30/04/2016


Estou apenas a aguardar que o tempo cesse de correr. Estou à espera de que os ossos cessem de ranger dentro da terra que me cobre. Estou a sentir o corpo a acinzentar enquanto o alcatrão aquece sob o calor que emana da tua raiva. Procuro as sombras que restam nas ruas que faltam para chegar a um qualquer lugar. É a última vez que te pergunto porquê. É a última vez que te digo porquê. Estou a aguardar que o tempo mude e deixe de fazer calor. Sinto o corpo a morrer na incerteza dos dias que não cessam de continuar. Os meus pés estão gelados sobre o alcatrão molhado do orvalho do início dos dias em que me sei sem verdadeiramente me reconhecer. É a última vez que te pergunto. É a última vez que te digo. Estou a sentar-me no chão vazio e a gritar no toque das tuas mãos. Vou esperar que o tempo pare e eu recomece a respirar. É a última vez que te pergunto porquê. Desvaneço com as sombras que restam nas paredes desta cidade vazia.

25/04/2016

Não preciso mais que regresses. Sei o caminho de volta.
Não recomendo que olhes para trás. Recomecei a minha marcha lenta e já ai não estou.
Não deves jamais voltar para trás. Tudo o que havia já terminou.
Tenho de recomeçar. Pegar nas pedras e na terra e reencontrar os caminhos para os lugares de mim. Reconstruir tudo. Esquecer o que resta. Recomeçar. Segurar nas minhas mãos e no meu vazio e recomeçar.do princípio. Voltar a erguer o corpo perante a chuva que cai aqui e voltar a começar. Não esperar nada. Não desejar nada. Simplesmente recomeçar.

10/04/2016

rUn


Começo a correr quando a chuva regressa. Começo a cair quando a frio recomeça. Doí-me na frente do olhar a imagem da minha ausência. Invejo o amor que reside nos corpos dos outros, nos segredos dos outros, nos segredos teus em que eu não tenho espaço nem lugar. Corro sem me mexer. Dentro de mim devasto o vento na minha velocidade aniquiladora. Nada sobra depois da minha passagem. Não tenho segredos. A verdade é que não tenho nada em mim para te entregar e não te sei dizer isso. Não me te sei dizer nada. De forma nenhuma. Vez nenhuma. Doem-me as vísceras no respirar. Desfaço-me me resquícios de cinzas de cada vez que sinto como me faz falta sentir na língua os segredos que residem na tua fragilidade. Corro a mexer-me inteiro dentro de mim e a saber-me ao sabor acre que reside nas coisas gastas pela ferrugem do tempo. Rasgo-me na certeza plena de que nunca mais poderás chegar perto de mim. Porque eu não tenho lugar no lugar de ti. Começo a correr assim que regressares.

06/04/2016

guArdare


Lava-me a pele. Conta-me o segredo. Desfaz-te em cinzas. Segura-me o cabelo. Guarda-me o anjo nas costas. Grita comigo. Conta-me o segredo. Desaparece na noite. Segue o teu caminho. Limpa-me o corpo. Bebe-me o sangue. Guarda-te dos anjos. Desenha-me o segredo. Grita com o mundo inteiro. Lava-te depois. Segura-me na mão. Cai comigo. Vai sem mim. Parte e não regresses nunca este lugar de finitude. Abraça-me na noite. Sente-me partir. Esvazia-te do mundo e dos gritos. Vive a tua dor. Segue para continuares. Não olhes para trás. Não olhes para mim. Vê-me e segue. Meu anjo segue contigo. Guardo-te na solidão. Lava-me a alma. Desiste de mim. Não importa o que fizeres. Não importa o que quiseres. Este é o meu limite. Corre sobre mim. Ultrapassa-me e não olhes para trás. Conta-me o teu segredo e depois emudece. Lava-me na chuva. Lambe-me a pele cansada. Rasga a minha angústia e desfaz-te de mim. Deixa-me no rio. Deixa-me no mar. Deixa-me ao sol da manhã. Conta-me o meu segredo. Recorda-me. Evade-me. Evade-te. Não há lugar para ti neste inferno de asas abertas. Guarda-me na noite enquanto partes. Desparece de aqui. Segue para continuares e nunca, mais vez nenhuma, olhes para mim.

05/04/2016

anGoisE


Pensei em começar tudo de novo. Fechar os olhos. Deixar as sombras passarem diante de mim e recomeçar. Anjo e demónios digladiam-se dentro de mim e são as suas vozes que oiço em gritos desvairados dentro da minha solidão. Pensei em começar tudo do princípio. Voltar ao lugar onde a minha existência teve o seu primeiro sentido, em que a minha desistência teve a sua primeira vitória, em que a minha desgraça me dignificou. Queria poder começar de um lugar onde eu não estava. Na verdade, todos os lugares em que estive as vozes não me abandonaram. Na verdade, de todos os lugares em que me vi, as sombras não me deixaram. Pensei em começar de novo mas sem estar lá. Sem ser eu o começo nem o fim. Estar sem estar e ser sem ser. Percebi, no momento em que me olhei no espelho da mesma sala, na mesma casa, na mesma morte, que não se pode começar do princípio vez nenhuma. As sombras são o meu começo, a minha angústia o meu eterno fim.