29/04/2010

estória V

Senti-me pequena enquanto me sabia morrer no teu abraço. Percebi que já não fazias força. Já não tinhas a ira na ponta dos dedos nem no sangue dos olhos. Não te olhei de frente. Não te podia olhar de frente, ficarias a ganhar. Senti que o meu corpo cedia à fraqueza. Teria comido hoje? Que dia é hoje, realmente? Não me recordo de ter vivido mais do que isto tudo que vivi agora. Até ter entrado nesta sala imunda. Ou terei eu vivido rigorosamente nada e agora isto seja apenas o começo do que já tinha terminado tanto tempo antes? Senti-me confusa. Larguei-me dos teus braços e fechei os olhos antes de saber que ias pedir que olhasse para ti. “Olha para mim”, disseste. Comecei a sangrar. Olho para ti com a coragem inteira de quem não tem o que esperar e foi a ela que vi. Alisa nos teus olhos. Tua face não estava lá. Estava lá sem realmente lá estar. Ela. Apenas ela. Como me poderia algum dia encontrar em ti se não és tu quem eu vejo em ti? Estou a sangrar. Nas pernas. Entre as pernas. Na boca. Entre os dentes. Estou a sangrar. Teu punho já não estava cerrado mas encontrou-me na boca enquanto repeti o nome dela vezes sem conta. Uma vez, Alisa. Duas vezes, Alisa. Três vezes, Alisa. Quatro vezes o teu punho na minha boca. Reconheci os teus pés. Cinco vezes, Alisa. E o chão sujo e molhado da minha chuva, do meu vazio, do meu sangue. Ouvi alguém dizer para parares. E eu a dizer que não eras tu, não fazia mal porque não eras tu. Seis vezes, Alisa. No baixo-ventre senti a mesma dor de antes. A mesma dor que só uma mãe sabe sentir inteira. Nunca tive medo. Depois de ti, não há lugar ao medo. Sete vezes. Alisa.

10/04/2010

estória IV

É tão duro e tão frio o som deste silêncio ao longo da sala e mesmo assim olho para ti como não suportas ser vista. E agora, que fazemos?, perguntei-te, numa pergunta tão inútil quanto necessária: continuei sentado, com uma mão em cima do balcão e outra de punho cerrado, olhando-te fixamente, lendo-te mais do que queiras, mais do que pensavas possível. Quero esquecer tudo, já esqueci tudo, nada aconteceu quando aconteceu nada!, respondeste tu numa voz carregada, com um olhar fixo e uma lágrima regando a tua face. E quando aconteceu nada foi a dor e o abismo, foi a carne rasgada e a foz solta em grito, foi o inacreditável possível, foi viver o fim e permanecer para ser depois do fim: nossa filha Alisa (אליסה) ensanguentada e morta, jazendo entre o silêncio que nos acalenta e que faz eco no ventre com cheiro a sexo e a giesta. Já não suportas a maneira como olho para ti mas quando olho para ti, vejo na tua presença a ausência que é jamais, que é estar depois do fim. Abraça-me, disseste-me. E o vazio expandiu-se ainda mais, foi mais fundo e mais além – foi sem tudo, para ser sem – : foi nada. Só te tenho a ti agora, disse-lhe, como se diz aquelas frases quando não se tem nada a dizer e tudo o que pudesse ser dito seria apenas um dizer de merda. Olhaste para mim e disseste: «Tu e eu a viver o fim e a ser depois do fim (אני חי אתה), a ser sacrifício e a ausência de redenção: viveste-me».