31/10/2019

KeeV

a dor escurece tudo o que está por dentro do mundo de ti. 
dilacera. 
devasta. 
comprime.
aniquila.
revela o momento em que se te abre nas mãos, se deita - áspera e gélida - sobre as mesmas, e te conduz numa dança 
insane
incessante
interminável.
leva-te sobre estilhaços de vidro que te dá a beber, que coloca sobre tua pele em gestos lânguidos, sobre os quais te arrasta nos pés descalços.
transporta-te até ao olhar vazio que se guarda na verdadeira desesperança. 
desafia-te. 
angustia-te. 
dilacera-te. 
abraça-te por dentro até que cesses de querer continuar a abrir os olhos. 
deixa-te a um passo do abismo e aí, nesse preciso momento, abandona-te. 
abres os olhos, recuas, regressas até ti para logo ela te segurar de novo, arrastando-te até ao lugar mais vazio de ti.
dança sobre o teu corpo. até que quedes. 
porque é que continuas a cair?
fala-te ao ouvido coisas que recusas escutar. já não recuperas as palavras - as tuas. ela silencia-te enquanto te dança na voz. deixa-te longe de ti.
sentes o corpo a abandonar-te e a entregar-se à dança ébria. e tudo escurece em ti. 
para não te perderes, para que ela não te leve a alma na dança incessante do corpo ébrio e delirante que desespera na insaciabilidade fera da crueza da sua essência, imaginas-te a caminhar nas areias de Masada.
resistes
persistes
insistes
até que deixe de haver vidros, até que deixe de haver dança, até que deixe de haver escuridão. 
até que suas mãos deixem o teu corpo e retomes a respirar.
até que teu corpo serene no teu próprio abraço.


até que ela regresse.

30/10/2019

fOliUm

Começo pelo fim e, no fim, vou dizer-te que não te direi mais nada. 


Vou esperar que o outono termine e, consigo, todas as folhas quedem. Vou acabar por me reduzir às cores que vêm com o céu do inverno e desfazer-me na terra.
No fim, vou dizer-te que já não há mais folhas no lugar que eras em mim e que tudo permanece despido, simplesmente a aguardar o regresso de ti. 


No caminho, digo-te tanto quando te digo sem te chegar a dizer quase nada. Temo que me leias nos intervalos do silêncio que se faz em nós quando chegamos perto dos limites que nos impomos. 
Todas as palavras que coloco nas folhas, guardam o significado que lhes entrego e o que tu lhes dás. Palavras escritas nas folhas que quedam sobre a terra molhada pelas chuvas que anunciam a necessidade imperiosa do recolhimento. Palavras escritas nas folhas que escurecem sob o sol que se despede dos dias que terminam antes de o queremos. Palavras escritas nas folhas que se transformam em si mesmas para poderem renascer. 


Digo-te quase nada para não te dizer tudo. 


Perco-te nas folhas quando me confundes na incerteza do que vês em mim e de que esperas de minhas mãos. Toco-te em segredo, em silêncio, e guardo tua mão sobre a minha face no lugar onde se guardam as coisas sagradas. 
Abro os olhos e reconheço que, na verdade, tu não estás no lugar onde eu quedei, onde os significados se deixam cair com as folhas. 


Encontro-te numa encruzilhada. Não tenho vontade para avançar porque o tempo me trouxe insegurança e meus passos são cada vez mais lentos. Olho-te nos olhos e ouço-te na voz com que cantas, toda a noite, e sei-te tão perto dos anjos, tão longe de um qualquer lugar de mim que possa chegar até aí. 
Talvez, na verdade, sejas apenas uma doce e mágica ilusão com que minhas palavras dançam. Talvez tudo o que acontece na poesia de ti que me toca por dentro , não seja mais do que folhas que quedam por dentro do outono que subsiste em mim, e se  possam reencontrar na possibilidade divina de recomeçar.


Vou dizer-te que não te direi mais nada até que as folhas de outono terminem de cair por dentro de mim.

kArMan

há uma linha invisivel que separa terra e ar, espaço e matéria.
uma linha que define o espaço invisivel que se coloca entre o ser e o ter sido.
a linha que só existe porque reconhecemos a necessidade de impor o limite. de ser o limite. de viver no limite.
se não houvesse uma linha a separar espirito e matéria, que seriamos nós?
que restaria de nós?
se eu não estivesse do lado da terra e tu do lado do ar, onde estaríamos nós agora?

20/10/2019

sMokE

Exalo o fumo de um cigarro.
Faz noite aqui dentro. Debaixo das cinzas. Por entre a chuva. 
Toco nas mãos da janela - fria - para me saber. Pés descalços na pedra branca. Corpo despido na tela vazia. 
Inalo o ar da noite inteira. 
Fecho os olhos por um momento breve. Fecho as mãos sobre os lábios. Remeto tudo ao lugar certo. 
Consigo tocar o que fica dentro da certeza do silêncio. Enquanto me reencontro. Enquanto me sonho. 
Respiro até que a noite se desfaça em fumo. 

vIagEm

"há viagens que muito gostaríamos de fazer e que, apesar de tantos planos, não acontecem"
há lugares que tanto precisávamos de saber e que, apesar da vontade, não chegam ao lugar certo
há certezas que se desvanecem na dúvida, quando o tempo se alonga na demora
há verdades que se cristalizam por dentro das rochas quando, sem querer, nos revemos numa qualquer ilusão 
há esperas que terminam precisamente no momento exacto em que se chega a um outro lugar 
há voos que se prolongam no ar até que os lugares se transformem e a luz que vem com o cair do sol conduza as andorinhas de volta a casa
há viagens que terminam sem sequer terem começado 
há, simplesmente, viagens que não podem acontecer. 

15/10/2019

atracas o barco na doca.
resgatas a intensidade do mar nos olhos fechados sobre a tarde que arrefece.
esperas que a noite comece para te deitares no chão de madeira. até sentires o corpo a ceder. até não ouvires mais do que o silêncio que guardas nas mãos fechadas.

                                                                       a lua sorri, hoje, para quem a souber olhar

13/10/2019

ruNNing oUt oF tiMe

o tempo é uma linha fina. ainda assim, não a conseguimos transpor. 
olhas para mim enquanto eu olho para o vazio e vês o que não vejo quando me fecho por dentro de ti. 
o tempo é uma lâmina fina. rasga-te na pele e na carne quando o tentas atravessar. ainda que andes para trás ou que tentes chegar antes, o tempo desce sobre teu peito a sua lâmina fria e tens de parar. 
olho para ti quando olhas para mim e é nos teus olhos que vejo o tempo a ceder. 
neste preciso momento em que a chuva (quase) queda sobre a tua angústia, sobre o meu silêncio, percebemos, sem ser preciso dizer uma única palavra, que ficámos sem tempo.  

09/10/2019

aTa

és janela por onde se vê um mundo que tantas vezes parece ter deixado de poder existir.
poeta caminhante na vida dos outros que se (quase) perdem.

mãos que seguram a terra e a tristeza como gotas de água e a transformam em barro
e o barro em vida
e a vida em recomeço.

és porta por onde se pode entrar e chegar ao lugar mais próximo de onde o sol se deita
de onde a luz  repousa
onde o abraço serena.

és voz que entoa nas angústias e as dissolve em jasmim.
água que transforma o deserto em possibilidade.
tempo que se transforma em vida.

és eternidade em obra feita,
palavra que resgata marinheiros da beira das escarpas, 
navio que transporta passos, quedas, risos, ilusões, o cansaço ou a efemeridade, e devolve tudo na certeza da possibilidade do milagre.

és anjo que caminha a arder por dentro do homem, 
sem cessar,
até que te encontres na janela por onde se vê todo o mundo que és. 


07/10/2019

siLênciO

pego nas tuas palavras e coloco-as sobre os meus lábios fechados.