28/06/2022

Seguro

nas mãos

o teu ar

para poder respirar.


Abuso 

sem pudor

de teu corpo

para poder viver.


Repito

os sons

de tua voz

para chegar ao silêncio. 


Seguro 

a evidência 

de tua permanente fuga

para encontrar o caminho.


Ignoro

o lugar 

de teu caminho

para iludir o meu.


Minto

para poder dizer a verdade.


Iludo-te

para me enganar

enquanto me iludo

que te engano.


Abuso 

da tua existência 

para 

reconhecer a minha.


Fico

até que parta.

Parto

assim que o digas. 


Excedo-me

para fazer de conta

porque és 

perfeição 

em forma de desculpa

para me manter 

na minha fina linha 

da ilusão 

do que me segura 

à tona de água.


Perdoa.


27/06/2022

Sabes,

há uma dor que se instala no ventre e arranca o que está lá por dentro.  Não consigo agarrar nada do que está a morrer...

Não dá para mudar o lugar das coisas que cristalizam dentro das coisas que já foram coisas e que deixam de ser, em si mesmas, o que quer seja. 

No fundo, entendo tudo o que desfalace e desaparece nas entrelinhas do que não se diz, do que não se sabe, do que se finge saber e do que se omite. 

Avanço pelo asfalto levando os pés e as mãos despidas a olhar tudo o que duvido de frente. Levo o sangue a obedecer cegamente à gravidade e a misturar-se com as águas frias do rio que traz tudo o que ainda não sei.

Tenho o lugar das coisas que guardo por dentro, esventradadas na chaga reservada ao ardor da traição. 

A ilusão do sentido que reside dentro da invenção do equilibrio é o que desiquilibra a ordem das coisas. Tudo é mutável. Nada dura para sempre. Mas o lugar das coisas, esse não muda. 

Sabes,

apetece-me dançar de olhos fechados no lugar mais fundo da noite enquanto os pássaros embatem nas janelas da minha dor e se desfazem na ilusão de que podem retomar um voo que deixou de ter lugar. Será que alguma vez soube voar?

Morro esventrado a dançar de asas abertas de frente para o muro onde escrevo, em sangue, a verdade do que não consigo segurar.

19/06/2022

guardo o aroma de ti 

nos intervalos da minha pele


guardo a tua pele

nos intervalos do meu tempo

13/06/2022

Tenho nos braços o aroma das cores com que se despe a nostalgia que reside nos céus dos fins de tarde de uma sobra anunciada de um setembro cansado.

Atravessam-me memórias do que foi, do que fui, outrora, e sempre a pairar no ar quente que o norte soprou para assolar estes céus uma qualquer ...todavia.
Podia ter feito um poema nas tranças das palavras que ontem me foram ofertadas por uma existência de que não sou merecedor. Mas não mereço as palavras. Não mereço o poema que se desenhou nos dedos de tinta. Não mereço o que a vida me entrega assim.
Não sou merecedor do jardins, por isso caminho no breu ensurdecedor da estrada vazia.
Não sou merecedor do poema, por isso é rocha o que escavo dentro das palavras.
Não sou merecedor dos fins de tarde, por isso me precipito, que nem borboleta estovada, para o princípio da noite.
Sou, neste momento, a antítese,  a contradição,  o oposto de tudo o que deveria ser. Era este o momento... e tudo se tem vindo a quebrar, desfazer, fragmentar, sem que eu consiga travar esta espiral de horrores que acontece por dentro. Este era o momento do começo do auge de minha existência e agora tudo é uma parábola a pender para a tragicomédia medida pela inegável e inexorável incapacidade de realizar qualquer acto de forma correcta.
Balanço no lado errado de tudo. Na aresta que tem a lâmina afiada. No lado do frio. No lado do breu. No lado errado do abismo invocado. No lugar inexplicável do erro peristente.
O deserto abandonou-me.
O mar abandonou-me.
Já sobra pouco e é cada vez mais difícil sair destas areias.
Sou lodo agora. Somente e apenas lodo putrefacto onde as árvores morrem sempre em formas estranhas. 

11/06/2022

 Há um calor lânguido que se segura nos poros e desce pela pele. Sem pudor. Sem pressa. Obscenamente.

Segreda-me palavras que não sei ouvir e rasga-me na carne, por dentro. Morde-me na fraqueza e dilacera o que resta de minha triste alma.
Sinto-lhe a língua, lenta e sôfrega, a cantar nos lábios cada gota de suor até eu ser inteiramente água na volúpia de um qualquer rio.
Corro sempre para sul. Caio sempre virado para sul.
Escrevo despedidas em pontas de navalha cravadas no asfalto que me prende pelos pulsos e é no calor do sangue que acontece a perfeita devastação de meu corpo.
Temo ter de comecar a respirar agora. Faz demasiado calor aqui.
Parece que tudo se vai fazer cinza. Como se tudo fosse desaparecer. Desvanecer. Cessar.

Mergulho no rio que me leva na corrente. Já não procuro formas de lutar contra a efémera incerteza do movimento das águas. Sinto como cada lâmina em cada pedra me leva mais um pedaço de alma e sorrio enquanto me tento recordar de como respirar.

Estou do lado errado do abismo e resta-me desfazer tudo o que sobra, na música que a água entoa enquanto o corpo embate nas pedras e se incendeia.