10/08/2020

Sento-me na madeira enegrecida pelo tempo ido e descarrego, aos pés, tudo o que me soterrava no caminho até aqui. 

Olho em volta com o olhar de quem aprendeu a poder ver o que há além do que é aqui - a ver o que há de divino - e esqueço todos os que me circundam. 

Escuto as pessoas, reparo nas suas sombras à luz da vela, escuto as suas vozes sussurradas, imagino os suspiros das suas angústias e da expiação dos seus pecados - latim orado na boca de quem sorri perante todas as coisas do mundo. 

Sinto o cheiro velho que as igrejas trazem dentro de si - no seu âmago visceral - como se fossem lugares que nunca terminam e onde o tempo - por mais que se deseje - nunca passa. 

Oiço o ranger da pedra e o frio da madeira. Sinto - nas mãos - as lágrimas que quedam por dentro enquanto meu corpo parece mais leve dentro de si mesmo. Um corpo na ilusão de ser - naquele momento - menos puído, menos flagelado.

Escolho olhar-me de longe do olhar dos outros que vêm o que querem ver. Algo em mim quer perecer como Tu - aqui a meu lado - guardado aos pés de tua mãe - sozinho - no caminho mais terno e tenebroso da humanidade. E nós todos a olhar-te, a sentir-te, a saber-te por perto, mesmo não estando aqui - ou em qualquer lugar em que possamos repousar os pés feridos. 

Quero acreditar que guardas em ti todos os que já partiram de mim. Quero acreditar que o teu abraço terá espaço para me receber, terá tempo para me escutar - mesmo enquanto o meu silêncio for tudo o que seja possível existir em mim - e paciência para esperar que eu possa parar de chorar - por dentro. 

Queria poder ser mais do que o que perante ti hoje represento, que perante o que se passa no meu mundo, significo. Queria poder ter sido melhor, ter feito mais, perdoado mais de mim. Queria poder estar - hoje - perante Ti sem lágrimas nas mãos, sem feridas na alma, sem a dor a pesar-me no corpo. Queria ter podido vir ver-te a dançar e a cantar - sem medos. 

Mas nada disso encontrarás em mim.

Estou despido sobre as cobertas do mundo. 

Estou integralmente despojado na madeira antiga e fundo-me com as suas rugas e suas asperezas, seus desesperos e suas esperas. Sou a parte mais negra do granito que acompanha os passos do chão desta casa. 

Perdoa-me mas não sei ser mais do que isto. Procura em mim - se quiseres - a certeza de que o medo não ocupará mais espaço na minha alma enquanto eu me sustenho na pureza da incerteza que faz de nós as tuas - o resto eterno das tuas  - mágoas. 

Perdoa por não conseguir ser mais, por não ter podido ser mais.

Permaneço quieto a olhar o segredo que as paredes sussurram dentro de si. Guardo-o em mim - no lugar mais fundo de minh'alma - para que nunca o venha a esquecer. Seguro o tempo nas mãos frias e percebo que o tempo não pode ser mais do que o que se espera que venha a ser. 

Sento-me, na Tua presença, despido de mim, com as mãos cheias de lágrimas e imploro - enquanto implodo - que um dia - talvez um dia - eu possa chegar até onde é suposto ser. 


Igreja das Carmelitas

Porto 

Março /2017


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