28/12/2022

Sonhei o teu corpo despido em contra-luz na janela do jardim.

De seguida, sonhei um tigre branco que atravessou o ar e me tocou nas mãos e se deitou aos pés do tempo.

Depois, sonhei-te com uma outra mulher que sorria segura pelos fios das tuas mãos trémulas.

A seguir vi a minha sombra a atravessar o jardim, descalça, a passar sobre o pêlo do tigre que dormia na alegoria de (eu) ser uma ilusão, a arrastar os fios quebrados presos no tempo da pele, a caminhar, sorrindo, em contra-luz.

20/12/2022

POnTo

Jaz um estorninho no feio cinzento do manto de uma qualquer rua pérfida desta cidade.

Não há nenhum canto de nenhuma ave a entoar no silêncio obscuro deste dia.

Em cada lugar de cimento a desfazer-se do tempo como acontece aos ferros de ferrugem que seguram a ponte, encontro a memória de ti.

Em cada agressão da voluptuosa dinâmica da cidade cheia, deparo-me com a lembrança da tua voz.

Em cada folha caída, raiada de vermelho, tingida do receio do inverno, encontro tua pele. 

Em cada momento perdido da iminência antecipada da angústia da chuva que faz quedar todos os anjos do céu numa devastadora agonia concertada pela falência certa da humanidade, encontro tua língua.

Em todos os sabores de todos os ventos de todas as ruas e vielas tristes, ou entusiastas, perco tua mão.

Jazem os pássaros, as ruas, as folhas e os mantos de água nas minhas mãos gravosas.

12/12/2022

Os pássaros calaram suas tristezas nos bicos.

Recolhem seus corpos de asas para dentro da constatação do inverno e cessam o sangue de correr sob as penas. 

Gritam por dentro. 

Morrem lentamente, enquanto esperam, melancólicos, pelo recomeço da primavera.

11/12/2022

Quando o mundo fere, inteiro, por dentro as palavras ficam presas nas mãos.

Quando a vida grita, inteira, a tinta implode por dentro da alma e incendeia o poema. 


Somos nada

Absolutamente nada.

10/12/2022

Caminho desavinda de lugar nenhum.

Percorri as ruas vazias da minha inquietude e foi a este lugar que cheguei.

Não reconheço nada.

Não está aqui ninguém.

Há apenas o silêncio que se escuta debaixo de água e

cheiram a podre e a lixo estas ruas que desenham os traços e os troços do resto que ficou de mim.

Há sujidade por todo o lado. Minhas mãos estão cobertas de terra apodrecida, barro negro que me escorre nas veias da pele e dentro da boca.

Escavo estas ruas dentro do peito até aquietar o desassossego de quem não tem lugar.

Por tudo o que vejo,  permanece a água que escorreu das iras do tempo. Água que lava e que leva tudo o que encontra. Até o silêncio que se aquieta por dentro de si mesma. Até percorrer os caminhos e chegar, vinda de um qualquer lugar, ao lugar onde eu já não caminho.