15/10/2009

corpodesasossego

teu corpo na frente do meu
o meu lugar de gestos completos, destemidos, reais, delineados no tempo e no movimento
teus gestos a desafiarem as leis da fisica e da gravidade,
gravosos no movimento,
desconexos no sentido,
ilusórios na meta,
indiscretos nos olhares dos outros.

o teu corpo treme sem controlo
nas mãos
nos dedos
nos braços
no olhar
o ar a ser coliseu em que travas batalhas de bravura e de persistência incomparável
o ar a ser o lugar onde derramas tudo o que teus dedos não seguram, tua mão rejeita, teu olhar não acompanha.

olhas-me em cada momento que desistes e eu peço-te que tentes mais uma vez
descansa.
de novo.
agora.

o acto de comer é para ti o desafio maior do mundo neste momento e sentes-te a chegar ao limite da tua capacidade de desafiar o indesafiável e que está, a priori, condenado a falhar.
danças na iminência da perda de toda a possibilidade de conseguir e
cansas-te e
imploras para dentro que um momento genial (e certamente inconcebível) te possa permitir terminar a refeição e
tentas.
e não consegues.

olhas-me uma última vez.
já não te peço que continues.
olhas-me como se eu fosse o último reduto da tua esperança e eu seguro-te na mão que dança sobre o teu gesto secreto.
e levas o teu corpodesasossego a dançar na agonia que reside no atravessar uma aresta de um lugar de gelo com os pés descalços e levas no olhar as lágrimas de quem, com toda a sua força, tenta desesperadamente... e não consegue.
sobra o cansaço.
sobras tu a dançar na partida.
sobro eu a abraçar os meus gestos como se pudessem ser os teus.



NB. este fragmento surgiu na sequência de um almoço em que se sentou na minha frente uma senhora idosa, de uma lucidez incrivel, com um parkinson avançadissimo e que não conseguiu terminar a sua sopa pela mais genuina das incapacidades, apesar da sua enorme vontade.

1 comentário:

  1. Numa distância abissal o encontro num ápice que produz uma melodia que eloquece o leitor...
    Bravo!

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