26/08/2011

Adeus

"É um adeus...

Não vale a pena sofismar a hora!

É tarde nos meus olhos e nos teus...

Agora,

O remédio é partir discretamente,

Sem palavras,

Sem lágrimas,

Sem gestos.

De que servem lamentos e protestos

Contra o destino?

Cego assassino

A que nenhum poder

Limita a crueldade,

Só o pode vencer a humanidade

Da nossa lucidez desencantada.

Antes da iniquidade

Consumada,

Um poema de líquido pudor,

Um sorriso de amor,

E mais nada".


Miguel Torga

17/08/2011

s.A.l.A.

Esperar. Esperamos nas salas de espera das salas de espera da espera. Olhamos, de olhos entreabertos, a clareza absurda das cadeiras adoecidas pelo passar do tempo e dos corpos. Esperamos a esperar o que vai chegar e fingimos que sabemos exactamente o que pretendemos esperar sem que realmente o esperemos. Caras caídas sobre os colos cansados distribuídos, sem qualquer harmonia, sobre as cadeiras dispostas em filas sem fim. O chão branco a lembrar o frio do inverno que não tarda a chegar e que demora tanto a partir. Esta é como as outras salas. Uma sala onde esperar se tornou outro lugar diferente. Uma sala onde mais não há do que o corpo de quem esperar vazio de vontade de esperar.

paradise

- não tenho vontade nenhuma de viver. por mim dava já um tiro na cabeça.

- onde é que tens a arma?
- não tenho. mas arranjo.

-queres que te vá comprar uma agora?

- quero. vai já e dou já o tiro na cabeça. à tua frente.


15/08/2011

secretum

Tenho no corpo um segredo guardado.
Rasgo cada aresta da minha pele enquanto embato de cabeça na areia molhada deste deserto em que me deixei ficar.
Não chove aqui. Não nascem flores, nem arbustos, nem nada que possa cobrir o resto das minhas cinzas.
Esta terra é negra como o sarro que as minhas mãos ocupam e tenho no corpo um segredo que ninguém pode conhecer. Cada poro respira e jorra sangue vivo. Sangue cansado. Sangue sem sangue.
Queria poder saber fazer nascer qualquer coisa desta abrupta ruptura entre o que sou e o que fui e não encontro forma. Nem geométrica, nem forma sem forma de forma nenhuma.
Amei como se amam as coisas que têm sempre que partir e fiquei na espera que elas regressassem aqui. Mas o que parte desta terra de areia não volta mais.
Tremem-me as mãos na incerteza de ser possível dormir hoje. Os ossos rangem no silêncio que só quem foi abandonado assim sabe ouvir. O silêncio é imenso. Ininterrupto. Voraz e absorve-me de toda a capacidade de respirar.
Aqui não nasce vida. Não cresce nada. Por causa deste segredo que morreu dentro da minha pele e que jamais alguém poderá chegar a saber.

10

Morri há tanto tempo que nem me lembro de ter chegado a estar vivo.
Os anos, os dias, os segundos detêm todos a exacta medida das coisas que não estão no seu lugar. A exacta medida do não haver nada. Morri morrendo sem saber que morri e aqui está o que sobrou.
A determinada altura esqueci o que me descrevia. A prepotência da humanidade em querer nomear tudo. As palavras a não serem menor que sinais, que descrições, que caminhos, que certezas, que penas e fados. Morri morrendo sem saber que estava vivo. Desde que te perdi. Não. Desde que partiste. Não. Desde que te perdiste. Partiste. Perdeste. Perdi. Já nem sei bem a palavra para nomear a tua ausência. Pensei que ia cheirar eternamente a flores aqui. No lugar em que te deixei ficar estes 10 anos. Mas já não cheira. Tenho o olfacto tão envelhecido como os cabelos que se branqueiam sobre o meu olhar cansado. Conto os anos pelos dedos das mãos. 10. 10 dedos.  Sigo-te na linha ténue de um pensamento enfraquecido pela desfragmentação do tempo e quase, quase te ouço rir. Faz-me frio dentro de mim quando insisto em negar que o tempo passou assim sobre a tua ausência de mim e eu não cesso, e eu não paro para esquecer. Às vezes queria esquecer. Às vezes queria lembrar que existe um lugar onde eu não esqueço que a dor termina. E a dor não chega a terminar nunca porque eu não chego a esquecer. Porque tenho medo de esquecer por não querer mesmo nunca, chegar a esquecer-te. Morro morrendo na certeza de que a morte me abandonou aqui quando te levou. E quando a olho nos olhos, todas as noites que me penam a adormecer, quase te ouço rir. E quase chego a recordar que há um lugar onde a solidão terminava.

10/08/2011

inquestionabilidade

Não sei porque insisto em ficar quando tudo insiste para que eu vá.
aprendi a não olhar para trás
a não ceder ao medo
a ouvir as portas que rangem e que se batem
aprendi a questionar o inquestionável e a ter sempre dúvidas
a ouvir e a escutar as palavras dos outros
a perder
aprendi a perder
a deixar partir
a saber deixar partir
a esquecer de saber sentir
a sentir e a saber esquecer
aprendi a aceitar e a não ter fé
a escrever o apocalipse
a remendar o passado e a construir a possibilidade do futuro
a saber resolver o irresolúvel
a prendi a cair e a levantar
a andar de pé descalço na areia
e sobre as fendas dos estilhaços
a roubar o fogo aos deuses e não aos homens
a tactear o começo e fim da escuridão inteira
aprendi a não olhar nunca para trás
a perdoar o mundo
a não me perdoar a mim
aprendi a não saber aprender a aceitar que o mundo é um lugar que eu não quero mais conhecer. abandono o que sobra do que conheci, cada segundo que passa, para dentro da areia do meu deserto. Encerro os lugares da memória, da vontade e da inquestionabilidade e vou quedando. Vou deixando cada pegada revelar a minha necessidade de fuga e vou, de frente para a tempestade, aprendendo a desistir de conseguir ser mais do que isto.

03/07/2011

rio.

Nasci com uma incapacidade incomensurável para amar. Tornei-me em algo abjecto, sem cor, sem carisma. Um saco plástico a boiar na sujidade do Tejo e nada mais do que isso.
A humanidade causa-me agonia. É-me insuportável escutar, ouvir, dizer, calar. É –me nauseante tolerar a presença do outro humano sobre a minha pele, a escorrer-me no suor, a doer-me nos ossos. Cansa-me. A humanidade. Tu. O outro. Eu mesmo. Nada mais que um fragmento de um nada qualquer a vaguear no sujo destas águas em que sonho que me afogo, agora mesmo, neste momento em que procuro – triste infantilidade esta – remeter-me à ilusão da solidão absoluta materializada pela possibilidade da inexistência de outros seres humanos no mesmo espaço que eu ocupo.
Valho muito pouco sobre e fora das águas deste rio cansado. Tão pouco que nada -  nem mesmo o silêncio que habita em mim- me reconhece.
Não sei bailar, não tolero o corpo em que me alojo, porque não lhe compreendo as dores e a amargura. A humanidade devasta-me. Queria poder ser água, agora, neste momento em que o rio se afoga em si mesmo.

26/05/2011

dragon slay

Podia ser a manifestação de um qualquer tipo de melodramatismo ou comédia trágica a forma como caminhavas na rua todas as noites. O teu andar era como se não soubesse que andava. Toda a magnitude do teu corpo se afastava dos outros transeuntes sem os ver, sem os saber – realmente – frente a si. Caminhavas como caminham as pessoas que perderam a esperança, que esqueceram a vontade. Era como se tivesses perdido algo que nunca conseguiste perceber, com rigor, do que se tratava.
Observei-te desta janela alta durante todo o tempo que te levaram os passos a percorrer a rua. Um ano? Uma vida? Breves minutos? Não percebi quanto tempo foi e se era uma imagem que repetia, repetidamente, na minha memória ou se era um movimento prolongado, verdadeiramente, no tempo. O certo é que te observei como se observa o vazio do céu de verão. Vi como arrastavas uma ausência presente em cada gesto, uma tristeza inerente a cada sorriso, o cansaço absorto nos movimentos que pareciam fazer doer tanto. Observei como o teu caminhar rapidamente se tornou uma força inerte. Era como se uma gravidade elevada ao expoente máximo da incapacidade para o movimento te trouxesse, de forma quase imperceptível ao olho destreinado, de encontro à terra fria. Nem sequer te apercebias do caminho. Se pudesse arriscar dizer alguma coisa sobre este assunto, ousaria referir que nem sequer querias saber o caminho que tomavas. Talvez fosse um qualquer tipo de gesto mecanizado que te levava a percorrer esta rua em particular, desta maneira em particular. Ou talvez não. De qualquer forma o conteúdo não tem importância.
- O quê?
- Estava a dizer que o conteúdo não tem importância. Já a forma, a forma é que traduz tudo o que precisamos saber.  
- A questão anterior a essa que colocas não seria saber se há algo a saber em toda esta questão?
- Não.
Segurei o corpo nos dedos inteiro enquanto te via fechar a janela. Tantos anos que passo por esta  mesma rua . Não sei bem porquê. Uma vez por um motivo esquecido pelo tempo. Outra vez por um acaso. Outra por um propósito despropositado. Outra e outra e outra sem saber porquê. Mas de todas as vezes ela permanecia nessa janela nessas águas furtadas que me conduziam de forma inevitável e recorrente, a um lugar imaginário onde havia espaço para guardar até um dragão. A janela pequena, de madeira corroída e ela detrás. Uma imagem, um vulto apenas. Não lhe compreendo os contornos do rosto ou do colo. Não lhe adivinho a cor dos cabelos. Uma presença na distância de seis andares. Esta rua, sempre a mesma, igual há tanto tempo e sempre ela ali. A olhar-me. Penso que a ver-me. A saber-me. Pode não ser mais do que uma ilusão infantil mas parece que há uma serenidade aqui e que o meu corpo me descansa na alma que desiste. Esta rua é serena na imagem dada a esta distância. Sinto que o meu corpo se podia tornar mais pesado, até mesmo cessar, se ela não estivesse a velar por mim sobre as copas das árvores que sustentam o caminho. Desvio-me para não embater no ser esvaziado de si que vem de encontro ao meu vazio. Sinto um lugar por dentro semelhante ao dele. Também me arrasto. Aqui, agora, desde há tanto tempo. Um passo semelhante ao de tantos outros. Uma ausência presente de forma incontornável. Arrasto os pés na tentativa de prolongar o momento. Para que me saibas a passar. Mais uma vez. Se pudesse dizia-te que tenho uma banda a tocar uma melodia azul na minha cabeça. O céu é um imenso vazio no verão. Deves ver melhor dai. Estás mais perto (d)aí. Olho-te na ilusão de que estás (estarás) nessa janela para ver reflectida a certeza inexacta da violência da minha existência. Podia bater à porta da tua janela se soubesse subir ás arvores sem o peso do meu corpo nos dedos.
- A questão está sempre na forma que temos. Que fazemos. Que repetimos. Que (re)criamos. Como nos movemos e como reflectimos o movimento no olhar do outro.
- Tudo o que sei sobre ti é o que leio nos teus gestos frágeis, fugidios, lentos.
- Querias dizer-me algo?
- Não. Repliquei na certeza de que não me poderias ouvir aí. Faz frio aqui em cima, sabes, como se não fosse nunca verão. A madeira está velha e cansada. O chão quase toca no tecto mas ainda cabem dragões. Asseguro-te que ainda cabem. Mas tudo vai cedendo à tentação da queda.
- Temos uma inevitável tendência para a queda, não sentes?
- Podia disparar o meu corpo desta janela. A queda definitiva.
- Até ao lugar para onde agora atravesso?
- Talvez. Mais um pouco acima, talvez. Ou uns passos abaixo. Junto à terra. De forma definitiva.
- De novo a forma.
- a forma é o lugar onde reside o sentido. Sabias?
- Então vem. Espero-te aqui. Se aí não estiveres o meu corpo cessa. Se aqui chegares, caio junto a ti.
- Pode demorar o tempo que leva um dragão a morrer.
- Volto amanhã. Com o propósito de ter um propósito para atravessar, de novo, a mesma rua.

19/05/2011

s.pin.e

se houvesse um rasgo de espaço entre o que em mim deve e o que em mim pode,
eu seria o que me falta conseguir ser.
se eu pudesse medir, em rigor milimétrico, o espaço exacto que vai de mim até ao que de mim não chegou a ser,
caminharia sobre as mãos toda a distância medida até me reencontrar.
se o torporeocansaçoedesfalecimentoesolidãoeador que me afoga hoje pudesse desvanecer sob o eterno inverno que parou aqui e já não parte nunca,
eu saberia andar, de novo, sem desequilíbrio na marcha, sem temor.
bastaria apenas conseguir respirar por tempo suficiente.
sem me enganar.
sem me esquecer.
e talvez todos os hiatos que persistem pudessem encontrar
um qualquer fim.


salga

Tentei saber o motivo pelo qual nunca pude andar sobre a terra molhada como os outros todos fazem. Perceber porque nunca andei sobre nada que não tivesse arestas, lâminas afiadas a beijarem a pele dos meus pés descalços.
Quando chove consigo ver melhor que o meu chão não é igual ao teu chão.
Que o meu corpo não é igual ao teu corpo.
Que a minha voz soa tão diferente da tua.
Que a minha memória dura tão menos tempo do que tu.
Sabes que o tempo não chega para eu chegar aqui a tempo de todas as vezes que assim o intento.
Nasceste da chuva – não, eu nasci da chuva – da terra – não, da lama – não, eu da lama tu da areia – não – os meus pés sobre o teu rosto molhado de mar – não, de chuva – não, de lama, de lama a salgar-te o olhar com que me tocas nas noites vazias – como esta – como eu – como o lugar que não tenho para posar os pés. O engano. Tu sabes que chego sempre aqui por engano, por me confundir de olhos fechados sobre os caminhos todos. O engano - da ausência da recordação - em que me deixei cair e agora não sei saber onde estou. Talvez não esteja em lugar nenhum enquanto te não encontrar e tu não me explicares porque é que os meus pés descalços não serenam na areia – não, na terra – e são assim, chagas abertas ao mar à espera que chova para conseguir ver o resto do caminho que – repetidamente – esqueço.

25/04/2011

caLçada

Os espaços são pequenos. Às vezes, as ruas não chegam para fazer passar tudo.
Vagueias, abandonado, pelas calçadas desfeitas desta Lisboa esquecida. Noite após noite, passas por aqui e por ali sem saberes bem para onde vais, mas a reconhecer os odores todos. Segues todas as ruas que vêm de onde estás até onde chegas e, por breves instantes, esqueces tudo o que não faz falta lembrar.
Passeias livremente agrilhoado à tua solidão. Sabes o que te espera. Conheces o retorno inteiro e deixaste de o conseguir temer.
Aceitas uma mão estranha sobre tua face envelhecida e fechas os olhos para saberes esse momento inteiro. Começas a medo e, de forma lenta e ponderada, deixas-te serenar.
Se pudesses, ficarias onde a mão que te toca te é segura. Mas não podes.
As ruas que te separam de onde estás até aqui, até este lugar exacto, são demasiado distantes.



19/04/2011













Retratos de Mulheres


"Fotografias de mulheres por três artistas distintos: Jorge Martins, Man Ray e Julião Sarmento. Até 30 de Abril na Fundação Arpad Szenes - Vieira da Silva, em Lisboa.
"The Fifty Faces of Juliet" é a série de retratos apresentada do norte-americano Man Ray (1890-1976), que foca a mulher do artista, Juliet Browner, fotografada entre 1941 e 1955.
Já Jorge Martins nunca pensou em mostrar fotografia, actividade que tem paralelamente à pintura. Nesta exposição revela " Eros cromático", um conjunto de 20 registos de modelo feminino, feitos em Paris, entre 1964 e 1073. Algumas das fotografias apresentadas foram realizadas no ateliê parisiense de Vieira da Silva.
Por fim, Julião Sarmento exibe 62 fotografias de 31 mulheres, realizadas ao longo de 42 anos. Um núcleo de imagens, sua maioria inéditas e realizadas entre os finais dos anos 60 e os dias de hoje, escolhidas pelo artista e pelo comissário Sérgio Mah.
S.Po. (PÚBLICO)"



exposição na fundação arpaz szenes - vieira da silva
vista domingo. ao sol. no jardim das amoreiras.
Não te consigo proteger. Não sei ser mais do que isto. E isto não chega. Vai ser sempre em espiral. Em queda.
Daqui até ao fim. Vai ser assim.
Não te posso proteger. Nem sequer te segurar nas mãos.
Remeto-me à sombra.
Sabes que aqui faz sempre sombra?

18/04/2011

this world looks something like this tonight

www.nasaimages.org

ecoar

Ela estava completamente nua quando entrou na sala. Trazia areia no cabelo. Trazia vidros nas mãos. Olhou para mim como se olham as coisas que não estão no sítio certo e perguntou o que eu ainda fazia ali.
Nem eu sabia. Estaria ainda ali? Quanto tempo teria passado desde que cheguei?
Lá fora ecoava o riso da tempestade que se abateu sobre a cidade. Sem aviso. Sem qualquer sinal. Que eu visse. Que tenha percebido. Assim como o que ela me dizia. Não consegui compreender e ela compreendeu que eu não havia compreendido nada e simplesmente virou as costas e saiu da sala. Não tive opção nenhuma para além de guardar as mãos no saco junto com o resto das coisas que achei que deviam, eventualmente, poder fazer falta. Guardei dois livros. Não sei quais. Era como se não tivessem capa, nem letras, palavra nenhuma, só as páginas amareladas. Penso que guardei o caderno, o relógio, as bolachas que ela tanto odeia. As chaves. E as mãos.
Olhei para o outro lado da sala para perceber se ela voltaria atrás e me diria algo que eu pudesse, realmente, entender. Mas não.
Nada.
A última imagem que poderia levar comigo era o seu cabelo cheio de areia despida. E a certeza de que o sabor do corpo dela desapareceria de mim e toda a sua dimensão se desvaneceria assim que eu tocasse a chuva.
Segurei o saco nas mãos guardadas e desci as escadas sem olhar para trás. É preciso saber deixar as coisas. Aprendi a saber deixar as coisas assim, em silêncio, no torpor da trovoada, nos corpos despidos, nos resquícios das páginas por escrever.
Desci a rua como se fizesse parte da chuva. Como se não houvesse mais nada, naquele momento e para todo o sempre, que não a certeza da chuva.

Passaram 5 anos. E o rosto dela de costas para mim ainda ecoa no trovão das minhas mãos guardadas em silêncio.

13/04/2011

rigoletto

entras e sais da noite de mim como se mais que uma sombra nos meus olhos não fosses e,
de todas as vezes que chegas,
eu sei que te vou deixar partir de imediato.
e é assim que tu e eu seremos sempre:
palavras por dizer na névoa do que nos
eternamente
separa.

06/04/2011

laranjeira

Perguntas porque é que as coisas nunca são fáceis.
Cheira a flores de laranjeira mesmo aqui à porta. Mesmo aqui, no coração da cidade coberto de fumo negro. Cheira a flores de laranjeira e as pétalas quedam no avançar das asas dos melros sedentos.
Começa a primavera e tudo se mantém pouco simples. Parece que as coisas na vida não podem ser simples para alguns de nós. Como se fosse importante passar cada dificuldade como se de um teste se tratasse, como se de uma demanda nos torneássemos. Como se não houvesse, definitivamente, nenhuma outra alternativa possível.
Houve um tempo em que esperei que te tornasses em algo que se parecesse com as asas de um pássaro vestido de negro. Houve dias e noites em que iludia os sonhos, os compassos de tempo, as melodias inventadas em silêncio, numa ilusão perfeita de que eu era, e podia ser, mais do que isto que efectivamente reconhecia ser. E não era. E nunca fui. E nunca cheguei a ser. Sabes que o odor das flores destas laranjeiras acaba tão rápido. Remete-me para a infância e logo me arranca a carne da cara e me atira contra o muro de cimento que construí, dia após dia, ao longo de todos estes anos.
As coisas não são fáceis. Não podiam ser fáceis. Para ti, que arrastas uma existência mascarada pela necessidade de conseguires ser aquilo que te não compete, nem pertence, ser. Não podias querer mais do que o que te foi destinado e ainda assim insistes em remeter tudo ao carnaval insano que acontece nas ruas da tua amargura. Se olhares para dentro com os olhos de quem sabe ver, encontras o ponto exacto em que as coisas deixaram de ser simples, deixaram de ser fáceis.
Aprendemos, tão cedo, a saber deixar partir. A assimilar a perda como apenas mais uma componente de nós. A aceitar a queda como uma necessidade inevitável. A sorrir perante o que se tornava adverso e nos atingia como uma tempestade em alto mar. Estamos sempre nas vagas do mar alto a enfrentar a chuva e o vento das coisas que acontecem em nós e que ninguém vê. Sei que sabes que ninguém, por mais perto que esteja, pode ver o que acontece em ti. O que acontece quando as pétalas da flor da laranjeira caem sobre as pedras frias da calçada, levadas por asas pequenas de abelhas atarefadas ou asas grandes de pardais e melros chilreantes.
Porque é que as coisas nunca são fáceis?
Porque hoje não temos direito a que as coisas sejam fáceis mas amanhã…amanhã, pode sempre haver a simplicidade do odor a flor de laranjeiras mesmo aqui, à porta de nós.

09/03/2011

k

Não sei o que vou ser quando sair daqui.

Não sei quem posso vir a ser se conseguir sair daqui. Sabes que há demasiado arame farpado em torno deste lugar que me ocupa. Inteiro.

Eu mato-te e tu sabes que eu sou capaz de te matar. Se olhares para mim. Se me tocares. Se me não deixares passar. Tenho lâminas nas mãos e no corpo inteiro. Mato-te, a ti e a todos os que se puserem no meu caminho e não me deixarem gritar como eu quiser. Eu vou gritar como eu quiser. Não preciso que ninguém me diga o que fazer. Fui criado na rua. Na rua vive o mais forte. O que não tem medo. Tenho as marcas na pele para te mostrar que não tenho medo. Consegues ver? É bom que consigas ver porque é o que tenho para te mostrar.

Não te vou dizer nada que queiras ouvir. Não vou dizer nada do que queriam que eu soubesse dizer. Vou colocar o meu braço sobre a tua traqueia e vou começar a fazer força e vou fechar, devagarinho para que percebas tudo o que está a acontecer. Vou fechar.

Contas os segundos ou queres que seja eu? Conta. Vá. Conta enquanto eu faço força e tu deixas de conseguir respirar.

Estão a ver? Isto era o que queriam que eu não fizesse. Este é o meu arame farpado. O arame que me tem à volta dos olhos, à volta das mãos e dos dedos, dentro de mim. É o que sei de melhor.

Sabes tão bem quanto eu que nenhum de nós vai chegar a sair daqui. Não há espaço lá fora. Entre os meus braços e o teu respirar já há pouca coisa para nós.

Não vou ser nem um bocadinho melhor que isto com este arame farpado em volta. Vou só fechar os braços até ao fim e dizer-te adeus.

24/02/2011

No.TH.ere


Fecha os olhos. A noite deve estar quase, quase, a terminar. Apesar das janelas abertas podes fingir que não sentes o inverno a entrar. Podes fingir que eu já não me importo de te ver a tremer. Se puderes, deixa as mãos abertas para te ver a agarrar o nada que te sobrevoa o corpo como se te tivesses afogado na tua própria saliva. Talvez não devas falar tanto. Ou respirar. Talvez devas remeter todas as palavras que não chegaste a dizer para o mesmo lugarzinho do teu corpo. Podes cortar a pele se quiseres. Não me faz qualquer diferença. Podes cuspir o sangue inteiro que te leva a escrever coisas que eu não sei o que querem dizer que eu não me importo. Que eu não quero saber. Podes até segurar o ar com a tua serenidade que eu vou continuar a gritar. Fecha os olhos, merda. Tenho-te a olhar-me de frente quando sabes que já te não queria estar a ver. Desaparece. Vê se me importo que desapareças. Eu fecho os olhos porque a noite, em breve, vai acabar e eu posso finalmente saber onde estou. Aqui não vejo grande coisa…aqui não sei bem onde tenho os dedos, a pele, os olhos. Podes fingir que não vem frio daqui. Podes fingir. Não me importo mais. Agora não falas? Não tem mais saliva para me afogar? Estás aí?

Talvez seja verdade que já tenhas ido embora e eu ainda esteja aqui deitado, a fingir que não me importo que tenhas já partido com a chuva.

importance

Hoje és como o espaço que sobra nas coisas vazias.
O que resta do que resta quando já resta pouco.
O que sobra do que sobra quando nada sobra das sobras.
O que chega quando o resto se vai.
O que vai quando já coisa nenhuma chega.
A importância de se ser o lugar que se não é, é como uma revelação divina, é como uma linha preta numa folha branca, como uma palavra começada numa frase vazia, como um azulejo numa parede ferida pelo tempo, como um lápis de carvão a furar as linhas, como uma nuvem lisa a desafiar o inverno.
A questão que se encontra em se ser o que se não é e em querer ser o resto do que não sobra, é maior que o vazio que se encontra quando se arrisca abrir os olhos sobre o abismo da vida. E tudo isto, hoje, podia ter-te tido a maior importância.

15/01/2011

cao.s

Partes como se partir fosse chegar de forma inversa.
Deixas o espaço da casa da mesma forma como o encontraste. O caos caído sobre si mesmo.
Restam beatas e cinzas espalhadas na pele da madeira. Gotas e manchas, suor e sexo, lágrimas e sangue. Por entre lençóis e vidros quebrados, não ficou mais nada senão o pó.
Um caos aberto sobre si mesmo.
Há uma música a rezar o princípio da noite. A música sempre. Ligada a bramir o teu chorar em notas reproduzidas contra a necessidade inevitável do silêncio que a noite traz.
Tenho o corpo a dançar em náusea.
Tenho a náusea a dançar-me no corpo como se não tivesse mais como respirar.
Partes como se chegar não fosse mais do que este abismo aberto no caos de mim.

Segura-me nas mãos. Vou cair.
" O Mundo é um pensamento encadeado. quando algo se consolida, os pensamentos libertam-se. quando algo se desfaz, os pensamentos encadeiam-se."

Novalis

12/01/2011

ouço o teu respirar na pele das costas e não me sinto capaz de me virar no corpo













"If at first you don’t succeed, put yourself up and try again
Try again"
Tens os lábios suspensos na marca de água onde caíram as palavras antigas. Nos pés não há soalho que não esteja apodrecido pelo tempo passado sem piedade sobre os rasgos da humidade que te cobre os cabelos. Ouço-te rezar quando fecho as janelas e impeço o resto do mundo de devastar o que resta da tua solidão. Aqui dentro não há perigo. Sabes bem que aqui dentro não há perigo.
Olho-te por detrás dos vidros e percebo que nunca compreendi – verdadeiramente  -rigorosamente nada do que te fazia mover. Sempre soube a selvajaria que acontecia dentro do teu pensar mas nunca pude saber a verdadeira dimensão das coisas que te consumiam.
Suspendi-me nas palavras que tinha para te dizer e remeti tudo ao silêncio que só as almas velhas sabem manter. As palavras, tuas, caídas longe das minhas, mais não poderiam ser do que o reflexo da nossa eterna incapacidade de ser o que restava de nós.

09/01/2011

água

Fecha-me nas mãos que são tuas feitas de água. Encerra-me no sonho que é teu feito de deserto infinito. Guarda-me nas palavras que jamais serão proferidas. Entoa-me nas preces aos deuses esquecidos. Sorri no olhar que é meu e que tens dentro de ti na certeza de que, um dia, eu vou chegar a chegar junto do lugar que tu ocupas fora de mim. Prometo que vou tentar serenar o passo e seguirei na marcha de um cavalo negro de encontro ao sol que se vai por na margem do deserto que gerámos em nós. Antes de partires, vou segurar as tuas mãos feitas de água e vou beber-te, inteiro, até mais não poder. Antes de eu partir, tentarei ter chegado a tempo da tua espera.