14/12/2010

Estava parado à porta. Frente da única porta que havia naquela casa velha.
Estava parado a esperar o tempo.
A esperar a imensidão das coisas que existem
dentro da possibilidade dentro do vazio
(das coisas).
Estava parado à porta e eu fingi que não te via.
Fingi que não eras tu ali porque de cada
vez que tentava lembrar-te em mim as memórias eram todas
difusas, confusas, profusas.
Esvaíam-se como areia por entre os dedos.
Não.
Como água ensanguentada
por entre os dedos.
No centro das mãos.
No ponto mais ínfimo da minha/tua pele.
Eras tu quem estava parado à porta
e eu segui no caminho oposto
a fugir de me saber
ali.

10/12/2010

estou seguro que o inferno começa, precisamente , aqui.

08/12/2010

empty box - morphine

tore open the package it was an empty box
no meaning to me just an empty box
sender was a woman
she said she's sending me everything I
I never gave her before
she said: Fill it up and send it back,
so I sent her back an empty box.
A big mistake, sent back an empty box
half in the shadows, half in the husky moonlight,
and half insane just a sound.

in the night I enter a valley so dark
that when I look back I can't see where I began,
I can't see my hands, I don't even know if my eyes are open.
In the morning I was by the sea
and I swam out as far as I could swim 'til I was too tired to swim anymore
and then I floated and tried to get by strength back.
Then an empty box came floating by,
an empty box and I crawled inside
half in the shadows, half in the husky moonlight
and half insane just a sound
alright

musgo

Lembras-te quando íamos apanhar musgo?
Lembras-te de como ficávamos pequeninos, a ver-te cirandar de um lado para o outro, a preparar o ancinho, a segurar o cesto com as mãos secas e cheias de rugas, tranquilas como a casca das árvores que nos ensinavas a dizer o nome?
Nós pequeninos a ver-te terminar de preparar tudo. Na ânsia que vem pela palavra que se tanto deseja ouvir. “Vamos”, sorrias tu a falar. “Vamos!”
Subíamos a serra com pernas de flecha, quentes por dentro do peito, com magia na ponta dos dedos. Corríamos como se a serra fosse mais de que uma serra, fosse um lugar que só nós tínhamos, que só nós podíamos conhecer.
Enterrávamos as mãos pequeninas na terra fria e sentíamos o calor a chegar às faces já rosadas. De botas até ao joelho, cachecóis e gorros, segurávamos o olhar enquanto que tu, com dedos de árvore e mãos mágicas, retiravas o musgo das pedras e colocavas no cesto. Os nossos olhares suspensos no nevoeiro da manhã na certeza de que ali, naquele preciso momento, tudo o resto era possível.
Com as nossas mãos pequeninas a segurar-te as pontas do casaco e do cesto e das luvas e das cascas de árvore, caminhávamos a sorrir as palavras todas, já sem pressa, de regresso a junto da lareira.
Depois, viria o tempo de colocar o musgo sob as figurinhas de barro pintado que tentávamos descobrir quem eram, sem perguntar, a ter vergonha de perguntar as coisas que se devem saber sempre mas que se querem ouvir, vezes e vezes sem conta.
Lembras-te quando éramos assim e o mundo fazia sentido?

06/12/2010

Reduzir-se às cinzas que cabem numa gota de chuva era só o que era necessário para o dia de hoje.

29/11/2010

nEoMe

Não tenho permissão para atravessar o barro. Está coberto de listas negras e listas brancas e não posso passar. Não tenho permissão para dar nem mais um passo. As paredes estão a obrigar-me a recuar desde ontem, desde hoje, desde sempre. Sabes que nos sonhos são cobras e serpentes que passam sobre as memórias ridículas das coisas que suposto era terem acontecido? Recuo na certeza de que os pés vão falhar a velocidade certa e que vou ruir sobre a areia. Mas a neve vestiu o chão de listas negras. A parede a chegar até ao lugar onde eu juro que já não queria estar, juro, e não tenho forma de me suster de pé. Imagino que esteja frio o chão. Imagino que estejas frio no chão. Coberto de barro, não, coberto de neve. Sabes que está a nevar aqui dentro? Neva enquanto as paredes se deslocam num espaço que, rapidamente, deixo de reconhecer como meu. Tacteio tudo com a língua na aspereza da terra fria e sei que vou esquecer o meu nome e tudo o que vem antes. Não posso passar daqui. Espero que a neve trave o avançar desta corrente, não, desta parede de barro que agora me cobre os cabelos de tinta branca. Estou certo de que vou cair em breve. Juro que não queria. Tento – apesar de saber como qualquer movimento nesse sentido não só pareça ser perfeitamente ilusório, assim como é inteiramente desnecessário ou evitável de uma forma extremamente coerente dado que não é possível contornar a inevitabilidade da queda de um pé despido sobre a primeira neve – tactear com o que resta do sangue a possibilidade de me segurar seguramente na parede insegura que me tem feito recuar. Não tenho permissão para tentar mais nada. O barro está coberto de listas brancas e de listas negras e em nenhuma delas aparece, nunca mais, no meu nome.
Qual é o meu nome?

23/11/2010

chuva ardida

Estou e é como se não estivesse. Talvez não esteja mas esteja sem estar. Posso não estar, efectivamente, e isto seja tudo mero delírio. Ilusão. Memoria errada de um movimento errático. Ébrio. Vazio.
Sou o que resta da tua ausência. Sou o que sobra depois da chuva ardida. Sou o momento exacto em que as coisas param de ser. Posso até estar mas não estou.
Estou no lugar das coisas que já não estão e não sei voltar a estar nas coisas que são qualquer coisa outra que não isto.
Sou o gesto sem tempo. O tempo sem pele. A pele sem cor. A cor sem espaço. O espaço sem lugar. O lugar sem terra. A terra sem vida. A vida sem tempo.
Sou as cinzas do que queria ser e atirei-me ao mar. Estou mas é como se não estivesse.


19/11/2010

cc II

Quero dormir no lugar onde mais nada possa crescer. Quero deitar-me sobre a areia, não, sobre a terra, não, sobre húmus a apodrecer, e respirar tão fundo quanto consiga.
Quero dormir como se não houvesse mais necessidade de acordar.
Já não suporto o cheiro que as minhas unhas encontram no rasgar da parede. Já não tolero o sangue que me sai negro do cabelo quando me encontro de frente para os vidros. Já não sinto o que resta do meu caminhar nem recordo onde deixei a capacidade de andar.
Quero dormir como se não fosse preciso, nunca mais, voltar a despertar.
Não posso continuar aqui. Nesta sala só há tempo. Neste espaço só há espera. Nesta casa não há nenhum resto de mim para além desta minha sombra a rasgar a parede com as unhas abertas. Aqui só tenho a esperar o que se não pode esperar assim, desta forma. Aguardo que chegues com a pressa dos desesperados. Aguardo que me abraces com a força dos cegos. Aguardo que me beijes num beijo de anjo esquecido num qualquer lugar reservado ao limbo de mim, e me sorvas o que resta do meu respirar.
Se fechar os olhos agora sinto o cheiro podre que vem da minha pele. Talvez estejas a chegar. Talvez eu te encontre debaixo das folhas, da terra, da areia, do lugar onde já nada pode crescer.
Quero dormir e não mais voltar aqui.
Já não estou à espera de me encontrar no lugar em que te deixei. Devasto o que resta da ânsia para chegar até ti ou para que chegues aqui. Se me virem sorrir, sabem que o meu anjo chegou. Se me virem fechar os olhos e desistir saberão que ele está perto o suficiente.
Por favor, vem depressa. Não consigo mais estar aqui.

cc

Quero morrer.
Era tudo o que tinhas para me dizer hoje.
Quero morrer. O tempo é o que mais há aqui para passar.
Foi como quando ele me disse que não queria.
O quê?
Sapatos.
Porquê?
Porque me dói nos pés.
Mas faz frio.
Não quero.
O quê?
Sapatos.
Foi como quando me disseste que não há mais nenhum sitio para ver a vida passar. Que a vida vivida a passar assim não é vida para ser vivida.
Porquê?
Porque me dói.
Onde?
Em todo o lado.
O quê?
A vida. Dói-me a vida. Devia ter morrido ali. Devia ter morrido.
Porquê?
Porque não quero.
O quê?
Viver assim a vida sem ter vida.
Quero morrer.

04/11/2010

Compreendo o porquê exacto que te leva a não chegares aqui.

[Tão louca razão que sabe não querer saber quando sabe.]

Vejo que o deserto não pode ser um lugar para quem só sabe amar o mar.

[Que há saudade do mar somente no deserto, finge:]

Percebeste, pouco depois de tocares esta areia, que o lugar de ti não podia acontecer aqui.

[e foi assim um feito des-feito]

 Não podia ser agora.

[com desfecho:]

Sei porque é que não me tocas quando me suspendo no teu respirar.

[a distância encarnada, uma ligeira travessura:]

Sei porque não me olhas quando rasgo os pulsos e escorro o sangue como se fosse chuva.

[de seres impossível várias vezes, repetida e tragicamente, acontecida gota a gota.]

Reconheço que não saibas os passos que danço quando estás de costas para o lugar onde eu ainda consigo existir.

[Respira. Sente. Respira. Pensa. Respira… e mais um pouco, a pouco.]

Sei bem porque é que eu sou ainda um deserto.

[Acordo e sei que por detrás da janela – lá fora –  há, inevitavelmente, gente.]

Sei bem que tu vais ser sempre o mar. Longe.

[E que ser gente é, paradoxalmente, evitável.]

03/11/2010

Compreendo o porquê exacto que te leva a não chegares aqui.
Vejo que o deserto não pode ser um lugar para quem só sabe amar o mar.
Percebeste, pouco depois de tocares esta areia, que o lugar de ti não podia acontecer aqui. Não podia ser agora.
Sei porque é que não me tocas quando me suspendo no teu respirar.
Sei porque não me olhas quando rasgo os pulsos e escorro o sangue como se fosse chuva. ´
Reconheço que não saibas os passos que danço quando estás de costas para o lugar onde eu ainda consigo existir.
Sei bem porque é que eu sou ainda um deserto.
Sei bem que tu vais ser sempre o mar. Longe.

31/10/2010

Podes passar a lâmina pelos meus dentes. Já não faz diferença.
Podes passar o ferro quente nas minhas costas as vezes que te apetecer. Já não tem importância.
Podes deixar-me de frente para ao muro que eu não vou abrir os olhos desta vez. É indiferente para onde me viras. Onde me deixas. Onde me abandonas.
Esquece-me quando começares a andar. Não te lembras? Já não estava aqui desta vez. Já não estava aqui desde a última vez. Já não era eu. Porque não te lembras?
Mente o resto das palavras que faltam na frase que me vai completar.
Honestamente que não quero saber o que falta porque o que falta já não vai trazer nada de novo a este resquício de tempo que guardo no sangue que me escorre da língua.
Passou tempo demais e eu agora, desde há muito tempo, que não consigo.
Confundo-me na vontade, nas palavras, nos gestos. Confundo-me na dança, atrapalho-me nos movimentos, esqueço as linhas que devia seguir e deixo cair tudo no chão. Ando dois passos tão rápido como recuo três. Agora acabou. Nem sequer vale a pena tentares de novo porque eu não vou ver nada.
Vou estar virado de frente para a merda do muro de olhos fechados à espera que o tempo acabe de me torturar.


18/10/2010

apneia

Sustém-me em apneia.
Conta até três.
Fecha os olhos como se não quisesses ouvir nem mais um ruído deste mundo.
Conta até quatro.
Segue-me as linhas todas do corpo como se aqui fora fosse de dia.
Sustém-me enquanto conseguires.
É como se estivessemos submersos e tudo em volta fosse água. Sentes?
Conta até cinco.







Agora respira.

17/10/2010

lonjura


Quando a encontrei, estava sentada no cimo de um muro alto, na berma da estrada.
Não dizia uma única palavra. Não expressava nenhum som. Olhei-a como se olham as coisas que estão no cimo de nós e esperei que me olhasse de volta. Insisti até a posição do corpo me dizer para colocar os olhos sobre a terra.
Havia lama na berma. Tinha chovido toda a noite. Algo me fazia crer que ela teria ali estado o tempo inteiro que uma noite leva a passar. Debaixo da chuva. No cimo daquele muro.
Chamei-a pelo nome e recordei-me de como adoro a forma como tu dizes o meu. Sorri como quem se lembra das coisas importantes da vida e retomei a olhá-la. Chamei mais uma vez.
Ela acabou por olhar para mim e a ver-me como se vêem as coisas que se não querem ver. Olhou através do meu corpo e não ligou nenhuma importância ao facto de estar ali, parado, com os resquícios da noite de chuva nos pés e na roupa.
Percebi que tinha saído descalço de casa…há quanto tempo não saía assim? Como poderia ter-me esquecido? Como podia ainda não ter sentido o frio da lama – sim, como estava fria sob o cerco do frio de Novembro – a passear-me na pele.
Imaginei que me tocavas nos pés à medida que recomeçava, tão lentamente, a chover. Percebi que sempre fez parte de mim – ainda antes de te ver pela primeira vez – essa forma como sorris. Sempre. A parte de mim que ainda não tinha encontrado.
Percebi, quando recomeçou a chover fortemente, o motivo pelo qual ela permanecia sobre o muro, inexpressiva. É que do cimo das coisas, podemos ver mais longe e na lonjura, ela estava certa que o sol acabaria por chegar.
Soube o lugar de ti enquanto retomava o caminho de regresso a casa. De pés despidos sobre a berma desta estrada fria, reconheço-me no cimo do muro, a olhar a distância e a saber por certo que, um dia, também tu acabarás por chegar.

07/10/2010

Prelúdio

Parar entre dois mundos: tudo é feito do ser da aparência, a aparência de ser. É vazio atrás de vazio, mentira atrás de mentira, jogo atrás de jogo, manipulação atrás de manipulação, disfarce atrás de disfarce, logro de logro, adulação de adulação, aniquilação de aniquilação, inverdade de inverdade – é uma vazante mal cheirosa e viçosa de nada. Tiramos prazer de nada, sorrimos face a nada, abraçamos nada, adormecemos com nada, acordamos para nada, vivemos de nada. Esta pauperricidade que nos invadiu e percorre o nosso ser em vez de sangue, que usa o pulsar cordial na pujança da vitalidade é a nudez e é feia, para além de crua e de desproporcionada, é asco feito nojo. Nojentos que a morte não dignifica e a vida perpetua.

Onde está a lucerna que tantos e tão antigos proclamaram acerca da humanidade? Que é feito dessa faísca que chispa da fogueira anímica e sustém o universo, no cantar de Orfeu? A conversão euridiciana será sempre a nossa fatalidade e a esperança somente repousa em Cronos, que nos devora, inimbuchável, da nossa miséria feia e de asco.

ra.va.ge.

Se pudesse, segredava-te no corpo que me dói tudo aquilo que deixei acabar aqui. E, logo de seguida, gritava-te dentro do vazio que sobra em mim, até sangrares nos dedos. Colocava meu escutar sobre a tua boca e esperava que fechasses os olhos e dissesses…
dissesses…
que…dissesses…
Levava os dedos ao teu olhar fechado para que me visses a desaparecer e dissesses…e…
Despia a roupa toda na noite gelada – faz frio aqui, lembras-te? – e esperava que abrisses a boca para me veres quebrar e dissesses…
Se pudesse, segredava-te nos dedos a que sabe o meu sangue e não esperava, mais, que me olhasses nos olhos e fechasses a boca no silêncio sepulcral que só tu podes saber.
Se pudesse, obrigava-te a gritares dentro do meu vazio que já não há mais nada que me possa doer. Que dissesses…
que dissesses…
que
agora
não
vai
doer.

Mas só estou eu aqui. Lembras-te?

04/10/2010

"9 Crimes"

(Damien Rice feat. Lisa Hannigan)

Leave me out with the waste
This is not what I do
It's the wrong kind of place
To be thinking of you
It's the wrong time
For somebody new
It's a small crime
And I've got no excuse

Is that alright?
Give my gun away when it's loaded
Is that alright?
If u don't shoot it how am I supposed to hold it
Is that alright?
Give my gun away when it's loaded
Is that alright
With you?

Leave me out with the waste
This is not what I do
It's the wrong kind of place
To be cheating on you
It's the wrong time
She's pulling me through
It's a small crime
And I've got no excuse

Is that alright?
I give my gun away when it's loaded
Is that alright?
If you dont shoot it, how am I supposed to hold it
Is that alright?
I give my gun away when it's loaded
Is that alright
Is that alright with you?

Is that alright?
Is that alright?
Is that alright with you?
Is that alright?
Is that alright?
Is that alright with you?

No...
“Se o vento passar por aqui, amanhã, diz-lhe que não estou.
Diz-lhe que já parti.
Diz-lhe, por favor, que já não vou voltar mais. “


03/10/2010





As casas estão tapadas com panos pretos nas janelas. Cheira a cinzas. Cheira a solidão quando atravesso a rua.
Os passos estão parados. As pessoas amontoam-se junto à berma. Não na estrada. Permanecem na berma na esperança vã de que algo os venha tocar nas faces arrefecidas. Cada um mais só de que o outro. Juntos, no mesmo espaço fingido, e ninguém se entreolha.
Faz frio aqui. Faz frio antes de chegar à água. Atravesso as ruas sozinho. Mais ninguém vem. Mais ninguém olha o resto do caminho.
Junto ao rio, todas as pedras escorrem sal como se o sal fosse tinta como se a tinta fosse pele.
A possibilidade do sonho é uma arma dirigida ao pano preto que me cobre os olhos. O dentro. Esvazio-me enquanto ouço a água a avançar.  

Cobre-me com panos pretos e encerra as janelas. Não quero mais atravessar nenhuma rua.



02/10/2010


tenho,
nas mãos,
um poço
vazio,
sem fundo,
onde
me deixo
cair.


27/09/2010

na voz
a aspereza dos dias
sós.

nas mãos
o desencontro dos escombros
ternos.

nos olhos
a desventura esperançada despedaçada do sorriso
aventurado.

na chuva
a melodia do mais brando e cruel
silêncio.

no andar
a tentativa de fuga do esgar do fogo
vazio.

no mar
a possibilidade segura de não mais
respirar.

na porta
a certeza única do caminho a não fazer
jamais.

10/09/2010

devolutus

Ainda me lembro de ti, quando atravessavas a noite até ao fundo para me encontrares. Atravessavas as ruas ébrias e sujas e cheias para chegares até mim. Fosse a que horas da noite fosse, tu perscrutavas a escuridão até me veres.

Ainda me lembro da forma como as tuas mãos me seguravam no vazio e de como eu quase aprendi a fechar os olhos. Por entre o que restava do suor e do dia, a tua língua a saber-me as palavras que eu podia não dizer.

Às vezes consigo lembrar a que sabia o cheiro de ti, do teu corpo, do teu hálito quente a padronizar-me a pele. Se tentar com vontade, consigo chegar até à memória das noites de verão quente em que os nossos restos se fundiam, se diluíam, se consumiam como se o mundo fosse terminar aqui. Aí. Depois de nós.

Se quisesse, lembrar-me-ia do teu nome, dos contornos da tua face, da languidez dos teus dedos.

Se pudesses chegar ao fim desta noite, depois das ruas que são vazias antes de mim, gostaria de saber que nome te lembrarias de me chamar.

06/09/2010

pra.ia

A praia está deserta. Deserta como as terras do sul daquele continente onde já não vais há demasiado tempo. Deserta como os lugares que perdem a vida e os sonhos. Deserta como os espaços que deixam de se ocupar, como as bocas que deixam de rir. Se fechares os olhos sentes a água a desaparecer no céu. Sei que já não faz calor, não, o verão já chegou ao fim. Ainda assim, a água desaparece no ar. Quase, mas mesmo quase, como se nunca estivesse estado lá. Aqui. Ali. Neste lugar reservado, hoje e para todo o sempre, ao deserto abandonado e só que há em ti.

estilhaço

Não consigo falar contigo.
Está aqui uma parede
de betão,
não,
de ferro,
não,
de aço,
não,
de fogo,
não,
de lama,
entre as minhas palavras e a tua capacidade de escuta.

Estou cansado.
Quero que saibas que estou cansado e que esta noite vou desistir sem tu saberes que eu desisti.
Estou tão exausto que não sinto os pés, não preencho a pele, não reconheço os restos dos meus restos.
Esta é a noite em que eu desisto de continuar a tentar. Não sei mais. Ninguém me estende as mãos à terra e me faz compreender. Ninguém transpõe o muro que
talvez,
de certa forma,
não seja o teu,
mas
o meu,
e o meu seja,
de certa forma,
idealmente,
muito maior que o teu.

Estou cansado.
Tenho lágrimas feitas de sal a escorrer-me nas chagas que me são os olhos.
Não quero ouvir mais nada hoje.
Não quero ver mais nada esta noite.

Sabes,
quero que saibas que desisti de tudo
mas não o vais saber.
Não,
não queres saber.
Não,
não vais saber do muro,
não vais escutar nada,
enquanto eu partir,
enquanto eu me desfizer
em lama,
não,
em fogo,
não,
em aço,
não,
em ferro,
não,
em betão,
não,
em chuva.
Enquanto eu não me desfizer em chuva.

05/09/2010


Levamos uma vida inteira a tentar saber quem somos.
Perscrutamos cada parte do caminho, devastamos o corpo e a alma na demanda de uma qualquer razão,
de um sentido consentido,
de um porto para atracar.
Mas é no momento exacto em que nos reconhecemos,
ainda que sem espelho,
ainda que sem imagem,
e nos sabemos,
que quedamos como aves padecidas em pleno voo
e quedamos
e quedamos
e quedamos
sem nada a amortecer a queda,
até embatermos na terra fria.

22/08/2010

borboletário de lisboa






a serenidade em estado puro.
obrigada pela companhia, flôr de lótus.

19/08/2010



Na imagem do fumo da cigarrilha a abandonar a janela deste carro e a desvanecer no ar fica a certeza de que desaparecer revela o único continuar possível.

15/08/2010

Não quero que faças nada.
Não quero sequer que me fales ou que olhes para mim. Que tentes. Que procures.
Deixa.
Deixa-me.
Já me abandonaste há tanto tempo que é absurdo ainda estares aqui.
Não me procures nos restos de comida nem de pó.
Já não estou neste lugar há tanto tempo que já nem me lembro bem a que cheiras.
Sabes que no infinito as linhas paralelas não se tocam. Sabes que no infinito não há mais do que buracos negros e nós chegamos a ver o fim disso que não tem fim sem precisar lá chegarmos.
Se pudesse já estava com o resto do corpo largado na terra húmida.
Se pudesse já não estava aqui e já não respirava.
E se pudesse ser de outra forma já nem te lembrarias meu nome eu já não teria nada por que esperar.

jardim botânico - museu de história natural











13/08/2010

Um gesto de dança e eu seria vento.
Um movimento certo e eu chegaria ao fim.
Uma só noite e teria sabido o mar.

09/08/2010

De quantas formas se pode partir?

Se não te conhecesse tão bem acharia que me respondias que se pode partir de tantas maneiras como se pode ficar. Logo de seguida, com o teu sorriso traçado de ironia, dirias que se pode partir de tantas formas como se pode amar.

E como se pode amar, perguntaria eu com um ar de criança assustada.

Ah, pois bem. Olharias para mim como se o mundo fosse terminar naquele exacto segundo e esperarias que o sino da igreja desse conta das horas para me sorrires. Fecharias os olhos como quem não precisa de conhecer a luminosidade do dia para se ter sabido sempre nela, e dirias que se pode amar de tantas maneiras como se pode partir porque se pode partir de tantas maneiras como se pode amar e que se ama incondicionalmente quando se aprende a deixar partir.

E como se sabe que se ama?

Quando ficar deixa de ser possivel e a iminência da partida se torna tão dificilmente tolerável e tão inevitavelmente necessária.

estória

VII

Tiro os olhos de ti e deixo-os cair sobre as minhas mãos. Meu punho banhado de sangue. Desenhado nos nós dos dedos, o resto de ti. Alisa. Eu. Tu. Olho as mãos paradas num tremor que sinto que se vai eternizar a partir deste preciso momento. Tremo como se fosse frio isto que me rega o corpo todo mas não. Apesar da chuva não faz frio. Apesar de tudo isto, não faz frio. Nas mãos tenho o temor e as rugas. Sim, consigo ver tudo debaixo do sangue sujo. Consigo ver as marcas do tempo que me vandaliza por dentro, que me dilacera e me desfaz com o toque sereno de uma lança afiada. Desvio os olhos para ti enquanto alguém te levanta do chão. Olho os teus pés (já descalços), e os teus joelhos (já negros), o teu vestido (já rasgado), o teu peito (já seco) e a tua boca…a tua boca…Aposto que neste momento querias que te olhasse nos olhos e eu sigo para as mãos que são minhas e onde tu já não estás. Limpo na camisa o que restou de ti e bebo o que me sobra no copo. O balcão está ainda mais conspurcado. Tu estás ainda mais pura. Mais a cheirar a chuva. As minhas mãos são a prova de que eu e tu e ela já envelhecemos. Eu nas mãos e na alma, tu no sangue e na memória, ela na distância ausente de quem não está e é um jamais contido em nós. Porque insistes em regressar sempre? Porque insistes em vir de encontro a este lugar que já não tem espaço para o que nos separou quando nos uniu para sempre? Olho-te de frente enquanto as tuas mãos choram. Levas os dedos ao cabelo baço e seguras o negro dos teus olhos como se me segurasses a traqueia. Sinto-me velho. Sinto-te a morrer. Fecho os olhos e sei que posso morrer, que devia ter sido eu a morrer, assim, como ela. Jazemos os dois. Tu e eu vivemos o fim depois do fim e não encontrámos mais o caminho de volta. Diz-me porque insistes em voltar? Porque insisto em não conseguir partir?
Enlaça teus dedos na minha traqueia enquanto as minhas mãos velhas quedam para onde antes estava o teu sangue. Não adormeças. Por favor, não adormeças.

31/07/2010

muralha

É nas noites sem par, por entre as muralhas de um castelo adormecido à meia luz do fogo, que encontras a tua voz. De frente, o mar a lembrar-te de que a solidão é um lugar eterno por onde nos passeamos vezes sem conta.
Podias ter tentado perder-te por entre as escadas que rodeiam as muralhas. Mas não.
O céu estava condensado, a suster um suspiro que se encontra na razão de se ser, simplesmente, assim.
Encontraste a tua voz no lugar da terra, na proa da traineira, na insistência do nevoeiro. Encontraste-te na música, nas gentes, na razão de uma qualquer existência.
Quiseste dizer, a quem não te vê nunca, que és o tudo que pode ser por entre as muralhas de um castelo. E isso, podendo ser o lugar mais inteiro da tua distância, pode ser o lugar mais perfeito da possibilidade da tua entrega.
E foi quando a noite caiu sobre a música e eu te ouvi nas palavras que eram minhas, e que encontraste a possibilidade de sair do caminho que há tanto atravessas só.

26/07/2010

Voltaire, "Cândido e o Optimismo"

“É impossível que as coisas não estejam onde elas estão.”

"Haverá coisa mais tola do que querer carregar continuamente um fardo que se quer a todo o custo largar por terra?”

"Quando não somos tidos em conta num mundo, encontramo-la num outro.”


“E que coisa é esse optimismo? Dizia Cacambo. – Ai! Disse Cândido, é a mania de defender que tudo está bem quando tudo está mal.”

"Todos os acontecimentos se encadearam no melhor dos mundos possíveis.”



Cândido e o Optimismo
VoltaireTinta da China

1ª Edição
2006

Dado a conhecer ao meu mundo por uma criatura sublime de um outro mundo sublime a quem muito agradeço!
um livro delicioso. imensamente bem escrito. intensamente cheio.
escrito em 1759. imperdivel para os curiosos da história.





24/07/2010




Debaixo das folhas não há só terra, sabias?
Preciso que saibas isso. Pode ser a última coisa que eu venha dizer.
As pessoas todas se afastaram daqui. Ninguém ficou para me contar uma história, para me olhar nos olhos e saber quem eu posso ser debaixo das folhas.
Consegues ver as linhas que desenhei? Foram a carvão. Consegues ver debaixo da areia? As linhas estão lá. Desenhadas com o que sobrou da madeira queimada. Com o que sobra do fogo.
Estão longe da água. Viste? Conseguiste ver?
Fica só um mais um bocadinho. Toda a gente desapareceu e agora só sobraram as dunas.
Há demasiado silêncio aqui e é quase como se eu também já não estivesse. Já não me ouço. E não posso errar outra vez no caminho. Desta vez não vou saber regressar. Estou demasiado cansado.
Lembras, quando corríamos juntos na areia? Lembras-te do dia em que deixámos de ter medo? Olhámos para debaixo das folhas e vimos o resto. Deixámos de ter medo.
Se pudesses ficar mais um bocadinho, de certeza que não haveria tanto ruído. Não havia tanto silêncio. Podias contar-me uma história.
Sabes... já não está mais ninguém para chegar. Já não há mais ninguém para partir. Eu sou a folha e tu estás além da terra.
Eu vou perder-me agora que não consigo ouvir nada. Não tenho medo desde que atravessámos as dunas a correr e era só deserto que vinha depois. Mas agora estou demasiado cansado para me recordar do caminho de volta.
Mas já não tenho medo de me perder outra vez.
As linhas, se olhares bem, vês que ficaram tortas. Será também o caminho torto? Talvez seja como a linha de água. Confuso, indeterminado, cheio de sal, de espuma, sem direcção definida. Talvez seja preciso errar no caminho. Ainda que depois não se consiga voltar.
Debaixo da terra das folhas há tudo o resto. Tu sabes.

21/07/2010


E só por isso escrevo – para que continuadamente me reconheça vivo no escrever, para que o sondar-me desencontradamente seja ainda uma forma de me encontrar, para que o ininteligível de mim e da vida seja ainda vida e o simples inteligível dela como vida que é.
(pág. 44)
Vergílio Ferreira
Invocação ao meu Corpo
Bertrand
3ª Edição, 1994
Então se verá que essa força que nos vive não tem princípio nem fim, é uma pura luz de se ser, imóvel, eterna, necessária. Então se verá que a coragem de enfrentarmos o insondável é a que define a nossa última luta, essa que espera a notícia de todas as vitórias na vida. Luta desigual porque não há inimigo a vencer, porque não há sobretudo vitória a conquistar.”
(pág. 29)
Vergílio Ferreira
Invocação ao meu Corpo
Bertrand
3ª Edição, 1994
Conta-me nos passos, conta-me nas pedras da calçada. Soma um mais um e descobre o que podes subtrair. Conta-me nos dedos, multiplica-me. Retira o que estiver a mais depois da divisão por dois. Não escondas nenhuma parte. Deixa tudo no sítio certo. Sou o lugar reservado ao silêncio mais cruel. Estou exausto. Sou a marca das unhas de sal na tua pele macerada pela areia. Sou o deserto aberto ao sol. O absoluto da solidão em estado puro. O lugar onde não sei terminar as coisas por começar. Sou o expoente máximo da insanidade e não tenho medo de cair. Sou o limiar do tempo, o limiar da dor, o contorno da distância do resto do mundo.
Conta-me uma história para eu adormecer. Depois podes ir embora. Depois podes não voltar. Mas agora fecha-me os olhos e deixa-me desaparecer na tua voz.

15/07/2010

"Oficio Exacto" - Gonçalo M. Tavares

"Persistir em dar forma ao que permanece escondido sob a escuridão (e que jamais viste) poderá ser considerado teimosia inconsequente, mas, também, o mais puro dos actos de escultor. "



Gonçalo M.Tavares
Breves Notas Sobre o Medo
Ed. Relógio D'Água
2007
O deserto tem a cor que lhe souberes dar. Assim como o mar. Assim como a areia que te cobre os pés e as mãos. Como o sentido do caminho.
O mundo tem as cores que conseguires ver. Por todo o lado. Em cada lugar. Em cada tempo.
E talvez até se possam ver os cheiros que cada cor tem. Magnólia. Jasmim. Camélia. Sol. Chuva. Tempo.
O deserto tem a cor que se pode saber ver.
Enquanto se souber caminhar de pés descalços sobre a areia quente e sobre a terra molhada, é possível chegar a saber (quase) tudo.

14/07/2010

Podia até fazer de conta que não estás, que nunca estiveste aqui.
Aproximar-me à beira da tua sombra e ver-te sem te ver.
Tocar-te na ausência de ti e saber o teu lugar por ser.
Unir-te no que sobra de mim (como se em mim restasse alguma coisa)
Sem saber exactamente o que unir significa porque não chego a ti e é
Como se mais nada houvesse entre aquilo que nos separa e aquilo que nos colocou no mesmo lugar sem tempo.
Antes de tudo o resto, chegaste para partires das minhas mãos. E isso vai ter de ser o resto do que falta.



je te vais laisser disparaître.

13/07/2010

O


Segura-me os dedos das mãos enquanto me viro de costas.
Puxa a pele. Toda. Inteira. Não hesites.
Rasga tudo o que te parecer a mais. Até veres a carne toda. Até veres o osso.
Agora lambe.
Enquanto eu estiver assim não te vejo. Enquanto eu não te vejo, não preciso de ti.
Faz o que quiseres. Liberta-me as mãos. Coloca-te sobre o meu vazio e fode-me. Assim. Em silêncio. Como se eu não estivesse aqui e voltasses a ser só tu.
A noite não arrefeceu o suficiente hoje. Cala-te. Cala-te. Cala-te. Cala-te. Cala-te. Cala-te.
Segura-me as costas. O cabelo. Segura. Enquanto não te vejo não me fazes falta. Não digas nada. Devasta-me. Destrói-me. Hoje não sou mais do que isto. Enquanto não te vejo não me reconheço. Deixa-me de frente ao meu vazio e fecha as mãos sobre o teu sangue.
Aniquila-me. Agora. Cala-te.
Cala-te.

11/07/2010

percorro-te as feridas na língua e sinto o sal a queimar.
coloco as pontas dos dedos no contorno do sangue e sinto-te cair.
seguro-te no momento em que o tempo se esvai e o sentido se perde quase como que irremediavelmente.
e depois da iminência da queda chega o fragmento do tempo que
- ébrio e em nudez absoluta -
anuncia a lugar das coisas suspensas em silêncio.


escrito em out de 2006, aqui
http://rasgosdeluz.blogspot.com/

10/07/2010

Não tem nenhuma importância o tempo. Os dias e as noites sucedem-se como deve acontecer. Como sempre aconteceu. Com maior ou menor rapidez o tempo foi-se sucedendo e hoje chegámos aqui. No fundo, o mundo é capaz de ter uma ordem pré-estabelecida. Ou qualquer coisa de aproximado. Ou nada do género mas, em boa verdade, a vida acontece no espaço efémero em que o dia e a noite se tocam.
Hoje olho para mim e encontro tão pouco. Olho para a ausência de ti e vejo o caminho inteiro que eu fiquei por percorrer. E talvez tenha medo. Talvez não saiba bem onde estou. Talvez não consiga reconhecer, com precisão, o lugar que ocupo aqui.
Tu não estás aqui. Não estás aqui há tanto tempo que dentro do meu sangue e da minha pele parece uma eternidade – como se a eternidade se pudesse sentir como algo de mensurável – mas foi tudo ontem. Foi só ontem. Foi hoje. Agora. Neste preciso momento em que sinto tudo a desaparecer. Em que tento segurar a fugacidade dos momentos nas mãos e não sei agarrar nada.
Tento respirar. Tu sabes que eu sempre tentei respirar como se o ar fosse aquele que só passa no cimo das montanhas. Pequeno, rarefeito, cheio de ausências.
Mas olho para mim e não vejo o que me falta. Sei que sou tudo o que não sei ser e essa é a pior parte de mim e tu, tu eras a melhor parte de mim e agora eu sou pouco. E isso, na maior parte dos dias não me chega. Na maior parte das noites não me satisfaz.
Não sou aquilo que era suposto ser. Não chego a ser aquilo que era previsto. Depois de ti deixou de haver lugar para mim.
Ainda hoje escavo com os dedos em ferida a terra e as folhas e o húmus à procura do que me falta. Às vezes tenho a certeza que não vou encontrar mais nada. Às vezes acredito que vou saber procurar melhor no dia seguinte. Às vezes não sei rigorosamente nada.
O tempo tem toda a importância que eu lhe consigo dar. Hoje sei que vai ser tudo tão magoado como tem sido até aqui. Vai sendo cada vez menos. Vai acontecendo tudo cada vez com menor incapacidade. Mas quando fecho os olhos vejo os teus. Sinto o teu cheiro como se estivesses nas minhas mãos.
Deixo de existir no dia que te perder daqui.
Mas mesmo assim não estás. Não estás aqui há muito tempo. Fiquei eu a procurar o que me falta do caminho. Fecho os olhos para acreditar que vou conseguir olhar para ti de frente e sentir que me seguras as mãos outra vez. Fecho os olhos. Conto os dedos. 9.
Sabes que me resta pouco. Por mais que tente. Por mais que julgue ser capaz. Sabes melhor que ninguém quem eu fui até ti. E guardas o segredo na tua pele. Nas tuas mãos fechadas. Nos teus olhos negros a desenhar-me em asas de anjos dourados. E isso vai ter de continuar a bastar-me. Mais um dia. Mais uma noite. Até eu desaparecer.

07/07/2010

Could I be the only stone still standing in the way?
Could it be that I am absolutely unable to move aside and let everyone else pass through?
I am sure that it will only take a little bit longer.
Just a little bit longer until I realise I was never really
here
anyway.

03/07/2010

innuendo

Toda a vida fui um farsante. Joguei-te a ti e aos outros como peças de xadrez. Manipulei-te nos movimentos, manipulei-vos a todos. Fui quem quis ser, como quis ser sem olhar de frente para vocês. Míseras peças de xadrez a saltar de quadrado em quadrado a meu belo prazer. Foi assim a minha vida toda. Um teatro ao ar livre. Não te desiludas com isto, não há motivo. Lembra-te apenas que quem tu és é um fruto da minha manipulação. Não te sentes feliz? Ri-te agora que terminamos o jogo. Ri. Não tenhas medo de me dizer tudo o que tiveres para dizer. Não me faz qualquer diferença. Estou no limiar de perder tudo. E isso é a única coisa que não posso disfarçar. Pelo menos não hoje. E sabes que mais? Não me interessa absolutamente nada.

01/07/2010

everything else

Não te conheço. Olho-te no vento da rua feita de noite e não sei quem és.
Tua infinidade está muito além das minhas mãos.
Só tu podes ser como o vento.

26/06/2010

Senhor, partem tão tristes

«Invoco-te para preencher o vazio das noites em que a solidão morde o meu corpo magoado. E deito-me, inventando-te, no espaço preciso da tua ausência».

Tito Lívio

confirmação

Iludi-me no segredo que só eu ouvi atrás da noite. Ias estar aqui. Perto.
Segredei-me nas costas da noite mas era para mim apenas que falava. Não estava mais ninguém. Por perto.
A noite deixou-me de costas para a certeza de que, afinal, nunca tinhas estado. Perto.
Eu sou o que resta da minha ausência. Tu és o que resta da minha confirmação.

25/06/2010

Je suis en train de devenir en cendres.
Il n’y a que ce chemin ici et ce chemin est plein de pluie et froid.
Je suis presque a devenir ce qui reste aprés le feu. Mais il n’y a que la pluie.
Je doit être fou.

24/06/2010

estória VI

Alisa. Envelheceste, foram os anos que passaram, a correr caminhos acima e abaixo da tua altura. A lua subiu e desceu tantas vezes banhadas pelo sol e tantas outras se escondeu, aninhada, pela terra. Sabes que está próximo. Que é hoje, que é sempre hoje e não amanhã, e nem poderia ter sido ontem. Olhas-me ainda, vives-me ainda, para seres depois de mim. Acalentas o limite do teu corpo como um enamorado apaixonado no desejo de desejar, e sabes no gesto da carícia a fronteira. Alisa. Foi o tempo que se escorreu ao longo do teu corpo, moldando a erosão das lisas arestas das curvas desenhadas. Arrastas os teus pés no peso de os mover. Peso. Seguras-te a pretexto em cada toque dado em cada recanto. Pretexto. E o ar puro no fôlego que te insufla os pulmões. Fôlego. E são tão pequenas e tão longínquas as tuas sete vezes, os teus punhos, o meu sangue, a tua violência, o meu silêncio, a tua e a minha de tudo e de nada. Alisa. Envelheci. Fui sendo nos momentos e nas situações; fui colhendo sentidos e significados; fui guardando memórias e aspirações; fui aninhando amores odiados e desamando afectos; fui-me deixando aqui e além. Envelheci, vivi-me: quando chegar a hora estará tudo saldado e não haverá nada para morrer, a não ser a morte. Alisa. Falas tão poucas vezes comigo – dizes-me, silenciosamente – e esse teu comportamento infernal, agressivo é a presença que sempre foi a falta em mim. Esqueço. Hoje esqueço-me regularmente de esquecer, e tudo o que lembro vive na penumbra de um véu diáfano, que de tão presente chega a ser mais do que ser, aparência. Envelheceste.