21/02/2010

tacto

o tempo escorreu-me dos dedos hoje.
não segurei nem uma parte.
deixei tudo cair como se a gravidade fosse a lei mais forte a reger o este espaço.
depois do fumo que me cobriu a vontade hoje não encontrei a porta daqui. tacteie com todo o cuidado, gentilmente, todas as partes das paredes em torno do meu corpo e não encontrei a porta.remeti a minha necessidade de fuga ao saber dos condenados e permiti que o resto do tempo me atravessasse as mãos. assim. como se nada fosse.

15/02/2010

diurno

Talvez hoje seja dia de não ser dia como se os dias que não devem ser dias pudessem deixar de o ser apenas porque não os queremos a ser. Mas não. Não podem deixar de ser o que são apenas porque em nós não cabe a sua condição de ser assim.
Sonhas que os dias que não devem ser dias não sejam mais do que noites porque nas noites resta o que os dias não querem o que as palavras não dizem o que os estranhos não vêem. Estes dias são para ti a verdadeira prova de que o inferno é o que te ferve no sangue e te queima na pele. Estes dias servem para te avisar que o lugar que vem a seguir é o que sempre imploraste que não chegasse nunca. O que a areia do deserto deveria ter coberto e que não chegou a ser suficiente. O inferno dos dias é o que te corre na alma. E por isso já nenhuma noite pode silenciar as dores dos dias que não chegaram, nunca, a ser dias.

14/02/2010

músicanoite

A música não é suficiente.
Do outro lado da rua violência nos gestos e nas palavras colocam duas naturezas humanas em conflito.
A música não é suficiente para abafar o som.
A rua fria no frio da noite e depois um café de porta aberta. De paredes sujas. De sons desfeitos na antiguidade do chão e das rugas de quem lá passa.
A música não chega para fazer esquecer.
Depois o outro lugar. O lugar que a noite esperava encontrar longe do vazio, fora do abismo. Tu encostado ao balcão a olhar-me sem saberes porquê. A querer-me sem perceberes porquê. A seres incapaz sem quereres saber porquê. Eu na espera incapaz de quem nada espera mais. A olhar-te nos olhos que viam sem me ver e percebi tudo quando tive de te deixar vazia. É que nem a música é suficiente para nos fazer compreender que já desaparecemos há demasiado tempo para nos podermos ver nos olhos.

12/02/2010

delirio

fico em silêncio agora que não estás.
fujo da minha sombra contornando os obstáculos que criei na tua ausência.
lambo os dedos e limpo na roupa o que resta quando sais.
depois, fico a olhar o mar no desejo de que as ondas aqui cheguem e me levem de encontro às rochas.
e nada ouço.
nada digo.
fico em silêncio como se o mar não estivesse dentro de mim.

11/02/2010

vidro

Olhei através do vidro e não pude ver nada. O vidro não estava lá. No lugar apenas fragmentos. Apenas partes de um todo desfeito no ar.
Quando olhei para a imagem que não via compreendi tudo.
Não estava nada ali.
Não estava ninguém mais ali. E por isso não podia ver.

Foi quando olhei para trás que senti a chuva cair. Apenas nesse momento percebi que chovia desde ontem, incessantemente. Só aí. Quando mais nada restava.
Verifiquei a pele das mãos. O lugar da boca. Os fios do cabelo. Fechei os olhos. Vezes sem conta fechei os olhos de olhos fechados e desequilibrei-me. Passo após passo e eu a perder o equilíbrio. Como se não houvesse chão ou como se ele fosse de lama de pedras de socalcos de montanhas.

Não ficou nada para me lembrar do caminho.
Meu campo de visão absolutamente vazio e isso teria de ser o suficiente para saber voltar.
E foi na insegurança do desequilíbrio que retomei a marcha. Pelos fios de cabelo. Pela pele da pele. De olhos fechados sobre os olhos fechados.
A saber que não estava mais ninguém ali e que eu já não podia, nunca mais, regressar.