31/08/2020

 tocas-me com a voz caída sobre o chão. 

é asfalto velho o que nos rodeia. 

podia haver terra e árvores mas não. nada mais do que a pele a colar no asfalto e a esperança a rasgar-se na pele enquanto caminhas até mim. 

fecho os olhos. pego na lâmina que guardo dentro das mãos e desfaço-te. dura um momento breve por isso não receies. prometo que não demoro. prometo que desfaço tudo num instante. prometo que não vai sobrar nada de ti sobre a estrada vazia no calor que fica do sol de agosto. 

toco-te com o sangue a cair-me das mãos sobre teu corpo velho caído sobre o chão que é só asfalto. 

16/08/2020

Suspendo o tempo na espera que o tempo possa ter tempo de ser tempo.

Espero o tempo à espera de me tornar o lugar que espera pelo tempo que não espera.

Espero, suspenso no tempo, a ser espera de poder vir a ser um lugar a tempo. 

10/08/2020

pOinT

 há um silêncio que cresce em mim

permanece sobre mim

respira por mim

quando chego até ao lugar em que tu estás. 

Sento-me na madeira enegrecida pelo tempo ido e descarrego, aos pés, tudo o que me soterrava no caminho até aqui. 

Olho em volta com o olhar de quem aprendeu a poder ver o que há além do que é aqui - a ver o que há de divino - e esqueço todos os que me circundam. 

Escuto as pessoas, reparo nas suas sombras à luz da vela, escuto as suas vozes sussurradas, imagino os suspiros das suas angústias e da expiação dos seus pecados - latim orado na boca de quem sorri perante todas as coisas do mundo. 

Sinto o cheiro velho que as igrejas trazem dentro de si - no seu âmago visceral - como se fossem lugares que nunca terminam e onde o tempo - por mais que se deseje - nunca passa. 

Oiço o ranger da pedra e o frio da madeira. Sinto - nas mãos - as lágrimas que quedam por dentro enquanto meu corpo parece mais leve dentro de si mesmo. Um corpo na ilusão de ser - naquele momento - menos puído, menos flagelado.

Escolho olhar-me de longe do olhar dos outros que vêm o que querem ver. Algo em mim quer perecer como Tu - aqui a meu lado - guardado aos pés de tua mãe - sozinho - no caminho mais terno e tenebroso da humanidade. E nós todos a olhar-te, a sentir-te, a saber-te por perto, mesmo não estando aqui - ou em qualquer lugar em que possamos repousar os pés feridos. 

Quero acreditar que guardas em ti todos os que já partiram de mim. Quero acreditar que o teu abraço terá espaço para me receber, terá tempo para me escutar - mesmo enquanto o meu silêncio for tudo o que seja possível existir em mim - e paciência para esperar que eu possa parar de chorar - por dentro. 

Queria poder ser mais do que o que perante ti hoje represento, que perante o que se passa no meu mundo, significo. Queria poder ter sido melhor, ter feito mais, perdoado mais de mim. Queria poder estar - hoje - perante Ti sem lágrimas nas mãos, sem feridas na alma, sem a dor a pesar-me no corpo. Queria ter podido vir ver-te a dançar e a cantar - sem medos. 

Mas nada disso encontrarás em mim.

Estou despido sobre as cobertas do mundo. 

Estou integralmente despojado na madeira antiga e fundo-me com as suas rugas e suas asperezas, seus desesperos e suas esperas. Sou a parte mais negra do granito que acompanha os passos do chão desta casa. 

Perdoa-me mas não sei ser mais do que isto. Procura em mim - se quiseres - a certeza de que o medo não ocupará mais espaço na minha alma enquanto eu me sustenho na pureza da incerteza que faz de nós as tuas - o resto eterno das tuas  - mágoas. 

Perdoa por não conseguir ser mais, por não ter podido ser mais.

Permaneço quieto a olhar o segredo que as paredes sussurram dentro de si. Guardo-o em mim - no lugar mais fundo de minh'alma - para que nunca o venha a esquecer. Seguro o tempo nas mãos frias e percebo que o tempo não pode ser mais do que o que se espera que venha a ser. 

Sento-me, na Tua presença, despido de mim, com as mãos cheias de lágrimas e imploro - enquanto implodo - que um dia - talvez um dia - eu possa chegar até onde é suposto ser. 


Igreja das Carmelitas

Porto 

Março /2017


08/08/2020

 se começasse de novo,

neste preciso momento,

não saberia por onde ir.

reCogNitiOn

reconheço que não sou mais do que a evidência da tua humildade

que venho de um lugar que estava reservado nas coisas que pertencem ao passado 

- talvez não se deva voltar ao passado -

onde foste buscar-me pela mão

agora

deixas-me suspenso no limite da folha

quase a cair da tinta

da letra insegura da palavra de um poema que não chega a ser escrito.


reconheço que não sou mais do que um lugar de abandono

mas foste tu quem me deixou humilhado na suspensão do passado revivido na palavra quente na tinta negra nos dedos de uma ilusão.