09/11/2018

Mapa Mundi _ mais ou menos isto

"o amor não é compaixão
o amor não é comiseração
o amor não é dedicação

o amor é franqueza
o amor é disponibilidade. 
e é tudo. "

"Mapa Mundi" - teatro
Companhia Maior
CCB

in(F)Verno

Há um odor a desenhar-me o abandono por dentro da alma. Cheira a cinzas e a morte. Sabe a fel e a desamor. Sabe ao desespero que vem quando o inverno queda sobre os ossos da terra. Há um sabor a dissolver-me por dentro enquanto a náusea me acaricia, enquanto as vísceras me atormentam e se elevam até à língua para depois cederem à gravidade que me empurra de encontro ao húmus. Sou como uma folha de plátano esquecido na rua deserta a apodrecer na chuva que parou de cair. Sou, neste exacto momento, o lugar onde reside o sofrimento inteiro enquanto as paredes se encerram. Sobre mim. Enquanto me dilacero nas tuas palavras. Enquanto me assassino na tua angústia. Enquanto o teu desespero me encurrala e o meu me faz cair. Há um desenho a abandonar-me no odor da terra. O desenho de meu corpo a desaparecer angústia de ser eu, aqui, agora, a saber que a vida está no fio ténue de uma linha de seda que este in(f)verno vai fazer, em breve, desaparecer. 

05/11/2018

aBandOno

Toca-me. Na pele. Devagar. Sem pressa. Na ponta dos dedos. Lambe-me. A pele. Sem tempo. Na ferida aberta. Segue-me. Sem correr. Na ferida do tempo. Sente-me. Sem temer. Na esperança de recomeçar. Guarda-me. Sem creres no milagre que te abençoa. Desfaz-me. Sem amor. Até te saberes em chaga. Guarda-me. Na escuridão da noite. Até te saberes perdida. Perde-me. Para sempre. No dia em que me conseguires deixar. Toca-me. Na pele. Até poderes partir.

ad EterUm

Esperei como se esperar fosse tudo o que podia fazer.
Esperei como se parar fosse apenas o que podia querer. 
Esperei como se chover fosse a única possibilidade.
Esperei como se fosse um não lugar.
Esperei como se esperar fosse tudo o que poderia ser. 
sou o lugar em que te moves
                                                  sem medo
o espaço em que te encontras
                                                  sem tempo
o momento e que sangras
                                              sem segredos
o tempo exacto em que paras para respirar

cisNe

Sento-me na beira do monte a ver a chuva cantar. A terra húmida sobre os dedos, o céu em pranto e eu a parar. Sento-me na beira de mim enquanto o monte cessa de dançar. Morrem as flores e os pássaros. Canta um cisne que só a mim é permitido ouvir. Sento-me na chuva que não cessa de cair até encontrar o abismo aberto em mim - cheio de terra por dentro, lodo e lama e húmus - e choro sem parar até aí por dentro me deixar cair. 

inoMinávEl

Há um lugar em que não te encontro. Vejo-te mas não te sei. Sei-te mas não te toco. Toco-te mas não te sinto. Sinto-te mas tu não estás. 
Há um lugar em que quedas infinitamente longe e onde eu não consigo - jamais - chegar.
Há um lugar em que não é possível eu existir contigo. Não lhe sei o nome. Não lhe encontro a origem. Desconheço como lá chegamos mas sei, como se sabem todas as coisas que queimam a alma por dentro, que é ao lugar a que este caminho nos conduz.

qImEra

pensei que podia olhar-te nos olhos sem ter medo. que podia falar-te no tempo sem ter pressa. que podia juntar as palavras mesmo sem tinta.
pensei que podias ser o lugar em que o tempo cessava e recomeçava a contar. que pegava nas peças e reconstruia os lugares. que pegava nas asas desfeitas pelo pó e retomava o voo.
pensei que serias o lugar onde me encontrava depois de me ter perdido. o espaço que me recebia sem me ter. o tempo que me sabia sem me saber.
pensei que podia olhar-me nos olhos sem ter medo. que me podias falar sem que o tempo terminasse.
mas não chegou o tempo
e o deserto não me devolveu ao caminho 
e a quimera desfez-se.

cAsa

seguras o silêncio que se apodera da casa quando ninguém está por perto. ficam os fantasmas a deambular nos espaços vazios a insistir nas memórias, a recriar os lugares antigos.
guardas o que esperas que não regresse a ti no lugar mais antigo a que consegues chegar e disfarças a tua existência com o que fica ainda por vir.
deixas-te seduzir pela tua distância até poderes esquecer que existes aqui.
desapareces, lenta e minuciosamente, enquanto a casa adormece nos braços dos que partiram na distância e se mantêm esculpidos na tua melancolia.  

oPositE

Troquei tuas mãos pelo asfalto.
Fui à procura da chuva quando o vento te trouxe do deserto e parti na direcção oposta
- não - 
errada
- não - 
oposta.
Troquei tua morte pela minha exaustão
- não - 
pela tua solidão
- não - 
pela minha eterna aniquilação. 
Perdi-me do caminho.
Perdi-me no deserto que havia dentro de ti
- e agora - 
não posso mais regressar.