04/12/2012


Encontro-te no resto do carvão que guardo nas pontas dos dedos. Estive a desenhar-te na chuva enquanto esquecia a imagem de ti. Estive a ver-te caído entre as letras, entre as palavras das páginas esquecidas entre gavetas e as estantes perdidas nas ruas que te levaram para longe de ti.

Guardo-te no carvão dos dedos enquanto te escrevo no desenho do ar. Sopro o pó negro da pele sobre o papel arrefecido pelo cheiro da chuva e é o que eras que aparece escrito.

És as palavras todas que estão por dizer, por escrever, por saber. És o que falta acontecer em ti e fechas os olhos de carvão enquanto a chuva cai. Talvez possas perder o medo de ti e te reencontres nas ruas sem teres de olhar para trás.

Talvez te (re)escrevas com o carvão dos olhos na pele dos dedos e (re)saibas desenhar-te caído sobre as páginas de ti.

29/11/2012


Coloca a minha solidão sobre a tua distância
e permite-me que descanse por um minuto.

Voltei a mim para terminar em ti
e não sei mais do que isto
hoje.
se pudesse

ouvir-te-ia falar

o resto da minha vida

inteira.

24/11/2012

as mãos apertadas nos braços cerrados e a noite a cair. a emenda impossivel do erro consagrado com o silêncio de uma solidão antiga. derramar os resquicios do pó sobre a terra para lembrar como a chuva deveria cair.
as mãos cerradas sobre o abraço apertado e o reconhecimento absoluto da incapacidade total de se poder ser um pouco além do expectável.
a certeza, a infeliz certeza, de que a competência nula sobre si mergulha e invade cada fragmento da sua tentativa.
reconheço o que perdi desde que aqui regressei. reconheço e reservo o segredo do que sei ter perdido.
talvez me tenha exaurado sem saber porquê, talvez tenha entregue o corpo à sede e a alma à fome e tenha, em verdade, perdido quase tudo.
não tenho a coragem que guardava em mim enquanto frente ao deserto infinito.
não tenho a força que tinha junto ao mar de sal imenso.
não tenho a segurança que tinha no caminhar sombrio das noite bélicas.
e agora tenho medo de dormir. agora tenho medo de encontrar. agora canalizo para o lado errado de mim e não encontro a saida. não encontro o caminho. o sentido. a vontade. não encontro a noite nem o sul. invento desculpas como quem esculpe a pedra. num poço sem fundo luto desesperadamente pela tona, pela superficie.
e espero. e procuro. encerro as mãos sobre um abraço fechado
                                                                                      e canto.

23/11/2012

não te reconheço quando entro na mesma casa de sempre. és tu mas não és tu.
és o que resta de ti e o que eu vejo que resta de ti.
eu já não sou eu inteiro porque perdi o que falta agora em ti.
sou o que resta do que resta do que eras.
quando entro aqui, um dia depois do outro dia, depois da noite que vem depois do dia seguinte, um dia mais do que o dia anterior, não te reconheço em nenhum deles.
olhas para mim sem olhares para mim e sei que também já não me reconheces.
e sei que vou perder, agora e nos dias que faltam, o resto que resta de ti.

14/05/2012


«Cansamo-nos de tudo, excepto de compreender. O sentido da frase é por vezes difícil de atingir.

Cansamo-nos de pensar para chegar a uma conclusão, porque quanto mais se pensa, mais se analisa, mais se distingue, menos se chega a uma conclusão.

Caímos então naquele estado de inércia em que o mais que queremos é compreender bem o que é exposto – uma atitude estática, pois que queremos compreender sem nos interessar, sem que nos importe que o compreendido seja ou não verdadeiro, sem que vajamos mais no que compreendemos senão a forma exacta do que foi exposto, a posição de beleza racional que tem para nós.

Cansamo-nos de pensar, de ter opiniões nossas, de querer pensar para agir. Não nos cansamos, porém, de ter, ainda que transitoriamente, as opiniões alheias, para o único fim de sentir o seu influxo e não seguir o seu impulso».

Fernando Pessoa, O Livro do Desassossego, p. 243

23/02/2012

Faz-me falta olhar para ti. Olhar para ti para ver o que vês em mim. Faz me falta ouvir-te dizer absolutamente nada quando chegas e quando partes. Quando olhas para mim mergulhado em silêncio e me abandonas de olhos cheios dos nadas que te e me compõem. Sou o reflexo do que vês e nunca sei o que é, só porque não me dizes rigorosamente nada. Há já tanto tempo. Faz-me falta saber-te mas a tua distância ditou o reflexo do que deixei de ser para ti e esse silêncio, o que vem daí, só a mim pertence.  

19/02/2012

ch.e.gar.a.tem.po

Pensei que dava tempo para chegar a tempo. Apesar de ter feito o tempo parar por aqueles breves segundos, não foi o suficiente. Não cheguei a tempo e isso agora é tudo com o que posso contar. Era suposto ter chovido hoje para evitar o que o verão vai trazer. Era suposto ter acontecido tudo hoje mas nada chegou a ser. Não cheguei a tempo. Como sempre.
Ainda assim quis recordar exactamente há quanto tempo ando a cavalgar este deserto e não consegui. O tempo disse-me, em tempos, quanto tempo já tinha passado pelo tempo mas esqueci. Deixei de conseguir lembrar. Como tu deixaste de conseguir lembrar.
Talvez também não tenhas conseguido chegar a tempo do tempo. E por isso não te consigas recordar mais de nada do que o tempo te trouxe e te levou.
Também pode ser que tenhas sempre chegado a tempo do tempo mas que não tenhas querido nada com o tempo porque este passou por ti sem te dizer adeus uma única vez e tu não soubeste nunca perdoar. Ainda hoje não o sabes. Embora já nem te recordes do que é que não te consegues esquecer de nunca perdoar.
Hoje parece que é já uma eternidade que fez com que o que restava do tempo me deixasse cair na areia quente. E como tu não recordas nem queres mais nenhuma vez recordar, também eu hoje me esqueci de há quanto tempo ando por aqui. Mas não teve importância, como vês. Nunca chego a tempo. E hoje, não foi possível haver qualquer excepção apesar de eu ter conseguido,
por breves ridículos momentos,
ter conseguido sossegar o tempo.

20/01/2012

aBandOn_O

Deixaste-me ficar



                                  em suspenso


num lugar que não queria conhecer


                                  à espera.






Aguardei que as noites pudessem terminar,


Pelo menos por um                       momento.


Esperei sempre que o teu regresso fosse a minha libertação

e agora encarcero-me na chuva que não chegou a cair.






Guardo cada fragmento do tempo


                                                 deste tempo todo


e coloco-o no lugar que é mais fundo em mim,


antes de me deixar                 esquecer.






Respiro no respirar de uma apneia


                                                 demorada


E seguro o último resquício da minha voz


Em silêncio.                             Sempre.





Não reconheço o lugar onde caí

e nada me resta senão segurar a distância em ambas as mãos e correr até


poder voltar a cair.                    Sem esperar.


Uma e outra vez.


Até deixar de sentir o resto              que falta.



Abandonado em mim.















rest.AR

Há restos de comida no chão. Cheira ao que ficou de ontem. Cheira a noite vazia. A esterco. São restos aqui e ali. Coisas que faltam em coisas outras que não as que não chegaram a chegar aqui. Há restos em todas as divisões desta casa. Restos de ti. Restos dos restos que restaram de mim. Em todas as paredes os sinais que só a sujidade que carrego sabe deixar dançar sobre a ideia de claridade da luz. Mas não há luz aqui. Só os restos.  

pEl.E

Estou cansado. Limpo os olhos e as mãos da terra vermelha que chegou no vento frio da tarde. Coloco os dedos fechados nas palmas e o resto nos bolsos. Abro, lenta e dolorosamente, os olhos à medida que sinto o resto a aproximar-se. Estou cansado. Tenho as pernas a ranger no soalho apodrecido. Tenho o corpo frio como o inverno que confirmo existir somente em mim. Cumpro ordens das memórias soltas que me devastam num sol quente de um deserto esquecido em terras de uma África distante. Não tenho fé. Nem tenho já tempo para a aprender. Tenho o que penso ser um qualquer fim a chegar-me aos pés e decidi não fazer absolutamente mais nada para o impedir. Nem sequer fechar os olhos. Vou queimar-me das memórias inteiras e olhar o devir de frente. E mais nada seria expectável deste deserto que amanhece na areia vermelha da minha pele.

03/01/2012

nevo.a

o corpo fundido na
incerteza escura do
nevoeiro que se abateu pela cidade
hoje.
caminho como se arrastasse
correntes presas na pele
dos ossos.
há ruidos
insuportáveis
a moldar-me os pés
a ferir-me nos olhos
a abandonar-me na terra
dos jardins vazios.
sou a névoa do nevoeiro
hoje
e abandonei-me da
na
cidade.
hoje.

20.12

o que mudou,
agora,
que um novo ano começou?