27/04/2024

Fecho as gavetas todas. Queria vazar a casa. Retirar todas as partes.

Ficar despido de objectos.

Queria deixar a chuva entrar de forma a ocupar todos os espaços que restassem. 

Ficar desalojado de ar. 

Fecho os olhos e cubro a face com as mãos molhadas.

Queria, somente, que o tempo parasse para eu conseguir voltar a andar. 

15/04/2024

TG

Canto risos para vos iludir. Para dizer à tristeza que a tristeza não tem lugar nesta triste demanda em que me precipito, dia após dia. 

Canto para me iludir. Para dizer ao tempo que chegou o tempo de garantir que o tempo possa ter tempo para ser tempo. Mas este meu tempo já não é meu. Já não me pertence. Nem sei bem se estou no mesmo lugar que o tempo que me foi destinado...Talvez tenha perdido a métrica ao tempo e agora só resta fingir-me aqui.

Fugi da minha solidão. Encetei todos os movimentos que julguei sempre serem uma violação directa da natureza de mim, andando para trás,  com os punhos cerrados e os olhos em gritos. Fugi abraçada ao medo. Temia as rochas mas às rochas regressei. Ostracizei o mar e ao mar regressei. Repeli meu passado e a seus braços regressei. Canto para me iludir, para me sustentar,  para não cair. Para poder ficar. 

Não sei bem quem somos quando deixamos para trás, numa terra que fica para além de quilómetros de oceano que nos separam do que fomos, uma vida inteira de caminhos reunidos. Virei costas. Fechei a porta. Só D'eus sabe como me tremiam os dedos e a boca me sabia a cinzas. Só D'eus me ouviu o pranto e o vazio naquele momento em que o dia, por instantes, se revestiu do negro mais fundo da noite insana. 

O que sobra de mim agora? Sou quem fui e fui quem sou. Não encontro o lugar que ficou a meio. Sou eu mas na verdade estou incompleta. Faltam-me as penas das asas e já não posso voar. Estou calada, de frente ao oceano que a ilha recorta nas suas reentrâncias, nas suas entranhas, e não vejo mais a terra de que sou/fui feita. Voltei ao lugar que me nasceu. Morrerei aqui. Desapegada. Desviolentada. Desasada. Despedaçada. Sem inteirezas que possam resistir aos actos de coragem e de cobardia que me cobriram no meu precipício.

Canto para iludir o vazio. Ocupamos os espaços vazios, os espaços cada vez mais brancos que (me) persistem na existência, com todas as tintas que pudermos encontrar. 

Sou agora uma réstia do que fui e não espero mais ser nada. Estou a meio de mim. As memórias que me assolam são histórias contadas de quem fui e de quem quis ser mas, ainda, as histórias do que não fui, de quem não fui, de quem não cheguei a poder ser. 

E agora estou aqui. Neste lugar que é um lugar de outros. Entregue à vontade de D'eus manifesta na vontade de quem me assiste. A minha vida depende, agora, da vida que os outros me dispensam.

E eu fico a cantar para preencher os espaços vazios de tudo o que de mim tive de deixar partir. 

14/04/2024

Tenho o respirar quase a cessar. Está sob uma mão firme, pesada, persistente, esmagadora. Desde quando, não sei bem mas agora parece estar a terminar o tempo.

Tento virar-me. Para um lado. Para outro. Fugir. Por um lado. Ou por outro. E ela sustem-me contra a parede. Determinada. Quente. Imperativa. Subjuga-me.

Mantenho os olhos fechados. Talvez não a queira ver de frente. Temo descobrir se me confronto ou se me conforto. Comigo. Com ela. 

Aos poucos, com uma suavidade triste, o corpo vai perdendo a força.  Esquecendo a vontade de lutar. Incapaz de dignificar qualquer gesto. Fica fria, a pele. Fica escuro, o sangue. Fico perdida, eu. 

Decido que tento tocar a mão que me asfixia. Queria dizer-lhe, baixinho, como se fosse o maior segredo dos mundos, que não estou preparada. Na verdade, que ainda não quero. Que me pode violentar, me deve castigar, me pode desfazer, quebrada em pequenos seixos, mas que me deixe continuar a respirar.

Desafio todas as probabilidades. Escolho a audácia para o gesto final. Não é coragem, nem determinação e talvez nem seja sequer vontade. Audácia. Levanto a minha mão direita, já lívida e profundamente cansada, e deixo-a cair sobre o meu cárcere.  Espero, breves segundos...espero...Abro os olhos. 

Cessa. 

Assim. 

De repente. 

O mundo todo. 

O respirar.

Eu. 

11/04/2024

deixei cair. uma parte. inteira. enquanto me debrucei. era uma fina aresta. que me separava de mim mesmo. um breve reflexo. espelhado numa escarpa profundissima. um abismo. eu. de frente. a mim. à rocha. ao véu negro. deixei cair. uma parte fundamental. não vou poder.mover-me. agora. em breve. não poderei ir a lugar algum. não vou. é urgente reencontrar. não vou poder. olhar-me. inteiro. não mais. não vou poder ir. inteiro. nunca mais. deixei cair. uma parte inteira.

04/04/2024

Não sei se é a noite que está cansada ou se sou eu que sou o cansaço da noite.

Talvez não seja necessário continuar a escrever a negro sobre o negro. Não ficam palavras escritas, fica apenas a sombra da noite que as palavras carregam.

Assim, não sei se é a noite que me consome se sou eu que me consumo de noite.
Hoje queria ter tuas mãos dentro da minha angústia. Obrigar-me a fechar os olhos e, por tanto tempo quanto me fosse permitido ser possível, esquecer que a noite existe dentro da minha solidão. Parar de me consumir de noite.

Construo e desconstruo os muros de cimento e aço e sal e emoções confusas que me habitam a pele e acabo sempre no mesmo lugar.
Talvez seja assim que a vida funciona. Passamos tanto tempo à procura do que fica por detrás da nossa própria sombra que acabamos por nos esquecer de que é feita a matéria que nos cobre o existir.

Somos como os barcos parados na aridez das docas a aguardar que mãos abençoadas possam reconstruir as partes que lhes permitam regressar ao mar.
Somos tão frágeis como fusíveis que se queimam,  incêndios prontos a iniciar. Somos a combustão perfeita de todas as imperfeições que se salientam dos cascos que nos definem.

Já não sei se é a noite que se cansa de mim ou se sou eu que me canso da noite.
Anseio pela aurora enquanto permaneço a agitar-me nas ondas frias das marés que me despem e me jogam de encontro aos vazios que me compõem.
Evito cruzar-me comigo nesta jornada no deserto de cada noite em que me confronto, face a face, com a solidão de mim.

Talvez, um dia,  possa encontrar nas minhas próprias mãos,  a serenidade do casco remendado de um barco limpo cujo leme não teme atravessar as marés enegrecidas.
Talvez, no dia em que me reconheça nas sombras do que ficou por ser, encontre o que é, e que isso possa ser o suficiente para voltar a respirar, de olhos abertos, de rescaldos sossegados, de mãos a segurar um leme feito da matérias da noite que trazem todas as divinas possibilidades de cada nascer de dia.

É de noite.
Agora
Estou cansado.
Amanhã.
Amanhã recomeço.