30/10/2009

Chão

apetece-me des-ser-me;

reatribuir-me a átomo.

cuspir castanhos grãos

mas gargantadentro;

isto seja: engolir-me para mim

poucochinho a cada vez.

um por mais um: areios.

assim esculpir-me a barro

e resser chão. muito chão.

apetece-me chãonhe-ser-me.


Ondjaki, «há prendisajens com o xão»

28/10/2009

little things

The little spirits of the night grow as the night fall deep in the darkness – as we die in the little things of every day –. I wonder if, in the end, there is something to die in us and if we die for anything or if we simply die without «wondering». The little things, the nothings, grow each day that pass by, they multiply themselves as we touch and feel the world; and they disappear as we get along the way without missing them: we die to be in the little things, they die in us to become what they must be. Each day I see it, each day I’m closer and closer, each day I’m fuller of death than of life: what must be is the «must» of becoming without choice, but with purity of freedom unchosen.

27/10/2009

às vezes,
mas só às vezes,
depois do cansaço
instala-se a cegueira






e

deixas de saber o caminho

26/10/2009

eucalyptus

cheira a eucalipto. as folhas e os frutos no chão onde arrasto os dedos.
não reconheço a imagem de lisboa nestes cheiros.
cheira-me a um lugar junto da minha terra. junto do mar. não daqui.
às vezes não me reconheço nesta cidade mas também não me encontro noutro lugar.
respiro lisboa com cheiro a eucalipto e finjo estar noutro lugar mais próximo da terra. mais próximo da capacidade de respirar. mais próximo do que fui.
hoje sou o que resta de uma folha de eucalipto deitada sobre o chão e fustigada pela chuva e pelo prenúncio do inverno.
hoje não sou nada disto que o reflexo desta cidade deita sobre o meu olhar. não sou rigorosamente nada disto mas também não sei mais do que isto.
talvez por hoje seja o suficiente saber tão pouco. apesar de saber que, na verdade, é absolutamente insuficiente saber - assim - tão pouco.
amanhã não haverá mais esta folha no chão e o meu reflexo terá cheiro ao sabor desta cidade. amanhã saberemos mais um pouco de qualquer coisa que hoje o mar não trouxe a este lugar esquecido na terra.

22/10/2009

Alice Vieira - 14

Toma-me ainda em tuas mãos e
não perguntes nada
nem sequer dês um nome aos gestos que se abrigam
como um fruto uma promessa um murmúrio
nas fogueiras arcadas de junho

juro que vou escolher palavras que não doam
parecidas com as que sempre encontrava
nas camas em que tantas vezes te enterrei
por dentro do meu corpo

toma-me ainda em tuas mãos eu sei que
temos pouco tempo que não queres
inventar novos ardis para um desamor tão velho
mas vais ver
o mundo é apenas isto e para isto
não procures nenhuma filosofia redentora
porque tudo é no fim de contas tão banal

podes por isso começar a refazer a estrada que
te levava ao centro dos meus dias e esperar
que eu chegue com um retrato desfocado nas mãos
na hora certa de abrir para ti as minhas veias

Alice Vieira - 14
in O Que Dói Às Aves - Poesia
Ed. Caminho
2009

21/10/2009

Girl Stuff Boy Stuff

Há 10 anos (um bocadinho mais) que tenho carta de condução e que, efectivamente, conduzo.
Nunca tive grandes problemas (umas ofensas pessoais de vez enquando, um toquezito ou outro,no big deal).
Ultimamente (leia-se nas últimas duas semanas), desenvolvi uma incapacidade significativa de contornar devidamente passeios em movimento de curva...não entendo se é um problema oftalmológico ou de qualquer outra ordem mas o que é certo é que agora entendo que o pneu de trás (direito ou esquerdo dependendo de que lado o passeio estiver) deve tocar/bater/embater na pedra... Naturalmente que tal situação, um dia, haveria de gerar problemas.
Hoje foi o dia.
Não sei se por distracção (não me parece), por dificuldade de visão (começo verdadeiramente a considerar esta como a hipótese mais viável) ou por intenção inconsciente, lá foi a roda traseira embater (sim, não foi tocar nem bater, foi mesmo EMBATER) contra a m**** da pedra. E não foi num gesto romântico nem suave, não... fez mesmo PUMMMMMMMMMMMM. E o pneu rasgou. Ou é furou o termo técnico???!!!!
Bem...acontece que eu tirei a carta, como já referi, há mais de 10 anos. Se alguém me ensinou a mudar um pneu nessa altura, não sei. O facto é que desconheço, em absoluto, a arte de mudar um pneu. Hesitei antes de ligar para a "Assistência em Viagem". Hesitei....hesitei...hesitei...não queria ser uma girl a achar que mudar um pneu é boy stuff...mas considerei ser a melhor hipótese depois de inspeccionar com rigor pouco técnico o pneu (o que restava dele) e a pedra. Entendi telefonar. 25 minutos e 4€ de telemóvel depois, atendem. Questiona a jovem que me atendeu: "foi acidente ou avaria" acidente avariado, digo eu. "E que aconteceu à viatura?" pneu furado, digo eu. "E porque não muda o pneu?" silêncio, fiz eu. Silêncio. Silêncio. "Desculpe?" perguntei eu. "Porque é que não muda o pneu a senhora?" insistiu ela. Silêncio. Eu em silêncio na expectativa que ela compreendesse que se eu estava a pedir auxilio era porque não sabia e/ou não queria mudar o pneu! Mas ela não entendeu e já muito a custo, voltou a perguntar "Porquê?". E eu respondi - em primeiro lugar porque não sei, em segundo lugar porque não tenho força. Ela disse "Muito bem, vou mandar o reboque, deve chegar dentro de 35 a 40m". Reboque??"Sim, pode não ser possivel mudar o pneu". Já não quis saber mais nada. Esperar...Estava determinada a esperar.
40m depois recebo uma chamada no telemovel. "É o rapaz do reboque. Onde é que está a viatura?E oq ue é que aconteceu?Ah, então temos de o levar porque deve estar alguma coisa partida. Estou a chegar.". 10minutos depois chega o rapaz do reboque. Não me olha de frente. Coloca o seu ar de macho a inspeccionar o carro (agora sim de forma técnica!) até que olha para mim esboçando um sorriso mesmo à rapaz do reboque. "Não sabe mudar um pneu?" e eu digo, "sei mas estava só a precisar de companhia" Ele achou piada. Pois foi. Dei uma de silly girl que não quer sujar as mãos e que os rapazes do reboque adoram e disse "ensine-me, nunca ninguém me ensinou". O rapaz do reboque encheu-se de boy pride e muito à macho disse, "claro, vamos lá".
Numa rapidez e eficiência bastante razoáveis, o rapaz do reboque foi dando conta do assunto. Pediu-me um chapéu de chuva porque já estava a passar das marcas tanta água sobre o seu boné, e eu segurei o chapéu até ele terminar. Não quis o boy mais molhado do que seria expectável numa situação destas.
Ele sugeriu, com o seu ar muito profissional "amanhã quando for mudar o pneu, peça umas porcas de segurança; ele não tem porcas e qualquer dia levam-lhe os pneus"(não percebi bem se era uma ameaça ou um aviso ou um conselho ou algo de intermédio).
Tirou as luvas à homem, olhou-me nos olhos e disse "Até à próxima".
Espero que não haja próxima.
De qualquer forma, mesmo que não corrija esta minha trapalhice a fazer curvas de passeios, agora já sou uma mulher capaz de mudar um pneu! Tudo graças ao rapaz do reboque.
Girls will be girls. Boys will be boys!
;-)

20/10/2009


Podia ser apenas um minuto até poder atravessar a rua. Mas não esperei.
Podia ter esperado um minuto. Mas não. Tentei.
Os passos do caminho impeliram-me para a frente e fui.
Não tive medo. Nada. Fui.
Tudo pareceu demorar uma eternidade. A eternidade em que me sou sem saber mais nada para além desta incontrolável necessidade de avançar.
Os dias e os anos passaram-me pelos dedos das mãos pelas mãos dos dedos por todo o corpo do corpo.
Atravessei como se atravessasse o tempo. Como se não atravessasse nada menos que o tempo e o tempo a parecer ser tanto que não cabia no momento.
Os passos no caminho impeliram-me para a frente e fui.
O corpo pareceu-me demasiado grande e imperfeito para permanecer ali. Tudo me parecia disforme e (des)desenhado numas linhas invisíveis que faziam tudo parecer desproporcionado.
Podia ter fechado os olhos se quisesse. Podia ter não ter visto nada de mim mas ainda assim fiquei com o olhar fixo. Como se não visse o que não podia ver ou como se visse tudo o que não devia naquele preciso momento encontrar frente a mim. O corpo a não caber no momento.
O corpo a deixar de existir no momento em que decidi fechar os olhos por já não ver.

Fecha-me no lugar errado de mim.
Encosta-me à parede e diz teu nome.
Repete o acto de chover assim que teus pés nus tocarem na minha terra.
Não respires.

Olha-me nas costas
e sente as feridas a fecharem sobre o sal.
Respira-me no nome e remete o resto ao segredo que vem com as coisas
que se não podem dizer.

Deixa que o som que faço a respirar não te doa.
Nada tem que te doer.
Se não dançares mais sob as sombras poderá ver o que eu vejo
daqui.

Não respires.
Fecha-te no lugar errado de mim.

19/10/2009

"Os homens que odeiam as mulheres"


Os homens que odeiam as mulheres


De: Niels Arden Oplev
Com: Noomi Rapace, Michael Nyqvist, Sven-Bertil Taube

http://www.millennium-ofilme.com/

um filme denso. no enredo. na construção das personagens. nas ligações. no contexto das investigações.
Um filme bem filmado. Os pormenores. As salivas. As mãos. Os sons.
Dois elementos essenciais. A relação que se constrói entre Mikael e Lisbeth e a investigação.
Falta, ainda, a coragem para ler as 600 páginas do livro.

15/10/2009

musica de hoje

2 cd's adquiridos hoje

femina - the legendary tigerman
uma agradável supresa. todas vozes femininas convidadas. bons titulos. boas sonoridades.


stan getz - une anthologie 1952/1955
um artista brilhante. excelente jazz.

corpodesasossego

teu corpo na frente do meu
o meu lugar de gestos completos, destemidos, reais, delineados no tempo e no movimento
teus gestos a desafiarem as leis da fisica e da gravidade,
gravosos no movimento,
desconexos no sentido,
ilusórios na meta,
indiscretos nos olhares dos outros.

o teu corpo treme sem controlo
nas mãos
nos dedos
nos braços
no olhar
o ar a ser coliseu em que travas batalhas de bravura e de persistência incomparável
o ar a ser o lugar onde derramas tudo o que teus dedos não seguram, tua mão rejeita, teu olhar não acompanha.

olhas-me em cada momento que desistes e eu peço-te que tentes mais uma vez
descansa.
de novo.
agora.

o acto de comer é para ti o desafio maior do mundo neste momento e sentes-te a chegar ao limite da tua capacidade de desafiar o indesafiável e que está, a priori, condenado a falhar.
danças na iminência da perda de toda a possibilidade de conseguir e
cansas-te e
imploras para dentro que um momento genial (e certamente inconcebível) te possa permitir terminar a refeição e
tentas.
e não consegues.

olhas-me uma última vez.
já não te peço que continues.
olhas-me como se eu fosse o último reduto da tua esperança e eu seguro-te na mão que dança sobre o teu gesto secreto.
e levas o teu corpodesasossego a dançar na agonia que reside no atravessar uma aresta de um lugar de gelo com os pés descalços e levas no olhar as lágrimas de quem, com toda a sua força, tenta desesperadamente... e não consegue.
sobra o cansaço.
sobras tu a dançar na partida.
sobro eu a abraçar os meus gestos como se pudessem ser os teus.



NB. este fragmento surgiu na sequência de um almoço em que se sentou na minha frente uma senhora idosa, de uma lucidez incrivel, com um parkinson avançadissimo e que não conseguiu terminar a sua sopa pela mais genuina das incapacidades, apesar da sua enorme vontade.

O traço de corda que te ilude a sensação de estar preso a qualquer coisa, está no limite.
Não estás preso a nada.
Rigorosamente nada.
A corda está velha. Gasta. Húmida.
Não tentes refazê-la. Repor os nós. Não tentes.
Tens vidros nas mãos.Tens vidros na corda.
Não tentes.

13/10/2009

I hate mondays

Há dias assim:
Acordas tarde. Tropeças na roupa que deixaste atirada para o chão. Lavas a cara. Desodorizas-te à imagem e semelhança de um gato (não há tempo para mais). Vestes a primeira coisa que te aparece (não do chão, da gaveta, do armário). Sais a porta e verificas (pouco cautelosamente para não doer tanto) que te esqueceste de cerca de ¾ das coisas que necessitavas, impreterivelmente, levar.
Voltas atrás na expectativa vã de que não demores mais do que 30 segundos a recuperar tudo o que já devia estar nas tuas mãos.
Verificas (vergonhosamente) que levaste mais de 10 minutos à procura das coisas que já nem te lembravas quais eram e acabaste por sair de casa, novamente, já com apenas 2/4 do que era preciso. Já não importava. Seguias assim.
Metes-te no carro na ilusão de que vais chegar, miraculosamente, por obra e graça do espírito des-santificado, quase à hora prevista. Numa rapidez incrível compreendes que é impossível. Como tu, estão agora centenas de milhares de pessoas a tentar vencer a mesma ilusão. Não funciona. Um a tentar quebrar o sistema era aceitável, tantos não dá.
Pões o rádio mais alto para ouvires uma qualquer música que te inebrie os sentidos e f**** começam as noticias.
Apercebes-te que o mundo não é de relevância absolutamente nenhuma para ti. Não queres saber. Simplesmente não queres saber. E isso não te preocupa. Acabas por saborear o momento de um zapping frenético por entre todas as ondas hertzianas (ou seja lá o que chamam a isso) e não ouves nada. Estática. Ruído. Não queres saber.
Quase que pensas que o melhor era fechar os olhinhos e fingir que ainda estás no quentinho da caminha mas depressa um macaco qualquer metido à besta quase roça o chassis do seu automóvel no teu e esqueces a possibilidade de sossego. Avanças.
Chegas tarde. A más horas. De sonos trocados. (mas ao menos levas os 2 sapatos iguais…já não é mau).
Sentas-te na secretária. 1000 recados. Nenhum bom (tentas não questionar a lei de murphy metida ao barulho).
Atiram-te à cara os erros. Os enganos. As más interpretações (quem é que não entendeu o quê?) Deixas cair tudo como se as tuas mãos fossem areia. Não reconheces o acto de segurar. Preocupas-te que o mundo acabe nesse momento e tu não tenhas rigorosamente nada nas mãos por uma total e absoluta incapacidade de agarrar!
Ouves os zumbidos das vozes que se não silenciam nunca. Tudo te parece absoluta e terrivelmente insuportável.
Ninguém te olha nos olhos.
Ninguém te segura nas mãos.
Ninguém dá importância ao tsunami que está a chegar na tua cabeça e tudo parece que aconteceu exactamente ao mesmo tempo.
Tudo o que não é bom. Tudo o que de menos bom poderia acontecer (apuras o sentido melodramático da ironia e elevas tudo à 5ª casa na tentativa de impor um sentido matemático à situação).
Se tentas correr, tropeças.
Se tentas dialogar, gritas.
Se procuras música, há silêncio.
Se tentas andar, mandam-te saltar.
Se seguras, cai.
Se cai, não consegues pôr de pé.
Se evitas, estragas.
Se não evitas, estragas na mesma.
Por mais que tentes fazer bem sai mal.
Questionas o sentido de te teres levantado à pressa. Se deverias (sequer) ter-te levantado.
E consideras: o filho da puta do gajo lá de cima tem um sentido de humor apurado!

11/10/2009

questioNamento

Todas as manhãs o corpo reage da mesma forma. Esforça-se por iniciar o percurso da existência quotidiana e responder a todas as exigências impostas.
Nunca questionamos se o queremos fazer. Seja o que for que fazemos, fazemo-lo sem ter a real noção de que estamos, efectivamente, a fazer uma determinada coisa. Não nos questionamos.
A nossa existência, em última análise, pode não chegar a ser muito mais de que um conjunto variado de actos, de gestos, de acções previamente determinadas, apreendidas e reproduzidas no rigor exacto da exigência que o momento em causa imponha.
Se tentarmos desconstruir todos os nossos movimentos desde que o corpo se levanta e a mente desperta para as razões do mundo, ficamos quase sem reacção face às nossas acções.
Agimos em conformidade com o ambiente. Encolhemos se faz frio, rimos de vermos uma coisa bela, tocamos se precisarmos compreender melhor, seguramos para não deixar cair, vestimos por obrigação, comemos por necessidade ou rotina, respiramos inconscientemente embora em menos quantidade do que o que respiraríamos se tomássemos consciência real do acto em si, levantamo-nos para andar, sentamos para descansar, repetimos “olás” e “até logos” e “tudo bens” mecanicamente, sorrimos por obrigação, cantamos para ignorar o silêncio, repetimos os mesmos movimentos no trabalho, acumulamos dores sem dizer nada, sem as realmente sentirmos como tal e um dia estamos deprimidos, calçamos os mesmos sapatos porque nos são confortáveis e precisamos, inadvertidamente, de conforto na nossa vida, fotografamos momentos que achamos importantes ou que precisamos guardar memória porque a memória já nos atraiçoa, tomamos banho não num gesto de catarse mas numa obrigação cultural e necessidade orgânica, defecamos, cuspimos, engolimos, fodemos, amamos ou tentamos amar, seja o que for, seja quem for, bebemos, escutamos, criamos, sentimos, desacreditamos.
Em todos os momentos de um dia, do torno das 24h em que existimos repetidamente dia após dia, não temos noção dos nossos actos. Não temos real consciência do propósito da nossa existência e do que podemos fazer com ela.
As escolhas são tudo o que acaba por nos definir face aos outros, ao conjunto dos outros.
O resto parece que é apenas um acréscimo sem o ser realmente porque antes de ser acréscimo é a base de tudo o resto. É o início. É o começo. Porque não nos apercebemos disso? porque agimos de forma tão mecânica, tão ébria, tão inconsciente?
Seremos seguramente donos das nossas acções quando conscientemente as escolhemos?
E o resto...o que faz de nós?

Não nos questionamos vezes suficientes.
Talvez seja isso que nos permite continuar.
Talvez seja isso que não nos permite melhorar.

IluSãO

O lugar que o tempo ocupa em nós agora não é mais do que o reflexo da tua distância.
O lugar que ocupas em nós não tem espaço. Não tem dimensão. Não está, simplesmente. Não está.
Ergo-me como se fosse feito de pedra e olho-te de frente enquanto caminhas.
Tu de costas a andar.
Eu de pé a ver-te partir e a sentir que nada mais no mundo poderá, vez alguma, vir a ter qualquer tipo de importância.
E o mundo podia acabar ali. Naquele momento em que te vejo desaparecer da possibilidade de mim. E não acaba. Não consegue acabar. O mundo. Eu.
Do pó de pedra que reside dentro do meu corpo consigo o acto de cerrar os olhos e apaziguar a dor. Deixo de te ver. Isso basta. Deixas de estar aqui. E isso é o suficiente para que eu compreenda que qualquer ilusão é possível desde que a desejemos muito. Muito. Talvez até num acto irreflectido e inconsciente de excesso.
Não temos um lugar aqui. Neste mundo. Tudo isto foi ilusão pura. Sem poesia. Sem vontade. Sem querer.
Foram momentos breves em que a tua solidão tocou o meu desespero e nada mais do que isso.
Agora tenho o meu corpo nas minhas mãos e os olhos fechados.
A partir daqui já sei o caminho.

10/10/2009

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não há desconforto no silêncio no lugar de ti.

não há embaraço na fala nem dificuldade na marcha.

é simples o lugar que reside em ti.


mas é longe.

09/10/2009

quartafeira

A manhã começou da mesma maneira que todas as manhãs começam. Lenta. Difícil. Áspera.

Podia não haver sequer uma réstia de vontade mas a rotina impelia, cuidadosamente, para o acto de acordar. De levantar. De iniciar a frequência cardíaca a um nível suficientemente aceitável para se fingir que se consegue fazer tudo o que deve ser feito.

O corpo erguia-se da mesma forma. Lentificado nos gestos, áspero no toque, difícil no escutar. Nem uma palavra seria a possibilidade de perfeição no caos. Se não dissesses uma única palavra poderia fingir ser capaz.
Quase tão certa como escorregar e cair era a minha incapacidade de dialogar como se o acto da fala me soubesse a cortiça dentro dos lábios, na saliva, nos dentes.

Decidi mergulhar na água e retirar de mim o que restasse de ti. Devagar. Não porque o corpo ou a vontade ainda estariam junto à lentidão dos teus gestos, mas porque talvez sejas um lugar onde a minha pele cabe num movimento de dança quase, mas apenas quase, perfeito.