30/12/2023

EnD

You can try to save me from everything...



But you can never save me from myself.

28/12/2023

perdoa

amor

mas não aprendi como se colhem os seixos 

feitos de matérias invisiveis

feitos de silêncio 

que deixas caídos 

nas orlas espancadas das praias

dessas que só encontram lugar 

nesse lugar

onde se fecham

as tuas mãos

e se dilacera

o teu coração. 

27/12/2023

Quero pegar neste cavalo ensandecido que galopa a minha mente e largá-lo nesse lugar deserto que é teu sentir.

Reconheço que tenho a boca conspurcada, as palavras sujas, a tinta que me corre nos dedos contaminada e talvez, apenas talvez, queira violentar-te, (ab)usar a tua pele, permitir tua pomba voar sobre o que restar de mim e jamais compreender teu desejo.

Talvez queira que não pares mais aqui. Que escorras sobre mim e me abandones no deserto. 

Talvez escolha morrer da sede do que vinha depois e não deixar cair a dignidade das penas sobre a maré vazia.

Vou deixar que este cavalo galgue a incerteza das areias e caia, em silêncio, sobre o abismo da minha solidão

26/12/2023

Sinto que há uma besta alada de angústia a percorrer-me inteiro por dentro do sangue. Não sei como nomeá-la, não lhe reconheço a forma, não chego a entender os contornos dos seus limites nem consigo segurar o exacto momento em que começou a voar em mim. Mas traz nas suas asas um sabor às coisas que findam antes do tempo. Parece trazer um fim sem que me tenha sido permitido, sequer, um rasgo de princípio. Ela navega-me ao ponto de não conseguir voltar a tocar terra firme. 

Tudo é areia. Tudo é água. Já nada parece ser seguro e eu não tenho asas.

As sombras da noite parecem resvalar nas arestas dessa angústia e invadem, de asas abertas, as portas dos meus sonhos.

Já nem sei bem de onde vem o fogo, o fumo, o suor, este aroma a sexo aberto sobre a minha fantasia moribunda.

Quero parar e esperar por mais. Saber até onde posso chegar. Talvez saber onde poderei respirar. Saber, exactamente, onde vou terminar. De olhos fechados. De mãos abertas sobre o barro. 

Acabo por permitir que esta besta veleje por mim adentro, até eu já não me recordar mais do que trouxe a este lugar. 





23/12/2023

Pego no fogo com a ponta da lingua. Rememorizo teus dedos a navegarem sem vela sobre meu ventre vazio.

Quando encontro estrelas, reencontro o aroma da tua pele. 

E é aí que permaneço até terminar a noite

17/12/2023

Repito uma memória de ti

no vestido que tuas mãos despiram na minha pele

nas palavras desobedientes que te correram dos dedos

num caminho que nos levava a nenhum lugar.


Por vezes

repito o sabor da tua indiferença na boca

para poder parar todas as palavras

de imediato

como um poema antigo.

12/12/2023

PaRáBoLa

um leitor ávido tem de ler todas as palavras do livro. até ao fim. completar a história. 

quando um livro não termina de contar a história, um leitor ávido pode tornar-se um leitor paciente. um leitor paciente, no entanto, se a história não chega nas palavras a contar o principio do seu fim, pode vir a tornar-se impaciente. 

o que pode fazer um leitor impacientemente a aguardar o final da história que o livro lhe entregou?


és água. eu sou deserto. e é apenas nessa medida que necessito de que existas em mim. não almejo nenhum oásis, não creio que possam coexistir na natureza que me baliza. preciso apenas das gotas que servem à terra o respirar. e, se não correr nenhuma água sobre a minha pele gretada, perecerei mais rapidamente na secura agreste que me assiste. mas sigo agarrada aos ventos e permaneço a rodear dentro da areia quente até chegar ao final de mim. 

07/12/2023

Pega na minha voz 

e grita.  


Segura o meu silêncio 

e reza.


Come da minha carne 

e arrepende-te.


Separa as minhas partes 

e funde-te.


Mascara as minhas falhas 

e encontra-te.


Invade o meu abismo 

e sossega.


Escuta o meu abandono 

e adormece. 




05/12/2023

Diz-me

pode a dor superar a cor do fim do dia?

pode o corpo sucumbir quando o dia terminar?

poderemos, alguma vez, esquecer tudo o que dia devastou em nós?


O Outono começa a criar raízes dentro das minhas mãos,

nos sulcos da minha pele que já se cansa tanto,

na tormenta crescente dos dias minguantes que são já tantos caídos em cima deste corpo que parece ter perdido o Norte.

 

Caminho pelo princípio da possibilidade de reencontrar a cor bela do final dos dias…a noite é uma amante fera que vem agora aniquilar todas as cores tão ferozmente rápido…

Com a noite chega esta tristeza que me abraça e me não larga mais,

com a tristeza vem a dor que angustia cada fragmento da minha alma,

com a dor regressam os fins de tarde que partiram dentro das memórias que inadvertidamente se vão obliviando…

 

Diz-me

pode Deus edificar um castelo nestas minhas mãos? Pode Deus assentar pedra por dentro desta minha permanente ausência?

 

Diz-me

quando esta dor poderá terminar de doer…

quando o outono poderá terminar dentro de mim…

quando poderei voltar a encontrar o Norte das palavras e a direcção do caminho?

 

15/11/2023

Queria ter-te aqui para ser pérfido e devasso. 

Para te corromper e logo te abandonar.

Para te chamar e não te tocar. 

Para te cheirar e deixar cair.

Para te arrancar as palavras do papel e o sangue das mãos. 

Para te atirar às areias negras do poço velho.

Para não mais pensar em ti.

Queria ter-me amarrado na armurada à espera que me agrida a raiva contida das ondas ferozes do inverno. Elas cavam abismos dentro da minha mente, dia após dia. Só me resta aguardar que levem o resto de mim.

Não te quero aqui. Não mais. 

Tenho absolutamente mais nada para dizer. 

14/11/2023

ImPaSse

Teu segredo está esculpido nas encostas de basalto. 

É negro por dentro. 

Cor do fogo por fora. 

Cor de ti nos contornos. 

Cor de vazio no peso. 

Pedra negra a desenhar as linhas impossíveis das coisas inevitaveis. 

És sarça que arde no lugar mais fundo das almas. 

Consome-te o fogo, dilacera-te a ânsia, devasta-te a solidão das insónias. 

Sentes aquele medo que se rasga nas mãos quando se deixou de ter medo. 

Aflige-te a certeza da finitude e o teres chegado com tuas mãos feitas de água ao limite da linha do mar. 

Não sabes que caminho tomar. Não queres escolher. 

Talvez , afinal, tenhas medo de ter medo e seja o medo que te impele à indecisão. 

És feito de água. E a verdade é que escorres sempre em direcção ao mar. 

És ribeiro, riacho, rio, oceano, és gota de orvalho, gota de chuva. És tempestade inteira. 

Terás de embater de frente às rochas. Espalhar na pele o negrume do orvalho e no grito a intensidade do fogo. 

Talvez tenhas de consumir o que te destrói para poderes renascer das cinzas

10/11/2023

Quero sentir na boca o frio 

e as tuas garras a arrancar o sangue quente de dentro do meu ventre

Vou agarrar a noite com os dentes para me libertar das mãos e dos pântanos que me consomem

Vou respirar o lodo com a pele dilacerada e abraçar os cardos que cavalgam o que resta dos meus sonhos 

Vou escancarar a fornalha e gritar as labaredas dentro do peito

Vou deixar que os cavalos corram desenfreados na minha liberdade condicionada a estas escaras que eu cavei com os dedos ásperos da esperança 

Quero deitar-me nos contornos de qualquer pele inscrita no carvão enquanto umas quaisquer mãos ditem o caminho da minha (re)condenação 

Quero compreender o silêncio que o fogo tem nas crinas do meu sangue

Espera...

Não...

Quero compreender nada.



27/10/2023

Morreste.

Teu corpo não podia mais. Secou. Sofreu. Desligou-se da dor. Parou. 

Tu ficaste. 

Ficas sempre. 


09/10/2023

Invejo o vinho que te acaricia os lábios 

Cobiço os dedos que seguram os copos e as palavras e os corpos e as vozes

Ambiciono os caminhos que conduzem aos lugares onde nunca se chega a chegar

Tenho sede do mar das mãos que são tuas e da fantasia que é a minha 

e seguro-me no calor errado deste outono para calar a dor

para serenar a ânsia

para alimentar a fome

para reconhecer o desenho do ar dentro do meu peito

Reconheço os grilhões onde sucumbiu a minha liberdade e o vazio em que caí na tua paixão 

Invejo, agora, os lábios que te acariciam o vinho e reconheço que já não sou digno de ter lugar

na imensidão de tuas mãos

na ruidosa calamidade do teu sentir

no caminho que conduzia ao lugar de ti.


25/08/2023

São insignificantemente significativas as coisas que faltam. As coisas que não estão nos lugares que consideramos como certos. Que não são quando as julgamos ser. Que não estão quando estávamos absolutamente seguros de que estariam.

São partes que faltam. Membros. Peças. Sentidos. Pele. Espaços. Lugares.

E depois, pelas coisas que faltam, as coisas que são deixam de ser as coisas que deviam ser e tudo parece, de repente, pintado nas labaredas mornas do inferno que sabemos sempre, sempre, tão próximo da pele.

E aí, no momento em que entendes que nada pode retornar a ser o que havia já sido, tudo adquire um significado incontornável.

09/08/2023

What do you think I would see 

if i could walk away from me?

07/08/2023

por vezes

a falta de ti

é um abismo aberto dentro da minha 

garganta 

enquanto minhas mãos percorrem 

loucas 

todas as possibilidades 

de todos os gestos 

que me aproximam da 

salvação


por vezes

a falta de ti é 

apenas

a falta de tudo

o que possa ter sido

coisa qualquer.  

31/07/2023

O único cenário que me permito vislumbrar na partida, é o manto de luzes que alumiam as encostas da Ilha e que revelam os caminhos de regresso a casa.

Talvez seja no lugar mais escuro da noite, este em que agora me encontro, que procure encontrar o que te ilumina dentro do olhar que é o meu. 

Escavo fundo o abismo que minhas mãos temem ter em ti e recuo, vagarosamente, quando entendo que não poderei encontrar lugares além destas areias que se movem incessantes. 

Pensei que iria haver chamas, labaredas, velas, candeias, lume, mas há apenas os ventos áridos devastados pelos segredos inventados das planicies ocres do deserto das mãos que são as tuas. 

Tanta água e tanta areia no mesmo lugar... Tanta luz e tanto breu...Tanto de divino como de luciferano, mesmo sendo lucifer o anjo que perdeu a luz e as asas, tu és o lugar devastado da devassa ausência de esperança. 

Perdes, a cada momento, a vontade, a tolerância, a sabedoria da espera e a vertigem da demanda. 

Corres sempre, somente, no sentido de enganar o temor de parar. 

Perdeste já o sentido das minhas mãos. Já te não fazem falta.

Eu creio ter perdido o sentido da tua alma,  as linhas da tua pele, o sabor das tuas palavras, o sentido do teu sentido.

Encontramo-nos cada vez mais longe. Tu a correr o deserto coberto de mar. Eu a escavar a luz que mergulha no âmago da noite.

Já não vamos saber encontrar o caminho de volta.

30/07/2023

A noite cai de forma lenta sobre o abandono da ilha.

Não há âncoras. Não há costa. Apenas o movimento ininterrupto das marés e dos naufrágios.

Estive sentado sobre a orla do dia a aguardar que chegasse tua voz nos indícios do vento quente.

Não há âncoras. 

Não há regressos possíveis. Quando se parte, não se regressa jamais da mesma forma. Quando se regressa, não se regressa inteiro, nunca mais.

Não há nenhuma âncora. Apenas o deserto do mar e da imaginada linha que o separa do céu.

Assim me aparto eu.

Creio que jamais saberei regressar do naufrágio deste abandono ao crepúsculo.

25/07/2023

começa do começo. 

conta a história como se contasses o ar. respira como se escrevesses as letras todas das frases inteiras. ignora a saudade que sentes. cessa o silêncio da ausência que te devasta as vísceras e cede à tentação da insanidade. repele o branco do vento e guarda a ferrugem do rancor dentro dos bolsos da pele.

começa do começo. 



onde?

16/07/2023

Se, no absurdo, nos retiram a normalidade, o que é que sobra da nós?


07/07/2023

tenho o fogo a arder e não sei como parar este corpo que se alastra

03/07/2023

Podias ter adormecido a tua voz nas minhas mãos

até eu cegar do mundo.

Tiveste sempre presas as palavras 

dentro do cansaço. 


Deixaste-me 

sempre

à deriva no mar alto 

preso aos dedos cegos

do mundo que silenciou a tua voz.

31/05/2023

canta-me numa morna

suspende-me nas notas quentes

e tristes

da velha guitarra com que choras. 


canta-me numa morna

prometo que morrerei devagar.

23/05/2023

vejo-te as lágrimas caídas sobre a madeira que reveste a mesa. 

talvez não haja, de facto, fim para o que se sofre por dentro da voz, no interior mais fino das planícies desérticas da solidão. 

a sombra das coisas que foram coisas antes de serem apenas as sombras das coisas que eram, vertem seus silêncios, em segredo, por entre os veios tristes da madeira velha. 

não há nada que nos segure a queda. nem a liberdade. nem a gravidade dos gestos. só a força dos agueiros. só a paixão do apelo quente do abismo. mas nada que nos segure nos braços. 

vejo o que permanece distante no reflexo triste das tuas lágrimas. 

não há palavras

nem gestos

nem madeira

nem água

que possa calar o silêncio das sombras. 

22/05/2023

 (...)

Darkness starts inside of things

but keeps on going when the things are gone.

(...)

Darkness Sarts by Christian Wiman

21/05/2023

Tenho-te nos braços quando acordo só e me imagino à deriva. 

Trago-te na saliva quando a apneia me reduz ao sentido da asfixia.

Levo-te nas mãos quando mergulho na altura inteira do mar que me esconde das marés. 

Guardo-te sobre a epiderme para me vestir da tua essência e conseguir respirar.

Inalo o aroma da tua voz e deixo ecoar dentro de mim toda a gravidade solene da poesia que reside na melodia de ti. 

Olho os outros que se movem na correnteza suja da cidade e penso como sou indiferente à névoa de cinza que se abate sobre o tempo.

Tenho só a pele dos braços quando acordo à deriva, no mar alto de cinzas apagado, sem me lembrar de como respirar.

09/05/2023

há fogo a devastar os silêncios

os segredos

as ausências

os erros

os infortúnios. 


há fogo a lavrar os campos

as colinas

as serras

as marés

as palavras.


há lava a cravar a pele

os dentes

as bocas

a saliva

a direcção. 


há fogo a queimar o interior

de mim

de ti

de nós

de vós

de todos. 


resta

esperar

em apneia

pelo regresso 

do prenúncio

da chuva. 

07/05/2023

pousa a mão na terra. 

a pele no alcatrão. 

os dedos no fogo e os lábios no carvão. 

pousa o corpo na terra.

o calor no chão. 

a água no tempo e o tempo na mão. 

larga o sangue na terra

e a despedida calada.


a partida 

depois de chegada

deixa de ser partida. 

28/04/2023

Procuro as palavras certas para te poder ouvir. 


Mas é somente silêncio 

aquilo que trago cerzido na voz.

21/04/2023

Choveu uma chuva sem alma
Nao lavou as ruas. 
Mas trouxe lama e lodo. 
Para cobrir o sangue. 
Para silenciar as palavras.
Para esconder os passos.
Para levar o tempo.

O que fica quando a terra secar?

19/04/2023

Ce qu'il manque c' est la pluie.

Il faut de l'eau. Pour laver le sang des rues e des rues de mon chemin.

J'ais besoin d' eau dans le sang de moi.

15/04/2023

Podes esperar?

Sei que vou demorar. Mas se puderes esperar, nem que seja um fragmento milimétrico de um segundo, talvez chegue a chegar perto...talvez eu acabe por chegar. Perto...

Podes esperar?

Até eu desaparecer?

Prometo que vou demorar. 

14/04/2023

Deixa teu veneno de frutos silvestres na ponta da minha língua.

Quero morrer emersa na agonia de ti. 

acordo

com todas as dores

de todas as preces,

vossas,

nos ossos

na carne

no sangue 


na incerteza da alma 


até nao haver

mais lugar

para doer.

12/04/2023

Paro no meio da rua só para escutar as vozes do mundo. 

Por vezes, 

meu único desejo 

é que tudo se cale.

08/04/2023

Perdoa-me, amor. 

Mas vou continuar a caminhar no lado em que se deita a sombra. No canto mais longo do jardim. Nos caminhos onde não haja outros passos. Junto das flores selvagens e das ervas que danam. No lugar onde a lama permanece porque ninguém se interessa. Onde há pó.  Onde há covardia. 

Não vou ousar os caminhos cheios de sol. Não quero estar ao calor nem a ver os pássaros que fogem. 

Não sei caminhar longe da gravilha e do lodo. Não sei caminhar os teus passos. 

Vou ficar aqui e ser aniquilada pelos leões.  Os leões só devoram aqueles que ouvem os seus rugidos e temem entrar na caverna...

30/03/2023

GaRgalHaDa nO eScUro

"O amor é 

uma palavra 

suada 

entre os meus dedos"

Ondjaki


Se o amor é uma palavra suada entre meus dedos, são minhas mãos a prova da essência que soa, ressoa e entoa quando ouso segurar-te na pele.

Trago nas mãos a palavra que te guarda do interior de minha alma. Trazes na água a antítese da tese sintetizada onde tudo é irremediavelmente intransponível. 

Se te dissesse as letras da palavra sem ser no suor dos dedos, iria chegar-te à garganta um grito ácido que se corroeria por dentro e te iria impelir à fuga para mar alto. 

Há almas que nasceram na gutural eterna insatisfação de não ser possível tolerar ser-se amado. Nem no suor dos dedos, nem no sangue das palavras, nem na profundidade dos gestos guardados no sentido das mãos

És meu alimento quando vens. Meu naufrágio quando partes. Meu alimento quando partes. Meu naufrágio quando chegas.  Queria poder dizer-te palavras que suam como lágrimas e soam como preces. Não digo. És profeta e herege. Salvação e condenação. Bênção e pecado. Não te posso dizer. Pois queres tanto quanto não queres. Podes tanto quanto não podes. Desejas tanto quanto não desejas. Começas tanto quanto terminas. Terminas tanto quanto começas. Tens tanta vontade de chegar como a vontade que tens de partir. 

E eu permaneço na silenciosa intenção de ir em busca das estrelas que brilham na gargalhada que desperta do âmago da escuridão que te habita a alma. 



29/03/2023

Entranço o cabelo.

Dispo-me das roupas. Devagar.

Desfaço-me do dia. Sem sentir pressa.

Lavo a pele fendida nos ganchos que me sustêm até não sobrar sangue.

Deito-me no chão frio da madeira que sustenta o grito do inverno e permito-me desaparecer no som dos passos que ecoam no ranger do caminho.

Sei que não poderei mais regressar. 

Aceito. 

Fecho os olhos. 

Entrego-me ao silêncio da noite. 

Até que minha pele se funda com a agonia da madeira e nada, depois do vento do norte sibilar, possa sobrar.

27/03/2023

Deixaste-me o sol. 

Espero que regresses antes de eu recomeçar a chover.

23/03/2023

sou o que resta do naufrágio. 

morro na solidão da madrugada, num canto deixado à sombra na praia. tal como os animais de água que perdem o rumo. como todas as coisas que naufragam no alto mar. como todas as peças que se perdem. encalhada nas rochas. 

tenho a boca cheia de água. tenho o ar cheio de água. tenho a pele encharcada. tenho os braços abertos. como todos os pássaros que morreram dentro da minha voz. de asas abertas. de mãos fechadas. com as penas negras nas letras das palavras. 

devia ter mantido o silêncio no segredo e ter aberto as mãos enquanto fechava os braços. vai fazer sempre noite dentro da água que se me arrasta no sangue. vai ser sempre sombra no lado mais recôndito da praia de calhau negro. 

sou o naufrágio do que resta. 

18/03/2023

CeRtEzA

Os pássaros deviam morrer sempre de asas abertas e olhos fechados.

14/03/2023

o anúncio da primavera grita efusiva por todos os poros

de todas as peles

de todos os lugares 

de todos os movimentos deste mundo. 


já só sinto falta do outono. 

13/03/2023

Apetece-me gritar a dor e fazer parar o tempo. 

Cheira a limões acabados de colher e a mortes acabadas de anunciar.

Sei como ruem as vidas suspensas na certeza de que não é o tempo que se move. Eu quero que seja tempo do tempo se mover e da vida poder parar. Se pudermos parar, agora, talvez a morte que te acaricia a pele possa cessar, possa deixar-te ficar.

Quero gritar até que pare a dor do tempo não parar. 

11/03/2023

Danço ao som da tua melodia.

Mas a música parou. 

04/03/2023

Que pode o melro fazer, 

andando num qualquer chão,

em fuga, 

com uma asa partida na impossibilidade do voo?


Que posso eu fazer 

com a alma enrelhada

 no interior das penas pretas 

de uma asa que já não voa?


sEntIdo

permaneço parado

nas sombras do inverno. 


seguras-me com um dedo 

para,

quase de imediato, 

me afastares com as duas mãos abertas. 


chegas aqui

no gesto lânguido das palavras mortas

para logo não estares 

nem aqui nem em lugar nenhum em que eu possa ficar parado. 


o inverno é isto.

pedires-me para me mover

mas se ousar um passo, 

um passo que seja,

nada encontro para além do abismo de frente ao vazio. 


volto atrás. 

vou recuar até me cruzar com os ventos áridos

avançar na direcção oposta

ao lugar que o inverno reserva para ti. 


estou a arder por dentro.

vou consumir o pouco 

o que resta 

antes do primeiro grito da primavera.  

25/02/2023

Juro que sou fiel 

à tua ausência 

ao teu silêncio 

a todas as formas como te libertas dos correntes da minha férrea existência.


Juro que permanecerei em silêncio enquanto 

teu grito me despir

tua boca me esquecer

tua voz me abandonar agrilhoada nas palavras sem sangue.


Despe-me

vou virar-me de costas

deixar que se esbata o que permanece depois das marcas da tinta ocre sobre as linhas de chuva de um qualquer pincel já deixado pelo tempo

pois não irá sobrar mais do que um esquiço rude da forma que me definia na linha das tuas mãos antes de me teres deixado parado no caminho.


Juro que sou fiel ao silêncio que fica por dentro da inevitabilidade da ausência de ti

enquanto as palavras pintadas de uma oração que se acorrentou ao grito que guardo dentro da boca me dançam na insanidade de se não poder ser mais do que esta ténue linha ressequida nas mãos de ferrugem onde antes havia cabido o mar inteiro. 

18/02/2023

São insignificantemente significativas as coisas que faltam. As coisas que não estão nos lugares que consideramos como certos. Que não são quando as julgamos ser. Que não estão quando estávamos absolutamente seguros de que estariam. 

São partes que faltam. Membros. Peças. Sentidos. Pele. Espaços. Lugares.

E depois, pelas coisas que faltam, as coisas que são deixam de ser as coisas que deviam ser e tudo parece, de repente, pintado nas labaredas mornas do inferno que sabemos sempre, sempre, tão próximo da pele. 

E aí, no momento em que entendes que nada pode retornar a ser o que havia já sido, tudo adquire um significado incontornável. 

13/02/2023

Tenho o inteiro do deserto 

desfeito 

dentro da boca. 

A areia a cobrir 

dentes e lingua e sede e saliva

nem um sinal da promessa.

11/02/2023

Ficam presos na garganta...


As ausências. As distâncias. As perdas. 

Os cárceres.  As lacunas. As angústias. 

As incertezas. Os desvarios. As impurezas. 

Os segredos. As obstinações. As intempéries. 

Os sacrifícios. As tristezas. Os irremediáveis. 

As culpas. As desventuras. Os erros. 

As inevitabilidades. As consequências. Os castigos. 

As sentenças. Os pesos. As fugas. 

Os silêncios. 


Tudo agrilhoado no lugar onde habita a voz e se enlevam todos os finos filamentos do silêncio.

04/02/2023

as cortinas continuam fechadas.

não para de chover dentro das palavras.

esqueço tudo.

escorre-me a tinta pelas mãos e não consigo segurar as letras.


em que palavra recomeça a possibilidade de um só verso do poema? 

03/02/2023

encosta a lâmina na minha pele 

dos lábios

encosta a pele da tua mão no sangue que escorre

de mim

como chuva

pela longitude dos cabelos


deixa cair a lâmina dentro do que falta até que consigas encontrar o destino do último gesto contido na incerteza de eu ainda estar aqui

encosta tua pele rasgada no asfalto ocre que exala do meu hálito e sente tudo a arrefecer com a noite


guarda as asas nas mãos

a lâmina na boca

dilacera o que resta de todas as palavras

e cobre tua pele do sangue que termina 

em mim.

 

este é

definitivamente

o derradeiro gesto 

de ti

na minha pele.

01/02/2023

que lugares são esses, os que teimas em esquecer?

que memórias são essas, as que intentas apagar?

porque viajas na viagem, se o ir é apenas encontrar a razão para voltar?


o que fica de quem és quando o calor evapora na noite e as estrelas se desvelam

tímidas

contidas

na imensidão do negrume abissal do espaço que te rodeia?


gritas no silêncio de terra

de barro vermelho


esperas ventos do norte para permitires que a tempestade de areia te cubra os olhos

a pele

o respirar.


que lugares são esses em que te devastas para te lembrares do caminho até ao lugar de ti?


talvez regresses

talvez não possas regressar

mas se o lugar voltar a ser o mesmo

o que restar de ti, já não vai lá estar.

por vezes

vê-se tudo

tão claro,

diante das mãos



até que fecham, 

de novo, 

as cortinas negras das janelas. 

11/01/2023

Por vezes,

só por vezes,

sinto-te na falta

como se fosse devastadora

a tempestade

que acontece em mim.


Preciso

regressar a ti,

apenas por um breve momento,

pelo tempo que me possas dar,

apenas o suficiente 

para eu 

voltar a respirar 

em mim.


Preciso

reter(-te) nas mãos,

só por um breve momento,

a água que me traz de volta.

04/01/2023

Limpa-me nas lágrimas.

Beija-me nos olhos.

Segura-me nas mãos.

Acende-me nas labaredas.

Apaga-me no anoitecer.

Suspende-me no tempo.

Mata-me ao amanhecer.

Recorda meu nome.

Cala-me na boca.

Repete-me no arrepender.

Desvasta-me no corpo.

Fere-me na língua.

Serena-me nas marés. 

Enrola-me na areia.

Suspende-me no tempo.

Grita-me no devir.

Diz-me que me queres.

Compreende-me na dor.

Deixa-me a queimar.

Arrepia-me no ouvir-te.

Canta-me no poema.

Faz-me partir.

Ajuda-me a chegar.

Mostra-me no caminho.

Atira-me ao mar.

Alimenta-me de ti.

Rasga-me a roupa.

Mata-me na sede.

Prolonga-me no momento.

Silencia meu grito.

Puxa-me para mais perto.

Suspende-me no tempo.

Deixa-me cair.

Volta para trás. 

Olha para mim.

Cala a minha dor.

Limpa-me nas tuas lágrimas.

Vou começar a queda com a dor suspensa nos asas dos lábios que seguram o grito em vácuo. 

Todos os passos chegam para chegar ao mesmo destino. Cair. 

O corpo sucumbe o zunido persistente que habita o interior da minha resistência. 

Minha voz não tem som. Se tentasse falar, soariam notas de um piano que se desafina no preciso momento em que embate de encontro às rochas do tempo já sido. 

Percorrem-me palavras arrepiadas pela pele do corpo. Sinto-me prestes a sangrar,  por dentro. A chorar, por fora. A cair, simplesmente a cair

02/01/2023

LadO B

o que queres de mim 

é o que habita o lado errado de quem eu sou.

a perversão. a sujidade. o odor a fel, a sexo, a cinza e a lodo. 

o que amas de mim

é o que reside no lado errado do que precisas. 

a mão que fere. o olhar que nega. a pele que arrepia. o dominar do tempo. o espaço ocupado com todos os balaustres da tua forma. as paredes pintadas de negro. as feras à solta nos dedos. os gritos obscenos velados no silêncio da indiferença. a ternura que mente. 

queres que seja o que desejas que eu não chegue a ser. 

só sendo o que não deveria ser poderei ser o que queres que seja.  

o fosso. o abismo que te invoca à queda livre até

que embates na realidade do que não te posso ser e me deixas

despido

devassado

desmembrado

no golpe fatal que repousa, 

sereno, omisso, desalmado, silencioso, 

na profundidade atroz das tuas mãos.