31/03/2020

"Se não nos amas pelo que somos, ama-nos por tudo o que lembramos de ti, de tudo o que foste, de tudo o que poderias ter sido, e ter podido ser não será um pouco, enquanto o pensavas, o mesmo que ter sido?"

Marcel Proust
Argumento

sIriA

perdoa se não sei dizer o teu nome. teu nome é o teu lugar, o que te define, o que te é, o que te diz. perdoa se não o entendo, se não o vejo e se não o aprendo. sabes bem como, por vezes, há coisas que nos são tão difíceis de (a)prender. coisas que são apenas demasiado imensas para se poderem guardar. falta espaço, por vezes, por dentro de nós. perdoa se não te sabemos dizer. teu nome é o que te faz ser. e és demasiado grande para caberes dentro deste aqui. 

30/03/2020

mUrO

Ontem comecei a construir um muro em torno da casa.
Peguei nas pedras e no barro. Moldei a ideia nas mãos molhadas de terra branda e desenhei tudo até não caber mais nada por dentro do sonho.
O campo a estender-se para além da linha do horizonte e eu a cavalgar o vento no momento exacto em que o sol começa a descer na seara.
Sinto o pulsar da crina negra do cavalo que me conduz por entre as linhas dos limites que impus ao tempo.
Observo a casa que desejo em mim e refaço o muro em pedras de granito enquanto o barro me arde nas mãos. 
Deixo minhas mãos mergulhadas na água branda até que nasçam jarras onde vou colocar as roseiras e os ventos que emergem com o sol do sul que é o meu caminho inteiro. 
Ontem comecei a construir um muro em torno da casa para nada ficar fora do sonho. 

29/03/2020

o que tu fizeste, amor,  foi abandonar-me nua a dançar por dentro do fogo.





e isso não tem perdão. 

mAr

Às vezes faz escuro no lugar onde te guardo.
Tão profundamente escuro
como se fosse o lugar mais fundo do mar.
Não se vê,
também não se consegue tocar,
nada se pode ouvir
e não há forma de respirar.
Às vezes,
lembrar-me de ti
é morrer
numa dança lenta.

22/03

seriamos,hoje, irmãs de tempo. eu e tu a segurar a vida inteira nas mãos. a olharmos para o que fizemos, para tudo o que escolhemos, a determinar até onde isso nos havia trazido. até ao dia de hoje. a decidirmos, depois, para onde iríamos amanhã. 
se aqui estivesses,perto de mim, neste caminho da vida que atravesso, talvez eu não tivesse tido tanto medo. talvez eu tivesse sido melhor. 
se me pudesses ver agora, o que encontrarias tu no caminho que eu fiz sem ti?

26/03/2020

ninguém pode desaparecer de onde nunca chegou a estar
Sento-me à beira da janela a ver a cidade em silêncio.
Olho a rua por debaixo de meus pés enquanto nenhum movimento parece acontecer. 
Se fechar os olhos, estou certo de que encontro o momento exacto em que o mundo se equilibrou num fio de seda.

Penso em tudo o que cessou de acontecer. Como tudo, de repente, pareceu ficar mais lento,mais inteiro, mais sereno. 
Mais verdadeiro. 
Quem não podia parar, parou. 
Quem não conseguia mudar, virou.
Quem não queria ver, entendeu. 
Hoje parece estar tudo diferente. Mas, na verdade, está tudo exactamente igual. 

O medo tomou conta das ruas e das vidas. 
A consciência assolou todos, enquanto os pássaros passaram a viver mais livres. 
O mundo abrandou e recomeçou a respirar. Suavemente. 

Na outra parte da cidade, longe desta janela, é o cenário bélico que se impõe contra o silêncio.
Os heróis que sempre o foram, são homenageados no segredo da noite, nas preces entoadas no som da esperança, no sangue, no suor e nas lágrimas de quem escolhe - como se vivesse nas asas dos pássaros - não parar. De quem não pode parar porque parar é a impossibilidade de quem se debate na guerra. 
O mundo está agora dividido em dois lugares confinados aos segredos mais obscuros que se escondem nas asas do medo - a incerteza e a esperança. Dois lugares irmãos, dois lugares inimigos. Dois extremos da mesma carne. Dois sentir do mesmo fundo. 

Sento-me na beira da janela a ver o silêncio que se instala no mundo.