30/06/2020

O sol crava na pele a dor adiada pelo tempo esquecido nas coisas que ficam por dizer.
Bramem as marés que não regressam à praia do teu abandono.
As sombras dançam a dança que emana da tua voz enquanto me imolo por dentro. Até que tudo passe. 
O vento canta caricias nas folhas das árvores doentes, como canções de embalar a solidão.
Na areia, hesito cravar o meu necessário sepulcro. 
No azul perdido do céu que me cobre, anseio depositar minhas asas.
No fim deste tempo, terei terminado meu lugar em ti. 

27/06/2020


Pode o passado devolver-nos o presente?

Um regresso a casa, às arrecuas, pode levar-nos de volta ao caminho?

Se dermos por nós a andar para trás, não estaremos, na verdade, a andar de encontro ao que vem depois?

Hoje somos, talvez, o resultado do ontem e a definição do possível amanhã. Se não soubermos regressar, recuar, voltar às origens, não nos saberemos reconhecer no lugar de agora e jamais saberemos compreender o que nos vai levar no caminho do amanhã.
Somos o que somos e somos tudo o que nos fez ser até este momento em que somos o que está por detrás do pano que cobre o palco incomensurável da vida.

Regresso a casa para me lembrar onde estou, agora, e para onde vou, depois. Às arrecuas, para chegar mais perto.

15/06/2020

rEpTo

seguro a ânsia nas mãos enquanto meu corpo inteiro se incendeia. 
penso como seria fácil levar tudo até à aresta do abismo, fechar os olhos e deixar-me cair. 
como seria rápido, breve, intensamente imediato, atirar tudo para o limite que vem com as coisas mais simples e ver tudo desaparecer na manifesta impossibilidade de retorno. 
penso como seria tão docemente inequívoco entregar tudo nas mãos do impulso e permitir ao desejo queimar tudo. até não poder sobrar rigorosamente nada. 

"Amamos mais o desejo do que o ser desejado"dizia Nietzsche. Amaremos verdadeiramente o desejado quando o desejo é o que nos consome por dentro e nos alimenta?
será o desafio de querer ter o que se deseja, o que inevitavelmente se impõe à alma? 
ou pode a alma ser o que se impõe à angústia que reveste a pele do corpo? 

és tu quem eu desejo ou o é o desejo que tenho por ti o que eu verdadeiramente desejo?

arrisco chegar próximo de uma prece...uma que me serene as chamas por dentro, que me devolva a mim, que me recoloque no lugar de ser.
desafio a impossibilidade da verdade materializada no momento certo e procuro forma de remeter tudo o que desejo para o lugar mais distante da minha pele. 
pego no fogo que me devastava por dentro e queimo tudo, 
os pensamentos
as imagens,
a ânsia, 
a tentação, 
a névoa,
os sentimentos, 
a certeza das tuas mãos, 
na distância que só quem precisa aprender a amar sabe encontrar dentro das cinzas de uma solidão esmagadoramente essencial.  

MaTeriA

Há uma melodia que exala do ranger da madeira destas escadas velhas. Faz lembrar teu nome. 
De cada vez que alguém por aqui passa nos passos, 
despercebidamente, 
seguro-me diante da porta. Fechada. 
Antecipo-me ao vazio que só se pode encontrar perante uma porta que abre para ninguém. 
De cada vez que as escadas cantam, é teu nome que eu ouço. É tua voz que eu escuto. É teu chegar que me aparece na utopia. 
Fecho os olhos no momento exacto em que quem passa, não para. Em que quem passa, segue. Em que quem passa, não fica do lado que fica no lado oposto desta porta fechada. 

Há uma melodia que nunca se completa. 
Um chegar eternamente adiado. 
Uma madeira que envelhece suspensa por dentro do ranger da minha exasperação. 

07/06/2020

Pinta-me de vermelho enquanto te carrego. 
Desenha-me no teu peso e enterra-me no ar. 
Tuas palavras são determinantes, uma sentença. 
Tua voz, condenação perfeita
Teu silêncio, o crime insigne. 
Rega-me de labaredas enquanto te carrego. 

Desapareceremos os dois.