26/05/2011

dragon slay

Podia ser a manifestação de um qualquer tipo de melodramatismo ou comédia trágica a forma como caminhavas na rua todas as noites. O teu andar era como se não soubesse que andava. Toda a magnitude do teu corpo se afastava dos outros transeuntes sem os ver, sem os saber – realmente – frente a si. Caminhavas como caminham as pessoas que perderam a esperança, que esqueceram a vontade. Era como se tivesses perdido algo que nunca conseguiste perceber, com rigor, do que se tratava.
Observei-te desta janela alta durante todo o tempo que te levaram os passos a percorrer a rua. Um ano? Uma vida? Breves minutos? Não percebi quanto tempo foi e se era uma imagem que repetia, repetidamente, na minha memória ou se era um movimento prolongado, verdadeiramente, no tempo. O certo é que te observei como se observa o vazio do céu de verão. Vi como arrastavas uma ausência presente em cada gesto, uma tristeza inerente a cada sorriso, o cansaço absorto nos movimentos que pareciam fazer doer tanto. Observei como o teu caminhar rapidamente se tornou uma força inerte. Era como se uma gravidade elevada ao expoente máximo da incapacidade para o movimento te trouxesse, de forma quase imperceptível ao olho destreinado, de encontro à terra fria. Nem sequer te apercebias do caminho. Se pudesse arriscar dizer alguma coisa sobre este assunto, ousaria referir que nem sequer querias saber o caminho que tomavas. Talvez fosse um qualquer tipo de gesto mecanizado que te levava a percorrer esta rua em particular, desta maneira em particular. Ou talvez não. De qualquer forma o conteúdo não tem importância.
- O quê?
- Estava a dizer que o conteúdo não tem importância. Já a forma, a forma é que traduz tudo o que precisamos saber.  
- A questão anterior a essa que colocas não seria saber se há algo a saber em toda esta questão?
- Não.
Segurei o corpo nos dedos inteiro enquanto te via fechar a janela. Tantos anos que passo por esta  mesma rua . Não sei bem porquê. Uma vez por um motivo esquecido pelo tempo. Outra vez por um acaso. Outra por um propósito despropositado. Outra e outra e outra sem saber porquê. Mas de todas as vezes ela permanecia nessa janela nessas águas furtadas que me conduziam de forma inevitável e recorrente, a um lugar imaginário onde havia espaço para guardar até um dragão. A janela pequena, de madeira corroída e ela detrás. Uma imagem, um vulto apenas. Não lhe compreendo os contornos do rosto ou do colo. Não lhe adivinho a cor dos cabelos. Uma presença na distância de seis andares. Esta rua, sempre a mesma, igual há tanto tempo e sempre ela ali. A olhar-me. Penso que a ver-me. A saber-me. Pode não ser mais do que uma ilusão infantil mas parece que há uma serenidade aqui e que o meu corpo me descansa na alma que desiste. Esta rua é serena na imagem dada a esta distância. Sinto que o meu corpo se podia tornar mais pesado, até mesmo cessar, se ela não estivesse a velar por mim sobre as copas das árvores que sustentam o caminho. Desvio-me para não embater no ser esvaziado de si que vem de encontro ao meu vazio. Sinto um lugar por dentro semelhante ao dele. Também me arrasto. Aqui, agora, desde há tanto tempo. Um passo semelhante ao de tantos outros. Uma ausência presente de forma incontornável. Arrasto os pés na tentativa de prolongar o momento. Para que me saibas a passar. Mais uma vez. Se pudesse dizia-te que tenho uma banda a tocar uma melodia azul na minha cabeça. O céu é um imenso vazio no verão. Deves ver melhor dai. Estás mais perto (d)aí. Olho-te na ilusão de que estás (estarás) nessa janela para ver reflectida a certeza inexacta da violência da minha existência. Podia bater à porta da tua janela se soubesse subir ás arvores sem o peso do meu corpo nos dedos.
- A questão está sempre na forma que temos. Que fazemos. Que repetimos. Que (re)criamos. Como nos movemos e como reflectimos o movimento no olhar do outro.
- Tudo o que sei sobre ti é o que leio nos teus gestos frágeis, fugidios, lentos.
- Querias dizer-me algo?
- Não. Repliquei na certeza de que não me poderias ouvir aí. Faz frio aqui em cima, sabes, como se não fosse nunca verão. A madeira está velha e cansada. O chão quase toca no tecto mas ainda cabem dragões. Asseguro-te que ainda cabem. Mas tudo vai cedendo à tentação da queda.
- Temos uma inevitável tendência para a queda, não sentes?
- Podia disparar o meu corpo desta janela. A queda definitiva.
- Até ao lugar para onde agora atravesso?
- Talvez. Mais um pouco acima, talvez. Ou uns passos abaixo. Junto à terra. De forma definitiva.
- De novo a forma.
- a forma é o lugar onde reside o sentido. Sabias?
- Então vem. Espero-te aqui. Se aí não estiveres o meu corpo cessa. Se aqui chegares, caio junto a ti.
- Pode demorar o tempo que leva um dragão a morrer.
- Volto amanhã. Com o propósito de ter um propósito para atravessar, de novo, a mesma rua.

19/05/2011

s.pin.e

se houvesse um rasgo de espaço entre o que em mim deve e o que em mim pode,
eu seria o que me falta conseguir ser.
se eu pudesse medir, em rigor milimétrico, o espaço exacto que vai de mim até ao que de mim não chegou a ser,
caminharia sobre as mãos toda a distância medida até me reencontrar.
se o torporeocansaçoedesfalecimentoesolidãoeador que me afoga hoje pudesse desvanecer sob o eterno inverno que parou aqui e já não parte nunca,
eu saberia andar, de novo, sem desequilíbrio na marcha, sem temor.
bastaria apenas conseguir respirar por tempo suficiente.
sem me enganar.
sem me esquecer.
e talvez todos os hiatos que persistem pudessem encontrar
um qualquer fim.


salga

Tentei saber o motivo pelo qual nunca pude andar sobre a terra molhada como os outros todos fazem. Perceber porque nunca andei sobre nada que não tivesse arestas, lâminas afiadas a beijarem a pele dos meus pés descalços.
Quando chove consigo ver melhor que o meu chão não é igual ao teu chão.
Que o meu corpo não é igual ao teu corpo.
Que a minha voz soa tão diferente da tua.
Que a minha memória dura tão menos tempo do que tu.
Sabes que o tempo não chega para eu chegar aqui a tempo de todas as vezes que assim o intento.
Nasceste da chuva – não, eu nasci da chuva – da terra – não, da lama – não, eu da lama tu da areia – não – os meus pés sobre o teu rosto molhado de mar – não, de chuva – não, de lama, de lama a salgar-te o olhar com que me tocas nas noites vazias – como esta – como eu – como o lugar que não tenho para posar os pés. O engano. Tu sabes que chego sempre aqui por engano, por me confundir de olhos fechados sobre os caminhos todos. O engano - da ausência da recordação - em que me deixei cair e agora não sei saber onde estou. Talvez não esteja em lugar nenhum enquanto te não encontrar e tu não me explicares porque é que os meus pés descalços não serenam na areia – não, na terra – e são assim, chagas abertas ao mar à espera que chova para conseguir ver o resto do caminho que – repetidamente – esqueço.