30/01/2019

T

"Terra
  sem uma gota
  de céu"

Carlos de Oliveira, Trabalho Poético, I

24/01/2019

PP

"há uma saudade que não é saudade porque fica dentro de uma despedida que é boa para as partes que se despedem." 

iLusAo

Silêncio
faz noite aqui
enquanto os pássaros dormem na quietude melancólica da maresia.
Silêncio
enquanto se despem as máscaras e se despojam as armas.
Silêncio
enquanto a vigília se apodera do que resta da minha exaustão e não consigo ver o caminho de volta ao segredo que faz magia em mim.
Silêncio
enquanto atravesso a madrugada a desejar ser sono e a não ser nada mais do que ilusão.

SaveUr

Sinto o sabor da tua boca na minha angústia. O sal da tua saliva na minha chaga. A ternura dos teus lábios na minha fealdade. Sinto como tuas mãos me atravessam a pele e o sangue e os ossos e o corpo inteiro até se desfazerem no interior de mim. Sei como teu corpo se entrega ao meu como se tudo no resto do mundo parasse, por esses breves momentos, e nada mais importasse existir para além do que te acontece em mim. Vejo como o teu silêncio se torna grito quando danças de frente para mim. Como teu caminho se torna destino quando caminhas até aqui. Como tua tristeza se torna vida quando te permites respirar. Como tuas mãos me segredam certezas sem que pronuncies uma única palavra. Sinto o sabor de teu odor na minha pele até que o dia se desfaça. Sei que tudo o resto pára quando terminas aqui.   

wIre

Crescem arames por dentro de mim. Enlaçam-me as veias e a pele e prendem-me ao chão. 
Crescem farpas e lâminas e ferro que me dilacera por dentro até não sobrar mais nada.
Sou como o negro do alcatrão nas estradas antigas que o tempo mastiga sem piedade até que os caminhos se intrinquem e se confundam e se repitam e se dispersem até à aniquilação. 
Crescem em mim certezas que não me cabem por dentro e que se apoderam do meu destino e me retêm prisioneiro deste chão. 
Sou arame em farpas na minha alma e não poderei, jamais, sair deste lugar. 

03/01/2019

seGreDo

Sinto tuas mãos segredarem-me na pele a tristeza que há no lugar em que te perdes. 
A certeza incerta que reside na presença de quem está quase sempre absolutamente ausente. 
Os navios apartam do rio. Faz frio na madrugada que me impele ao recuo e me impede a queda.
Coloco-te no lugar solitário que se reserva indefinidamente à imperfeita perfeição do silêncio que morre por dentro dos segredos. 

cOMo DormEm os pOmbOs

sento-me numa aresta da noite para saber o frio inteiro. tenho despidos os pés e as mãos.
sento-me no princípio da noite. a olhar o espaço que vai de mim até ao lugar em que finda o mundo. 
curvo-me sobre mim mesmo a contemplar a imensidão do vazio que subsiste dentro de cada aproximação à plenitude.
é como se faltasse sempre algo mais. qualquer coisa mais. uma inquietante imperfeita e interminável insaciabilidade.

cubro a pele das costas com as asas cansadas. escuras. feitas de pó e de luz. feitas de tudo e de nada. dos princípios e das coisas que terminam. das causas e das consequências. das feridas e dos sorrisos. asas cansadas mais ainda vivas, a pulsar por dentro, a saberem tudo por dentro.

oiço o canto da noite e permaneço imóvel, a perscrutar o sono, a evitar a vigília, a escutar-me, com todo o meu corpo curvado sobre as asas inteiras, imóvel, com os pés despidos a tocarem o arame, imóvel, em suspenso, apenas sobre um fino fio de tempo, sem temer a queda aberta sobre a possibilidade permanente de um abismo incomensurável.

sento-me como se navegasse o rio agora. suspenso no frio da madrugada. a evitar tocar as asas.em segredo. em silêncio. absolutamente imóvel como um pombo, sobre os arames da vida, coberto em si mesmo. impenetrável. seguro. como se nada pudesse, em momento algum, desfazer a sua serenidade cansada sobre as asas escurecidas na noite. 

é como dormem os pombos. assim permaneço eu. suspenso sobre um fino fio de vida.