31/05/2015

esCarpa


Encontro-me na fenda do abismo e, para onde quer que olhe, só vejo o cenário escarpado do meu fim de mundo. Pelas paredes das rochas infinitas, o meu sangue desenha finos rios na paisagem negra.

Vou caindo com o corpo desfeito em lágrimas, rasgando a pele em cada milímetro, partindo os ossos em cada embate, caindo,

caindo,

caindo,

a obedecer, cego, à lei da gravidade exausta.

Tenho a alma rasgada em duas partes. A parte que é de ti e a parte que é só de mim. Desfaço o toque nos dedos quando tento agarrar o que me falta encontrar e, na verdade, continuo caindo,

caindo,

caindo,

a obedecer, surdo, a uma lealdade insalubre.

Encontro-me dentro da fenda deste abismo aberto em mim e, ainda com a alma em lodo desfeita e o corpo em chagas de tristeza, tacteio a rocha na certeza desperançada de poder encontrar o rio.

27/05/2015


encontro teu corpo no embate do asfalto e sinto vontade de chorar.

oiço as vértebras a quebrarem, uma por uma, e sinto necessidade de gritar.

seguro nos dedos a tua agonia e fecho os olhos para te não ver.       

lambo o sangue na estrada quente e compreendo tudo o que terminou aqui.

inspiro a náusea, inteira dentro do meu corpo, e deixo-a cair sobre a tristeza infinda.

23/05/2015

o corpo caído como barro seco sobre a areia molhada.
as ondas do mar ainda não chegaram aqui. a maré cresce na incerteza da noite estar a chegar e vai avançando sedutora sobre o tempo que resta.
há restos de terra no corpo caído. há uma dor lancinante por dentro do movimento.
talvez hoje não deva haver movimento.
talvez hoje seja preciso parar a maré no avançar da areia.
talvez hoje seja isso apenas o necessário para sobreviver.

19/05/2015

por vezes, quase que acredito que muito do que nos mantém vivos é a certeza de haver alguém, em qualquer lugar, em qualquer momento, que se recorda de nós.

amanhã.


É simples, aquilo que descansa sobre a pele. É sereno, o gesto que nos acaricia no começo da noite. É terna, a certeza de que estamos a chegar ao lugar certo. É triste, a saudade do que ficou por ter sido em nós. É vida, tudo aquilo que dança na possibilidade de ser amanhã.

13/05/2015

partir

A dor permanece a ocupar o corpo como se não houvesse alternativa.
Sentes que a vida vai, lentamente, saindo de dentro de ti e te vai abandonando.
A dor é tudo o que sentes quando tudo o resto desaparece de ti.
O silêncio em redor deste quarto é a tua possibilidade para ouvires o que faltava.
Ouve.
Falta pouco agora.
Entoas uma prece, breve, só no movimento dos lábios e acaricias, com gestos de poesia, o ar que te circunda e abraça no frio do cair da madrugada.
Não temes nada. Olhas-te de frente e não tens medo.
Atravessas a imensidão da dor para te encontrares no lugar certo, no momento certo, no momento em que dás as mãos ao que falta e te ouves a partir.
E sorris, no silêncio de um breve e terno movimento dos teus lábios.

palavraspalavraspalavras


São cordas de aço que me prendem.  São cordas de aço que me retêm.
São aros de fogo que me consomem.  São bafos de fumo que me impedem de abrir os olhos.

São garras de corvo que me seguram. São restos de pele no chão que se me perdem.
São palavras soltas que me destroem.  São tempestades que me devastam.

São tempestades que me apaixonam. São ossos secos que me compõem.
São memórias de outrora que me esquecem. São memórias de agora que se me desaparecem.

São angústias que reaparecem. São segredos que se descobrem.
São palavraspalavraspalavras que me despem.

São sentimentos que se perderam. São sintomas que adoecem.
São corpos que se perdem nas estradas. São ventos que afastam a bonança.

São sangue e suor e lágrimas que me fazem. São crenças desacreditadas que dançam.
São melodias de um silêncio que só pode ser eternamente atroz.  São respostas pendentes nas perguntas por fazer.

São palavraspalavrasplavras que não chegam.

São tempos que se evadem na areia do deserto.
São anjos que quedam dos precipícios.  São morreres que morrem  silenciosos dentro de nós.

São vidas inteiras que se esquecem de ser.
São palavraspalavraspalavras que faltam aqui.

São palavras que se prendem nas cordas de aço que faltam aqui.

 

03/05/2015

via





 
 
Atravesso a rua na certeza da ilusão. Não sei o caminho. Ainda assim, não paro. Não paro.
Atravesso a rua na ilusão de que o caminho certo é o que vai aparecer. Agora. Aqui em frente. Não olho para trás. Não seguro o que fica para trás.

Fecho os olhos, por um breve instante, só para me reconhecer ali. Exactamente no momento que atravessam todas as memórias de mim. Desafio o que resta da minha sanidade no calor do dia e devasto os resíduos de agonia que acordaram, há tanto tempo, em mim.
Ouço os sinos das igrejas a clamarem meu nome e confundo-me na maré de gente que me atravessa o tempo. Oiço risos de criança e reconheço quem sou no que ficou antes de mim.
Atravesso a rua na certeza de não saber por onde ir. Os meus passos avançam numa dança insane e sentem cada grão da terra como uma caricia. Toco-me para me saber, ali, naquele momento, e oiço-me rir por dentro.
Atravesso a rua na ilusão da certeza. Não sei o caminho. Mas não paro.

sogNare


Leva-me pela mão mas não te chegues demasiado perto.
Diz-me tudo o que tens a dizer sem que eu te oiça.
Toca-me profundamente quando eu me virar de costas.
Encosta tua alma à minha quando eu adormecer.
Grita-me ao ouvido tudo o que te leva a partir quando eu fechar os olhos.
Respira-me na pele quando eu não já não estiver.
Dança em mim enquanto eu corro.
Toca-me de cada vez que te sentires a morrer e eu seguro-te nos dedos sem te deixar cair.
Conta-me, em segredo, as alucinações que te invadem a alma quando não estás a dormir que eu silencio a dor.
 Leva-me pela mão que eu não te deixo cair.
espero-te na entrada. sei que, eventualmente, acabarás por chegar.
espero-te como se me esperasse a mim mesmo. cesso todos os movimentos, até o respirar, enquanto aguardo. sinto os restos da chuva a passarem sobre meus dedos mas não sinto o frio.
recordo, lentamente, os passos que demos a atravessar as ruas, como nos perdemos das ruínas de nós no pó da terra inteira, como nos deixamos chover sem ter medo algum, como nos permitimos falar até o silêncio ter espaço para chegar, como o vento entoava melodias dentro do nosso sangue, como a poesia era tudo o que a dor deixava sentir.
poderia ouvir-te falar o resto da minha vida inteira.
poderia ser eu mesmo se existir passasse a ser o que acontece a teu lado, para o resto da vida.
espero-te na entrada, onde acabarás por chegar.
espero-te como se esperar fosse reconhecer ter encontrado o lugar de nós no que faltava desta cidade. fui saber-te tão longe, mas tão aqui, no lugar onde eu começo, no lugar onde tu começas, no lugar onde nos encontramos e conseguimos ser mais do que duas solidões perdidas no tempo.
talvez, um dia, possas regressar. talvez, um dia, te reconheças na espera e chegues, aqui, a este lugar onde eu não sei ser eu sem ti.