do rio que me escorre da boca despida. as tuas chicotadas permanecem a desfazer-se na minha pele até que sinto o mundo a desaparecer de debaixo de meus pés. 

talvez agora já não sinta nada. já não consiga dizer nada. talvez seja melhor, apenas, dizer-te que vou parar de respirar. 


26/01/2021

Can the killer in me

Tame the fire in you?

Is there nothing left to do for us?

I am sick of the chase

But I'm hungry for blood

And there's nothing I can do

(...)


 Noah & Abby Gundersen - Killer + The Sound

22/01/2021

Fecho os olhos para te sentir as asas.

Coloco todo o meu pensamento na ponta dos dedos. 

Se respirar fundo, sinto tudo como se estivesses no lugar de mim. Acaricio tuas penas em toda a sua longitude. Deixo-me cair na sua profundidade, estendo-me inteiro no seu comprimento. Um mar marmóreo que se estende a meus pés e em que me deixo afundar sem medo da invocação do abismo. Se respirar fundo, ouço a tua voz a sair de dentro do tempo como um grito indelével que reconhece o caminho de escarpas que te traz até ao lugar em que eu me despenho. 

Deito-me para te saber do meu lado e são as tuas penas - as tuas mãos - que te seguram por dentro, na alvorada que só tu permites conhecer. Permito-me a queda, ainda que apenas por breves momentos, enquanto a ebriedade que baco derrama sobre minha vontade me permite amar como se o mundo fosse terminar neste preciso momento. Deito-me a teu lado como se aqui estivesses e eu te pudesse saber no interior da tua - infinitamente - presente ausência. 

Fecho a voz para te saber nas penas. 

Fecho as penas sob os dedos para te saber no silêncio. 

Fecho o silêncio para me saber aqui. 


O momento em que tomas consciência do teu corpo, é o momento exacto em que o sentes a ceder à dor. Tal como um amante submisso cede, de imediato, a todas as provocações e todas as provações que o amado lhe solicita ou lhe impõe, em silêncio ou gritos desmedidos. É aí o momento, quando compreendes que tudo é nada e nada pode ser sempre tudo. 

O momento em que sentes a certeza da agonia é quando cedes à consciência. A possibilidade da morte é o teu lugar de desprendimento. O teu lugar de arrependimento. O teu momento de solidão, absolutamente perfeito. O juízo final em que te assumes na derrota e podes serenar. 

O momento em que o corpo te ocupa por inteiro e percebes que pouco podes escolher. Talvez seja a vida que te escolhe. Talvez tudo o que és, ou o que podes vir a ser, não dependa inteiramente de ti mas de onde o teu corpo te vai possa permitir ir. Te possa permitir ser. Te possa deixar fazer. 

Tudo pode ser nada e nada pode ser sempre tudo. Dentro das provações. Dentro das provocações. Dentro e fora de ti. 

Estou a arder. Em raiva. De raiva. Pela raiva. Não há água que me possa salvar. Tempo, lugar ou espaço. Vento, matéria ou chuva que faça parar isto. Estou a arder. Pela raiva. De raiva. Em raiva. E vou apodrecer inteiro, por dentro,depois de consumido pelas chamas que vivem na minha voz. 

21/01/2021

Sonhei que me lavava no rio e que depois me deitava nua no lugar da esteira que ficava a teu lado. Eram longos os cabelos que me cobriam as costas e eram eternos os dedos com que mos escovavas. Era tua a pele que me tapava e me afastava do frio da manhã. Era teu corpo o manto único que necessitava para me esquecer de morrer. Era tua a vida que brotava do rio e que me (e)levava até onde eu parecia estar.

Sonhei o sonho que ficou entregue na noite que passou. Foi apenas isso. E nenhum rio o poderá voltar a trazer de volta. 

03/01/2021

porque é que encontramos a possibilidade da salvação nas palavras que escrevemos com o sangue da nossa provação?

porque é que nos aproximamos enquanto, na verdade, estamos cada vez mais distantes pela razão de não podermos ser, nunca, mais do que isto que já existe aqui?


pergunto-me exactamente onde é que tudo isto deve começar a terminar.