16/12/2013


Quando olhares para mim já não me vais encontrar. Vou ser eu aqui sem ser eu aqui. Não vou ser mais do que o que já fui e o que deveria ter sido e o que ficou no meio do caminho. Vou ser mais mas vou ser menos que mais. Vou ser o que sobra das coisas que não findam. Vou ser como o sol no inverno e a chuva no verão. Vou ser eu sem ser eu. Vou ser nada depois de mim. Vou chegar a ser o que nunca fui e não ser nada mais além do que o que devia ter sido. Vou ficar por ser o que era para ser sem ter chegado a ser em momento nenhum. E isso terá de ser o suficiente. Se voltares a olhar para mim.

12/11/2013

Segura-te bem. Isto é o começo do fim. Todas as linhas de aço que te seguram estão já corroídas do tempo e da chuva que não chegou, nunca, a cessar. Segura-te bem. O fim é o momento que vem depois de agora.
Não precisas temer nada do que possa vir. Não vai ser muito diferente do que viveste até aqui. Não vais questionar. Não vais querer mais. Vai ser tudo igual.
O mesmo cubo de onde não vais, nunca, chegar a aprender a sair. Paredes que nunca vais aprender a deitar abaixo. Portas que nunca vais aprender a abrir. Tectos que nunca pintaste de mais nenhuma cor que não o mais negro dos negros que a noite pode ter.  
Segura-te bem. Os fios estão a estilhaçar o que resta do tempo que falta. Um. Dois. Mais um.
Tudo termina muito em breve. Segura-te bem.

Não te consigo ouvir. Escutar cada movimento teu é uma parte de mim que morre em agonia. Não tenho para onde fugir nem sequer já tenho a força que precisava para o fazer. Perdoa-me.

Não me consigo mover desta cadeira. Respiro lenta e brevemente. Não tenho a certeza de estar vivo. Só o caos me atravessa em chicotes improváveis. E mais nada posso tolerar depois de hoje.

08/08/2013

in media vita, mortus sumus


olho para trás. miro a vida desenhada numa linha sinuosa, de contornos de avanços e de recuos, de becos sem saída e de autoestradas de vias percorridas, de veredas calcorreadas a pé descalço ao fruto de suor e de escorridas felicidades. uma linha de vida traçada ao fio de grãos de areia: imponente e impotente ao abraço da brisa que sopra ao rés-do-chão da vida. foi.

olho para trás. e toda a linha é uma extensão desalinhada e alinhavada com pedaços colhidos e deixados para que o peso fosse suportável. Miguel Torga tem uma expressão invejável pela sua imagem completa: será que desta vida fica ao menos uma baba como a do caracól que possa reluzir quando o raio do sol nela toque? permanecer.

olho para trás. em nenhures da linha escrevi que entre a autenticidade (a vida do espírito) e a efectividade (a vida da acção) da vida existia um hiato tão grande que nele cabiam outras tantas vidas. somos tantos e tão diferentes a viver a mesma vida, a aguentar a areia desta linha desalinhada de direita – ser tantos de um e um em tantos: estou aqui sentado. diferentemente.

olho para trás. ser é ser incomunicável: por maior e mais alto que seja o grito existencial, ele soará sempre a silêncio. escutar.

olho para trás. há momentos em que tudo corre alucinante de tão rapidamente que só é comparável à lentidão imóvel de outras ocasiões. a clareira de um sorriso dá sentido à floresta inteira, porque há sorriso e há floresta em não haver. respirar.

a meio da vida estamos mortos: olho para trás e aí miro a extensão da linha defronte; poderia ser maior ou mais curta, mas é tão-somente a extensão onde descansar o peso que, na tal-vez, seja incomportável ou ainda o lugar onde erguer uma montanha de movimento. interlúdio.

tudo o que puder ser, desafiando a impossibilidade, repousará sobre os ombros do meu mirar e desse peso farei a minha sepultura. esperar.

23/07/2013

@


Quanto mais a corda do tempo se estica e se dilata, maior é a lucidez do lugar nunca ter sido diferente donde fomos para sermos - morremos novos demais e velhos de menos – e será nesta redoma que me diluo e - talvez - eu seja mais eu do que eu.

18/07/2013

twelve


Conto os anos que passam sobre a pele dos dedos e já não chegam. Nas mãos o tempo já passou vezes demais. Anos demais.
Há 12 anos que te guardo no medo de te poder perder. Não te posso, nunca, perder.

07/07/2013

longE

Foram os anos que sobre nós passaram
todos estes anos.
Estamos na esquina de um largo da cidade
e cessamos de respirar.
uma apneia para nos sabermos reconhecidamente ali,
naquele lugar,
tão infinitamente longe.

06/07/2013

fuga


Não há nenhum lugar para onde se possa fugir quando não se sabe onde se está. Se não sabes onde estás não podes saber, nunca, para onde vais. Assim, não podes saber por onde passar para te esqueceres que existes, pelo menos por um momento.

E se não consegues esquecer-te que existes, não consegues esquecer-te de quem és. E se te reconheces em ti sem te saberes bem no lugar que ocupas, o mundo enfraquece em todo o seu sentido.

Não esperes que eu saiba voltar ao lugar em que estávamos antes de chegar aqui. Já não sei o caminho de volta porque me esqueci de tentar lembrar. Nem tu nem eu podemos fugir. Eu de mim. Tu de ti. Eu de ti.

Não podemos mais fugir porque nenhuma de nós sabe onde está. Não há luz nenhuma aqui.

vidRo

é como se partisses tudo em que tocas
como se todas as peças de todos os gestos
fossem meros restos de vidro
como que pisados
como que esmagados

tudo em que tocas desfaz-se perante o olhar meu que te olha
por mais que tente compreender a que lugar pertence cada fragamento,
não consigo
como se fosse um puzzle incompleto a que
infinitamente,
faltará sempre
pelo menos,
uma peça


caminho com as mãos descalças sobre os vidros de ti
rasgado a carne da pele para me saber
a quase morrer.

03/04/2013

estar estando


Estou sem estar como se estar significasse estar estando sem ter chegado a estar porque não chego a estar no lugar certo para se estar estando.
Se não estou não tentes que esteja porque vou estar sem estar a estar e isso não significa nada.
Queria que estivesses a estar estando sem teres de estar em nenhum outro lugar.
Se estivesses a estar aqui, agora, dir-te-ia que estou a estar estando sempre a estar sem ter de voltar a estar em nenhum outro lugar enquanto estiveres estando a estar aqui.

02/04/2013


Sento-me e aguardo. Fecho os olhos sobre os braços e canto em vez de chorar. Espero que a noite não seja mais dia mas o dia parece não querer terminar hoje. Guardo a confusão do mundo num lugar quieto e ainda assim…não pára. Aguardo. A noite vem sem ter vindo porque o corpo parece não querer ceder ao cansaço. Quero ceder ao cansaço. Sento-me e aguardo. Coloco a iluminação no mínimo possível para provocar uma saída. Inutilmente. Os olhos pesam sobre os braços e as feridas do dia começam a pulsar na pele. A dançar no pensamento. A electrificar a impossibilidade de parar. Sento-me e aguardo, em vão, que a noite me leve, quieto, até ao dia de amanhã recomeçar.

01/04/2013


é sempre inverno agora.

há uma primavera a querer começar e não há tréguas.

a chuva queda como se amanhã não houvesse mais do que a possibilidade de continuar um dilúvio puro para lavar a terra que ficou nas mãos cansadas depois da guerra.

hoje foi mais um dia deste dilúvio contínuo. caíram serras e montanhas dentro do mar revolto. cairam marés dentro da areia afogada em si. caíram homens dentro das suas próprias almas.

a maré cinzenta a consumir a cidade das cidades e a sombra das sombras. as mãos da terra e as terras das mãos.

o céu a enegrecer cada fragmento bélico no ar e a não ser possível respirar sem medo.

não olhes para o céu agora que é da cor da terra nas tuas mãos antes do mar chegar no resto da maré do dilúvio cansado e lavar tudo.

guarda tudo o que não queres que o inverno devaste porque já falta pouco tempo para tudo voltar a terminar. mais uma vez.

se o dilúvio de lágrimas em que o céu se desfez terminar, já não se recuperam as almas mas volta a ser possivel respirar o ar das marés, sem medo de cair na areia e se afogar.

não olhes para o céu. agora. espera.

31/03/2013

fico em silêncio porque nunca soube dizer bem as coisas certas. guardo o silêncio dentro da minha incapacidade e deixo que tudo parta para longe do lugar onde permaneço incapaz.
perdoa a minha incapacidade.
perdoa nunca ter sabido dizer tudo o que queria ter dito há já tantos anos.
percebo que me tenhas deixado ficado aqui, no meu lugar sem lugar a ti, mas nunca soubeste porque tiveste de o fazer. eu nunca te expliquei.
todos os dias te vi e te revi, te vivi no lugar vazio que sempre tive dentro de mim. és o meu destino desde que te conheci e por ser tão pequeno face a tudo o que eras, desisti de tentar ser o que não poderia ter sido.
não te mereci. nunca te mereci e ainda hoje não mereço mas a verdade é que te não esqueço nunca e parte de mim sobrevive pela memória de ti.
guardo o que me restou bem dentro do meu lugar vazio e encho-o do que poderia ter sido. e isso terá de me bastar.
 
talvez um dia me possas reencontrar no lugar em que te deixei partir.
és o lugar onde eu acabo e não sou nada além do lugar de ti.