28/12/2022

Sonhei o teu corpo despido em contra-luz na janela do jardim.

De seguida, sonhei um tigre branco que atravessou o ar e me tocou nas mãos e se deitou aos pés do tempo.

Depois, sonhei-te com uma outra mulher que sorria segura pelos fios das tuas mãos trémulas.

A seguir vi a minha sombra a atravessar o jardim, descalça, a passar sobre o pêlo do tigre que dormia na alegoria de (eu) ser uma ilusão, a arrastar os fios quebrados presos no tempo da pele, a caminhar, sorrindo, em contra-luz.

20/12/2022

POnTo

Jaz um estorninho no feio cinzento do manto de uma qualquer rua pérfida desta cidade.

Não há nenhum canto de nenhuma ave a entoar no silêncio obscuro deste dia.

Em cada lugar de cimento a desfazer-se do tempo como acontece aos ferros de ferrugem que seguram a ponte, encontro a memória de ti.

Em cada agressão da voluptuosa dinâmica da cidade cheia, deparo-me com a lembrança da tua voz.

Em cada folha caída, raiada de vermelho, tingida do receio do inverno, encontro tua pele. 

Em cada momento perdido da iminência antecipada da angústia da chuva que faz quedar todos os anjos do céu numa devastadora agonia concertada pela falência certa da humanidade, encontro tua língua.

Em todos os sabores de todos os ventos de todas as ruas e vielas tristes, ou entusiastas, perco tua mão.

Jazem os pássaros, as ruas, as folhas e os mantos de água nas minhas mãos gravosas.

12/12/2022

Os pássaros calaram suas tristezas nos bicos.

Recolhem seus corpos de asas para dentro da constatação do inverno e cessam o sangue de correr sob as penas. 

Gritam por dentro. 

Morrem lentamente, enquanto esperam, melancólicos, pelo recomeço da primavera.

11/12/2022

Quando o mundo fere, inteiro, por dentro as palavras ficam presas nas mãos.

Quando a vida grita, inteira, a tinta implode por dentro da alma e incendeia o poema. 


Somos nada

Absolutamente nada.

10/12/2022

Caminho desavinda de lugar nenhum.

Percorri as ruas vazias da minha inquietude e foi a este lugar que cheguei.

Não reconheço nada.

Não está aqui ninguém.

Há apenas o silêncio que se escuta debaixo de água e

cheiram a podre e a lixo estas ruas que desenham os traços e os troços do resto que ficou de mim.

Há sujidade por todo o lado. Minhas mãos estão cobertas de terra apodrecida, barro negro que me escorre nas veias da pele e dentro da boca.

Escavo estas ruas dentro do peito até aquietar o desassossego de quem não tem lugar.

Por tudo o que vejo,  permanece a água que escorreu das iras do tempo. Água que lava e que leva tudo o que encontra. Até o silêncio que se aquieta por dentro de si mesma. Até percorrer os caminhos e chegar, vinda de um qualquer lugar, ao lugar onde eu já não caminho.



20/11/2022

Não venho aqui ouvir os pássaros 


Venho 

lacrar a vossa ausência.

19/11/2022

VÁcuO

Recolhes-te

dentro da tua angústia 

por debaixo dos seixos negros 

na orla da costa que respira a lava que

quem 

olha de fora

não consegue 


ver.


Fechas 

teus olhos 

como quem 

fecha as mãos 

ficas

virado para o interior das tuas ausências 

com a dor 

a apontar 

o caminho

que 

fica 

para 


norte.


Seguras

em silêncio 

todas as mágoas do mundo

que colide 

com todas as areias 

perdidas 

nos caminhos 

do deserto

que te devasta

por dentro

a cegueira do caminho

que 

de frente para ti

te foge das mãos 


fechadas.


Somente

o tempo

vestido do negro dos seixos

despido do silêncio do mar alto

te poderá 

trazer

de volta

ao caminho 

onde 

deixaste

teus olhos


abertos.

16/11/2022

Toca-me.

Mais uma vez.

Prometo que não fico.

Prometo

que

não volto.

 

Deito-me, despido, sobre o beiral do tempo. Conto cada dia que passou nos dias que foram noites e sei o tempo todo que estive suspenso na tua sede.

Sei a fina lâmina que me lambe o lugar escondido que tuas mãos ocuparam no interior de meu corpo vazio.

Deleito-me na sôfrega certeza (ou somente memória) da vontade de me vestir dos contornos da tua desvontade.

Intento entregar-me (nu, descalço, com labaredas a emanar dos contornos da pele), à fealdade da violência que abraça a tua ausência quebrada no lugar vulnerável da condição de se não poder ser nada para além de selvagem.

Mas tua voz é sempre o meu lugar de redenção. O lugar onde o sol repousa. Onde o mundo para de gritar.

Sorvo cada som vibrado da tua fala, cada tom a saber tornar-se nos fios com que me defino na forma inteira, e tuas palavras e o aroma de tua pele nos meus dedos, são tudo o que me alimenta.

Transcendo a essência do ar que respiras longe de mim.

Quero-te tanto quanto te não quero.

Desejo-te tanto quanto te não suporto.

 

Toco-te.

Uma última vez.

Prometo

que

não

volto.

15/11/2022

quedam

desenfreadamente

sem rédeas ou amarras

rajadas oceânicas de chuva

que limpam esta terra 

e nela desferem seus golpes impiedosos

disfarçados nos fragmentos da névoa que tudo abraça 

cegamente

no rescaldo do ruído do cinzento

e a única coisa que me podia salvar 

do dilúvio  

seria 

se o por do sol que reside dentro da tua voz 

pudesse chegar até ao aqui.



13/11/2022

 está na hora de te deixar ir

04/11/2022

Inalo o sangue que respira dentro das tuas lágrimas caídas 

e rasgo a pele do peito enquanto corro, 

despida, 

nos lábios frios da sanidade insandecida do inverno que se abate na chuva incessante que só acontece por dentro da minha alma.


03/11/2022

ManChEstEr

Toca-me

no canto mais putrido de minha pele

no ângulo mais sujo de meu abismo

no resto mais devastado da minha continuação 

na letra mais tosca da única palavra que me habita a lingua.


Diz-me tudo o que sabes 

sobre as linhas tortas do meu destino tortuoso 

sobre a cor da sombra dos meus dedos arrefecidos na queda do dia

sobre a rugosidade dos calhaus secos que me colhem a pele e me cobrem os olhos abertos


Grita

no meu ouvir

no que já não sei sentir

no que é sem ser e é por já ter sido

e

depois

peço-te



abandona-me ao vento.



19/10/2022

Deslizo

pela viagem de tua voz

até perder o norte.


Desfaço-me

na memória da tua pele

antes de atravessar o sul do deserto que acaba

precisamente

antes do lugar de mim.

18/10/2022

EsQuIÇo

Teço-me em finos fios de fogo
desenho-te em eternos fios de ferro
junto todos os fios em traços de areia pintada
na ponta do carvão 
e deixo tudo
tudo
na beira da janela
à espera 
que chegue a chuva.

14/10/2022

Não digas uma única palavra.

Temos de parar agora.

É tempo de cravar a areia dentro dos olhos. Escavar o asfalto dentro da pele. Esculpir o gelo dentro da alma. Esvaziar os lugares de todas as palavras.

Temos de parar agora.

Não digas uma única palavra.

13/10/2022

cheiro o peso da manhã em todos os cantos da tua solidão 

04/10/2022


Não questiono nada. Coloco em minhas mãos, o lugar vazio das tuas. 
Reconheço que são
tua voz e tua pele
o princípio e o fim de todas as coisas.

Minha língua entoa uma oração incompreensível que apenas eu conheço. Que não revelo a ninguém.  Como se fosses o silêncio mais bem guardado de todos os segredos. 

Respiro fundo o ar que te sustenta e reencontro-me num lugar reservado à vida. Reservado ao tempo reservado à possibilidade da vontade de ser tempo reservado para ser tempo. Um lugar de vida viva por ser um tempo breve do qual desejo que voltes sempre a partir. 

Fecho os olhos para te ver inteiro enquanto te sustenho na ponta dos dedos, enquanto me revisto do aroma da tua pele, enquanto completo a areia nos lugares esvaziados da travessia.

Rezo. Ao teu D. Sem que lhe peça nada. Rezo apenas como quem canta o silêncio, como a brisa quente de Outubro que lambe as folhas do chão e as leva a dançar, serenamente, por entre as árvores que quedam dentro de nós.

Escuto, por entre preces, a areia, a pele e o vento, todas as coisas que me não podes dizer.
Guardo todas as sílabas, todas as palavras, e deixo que repousem sobre a pele da língua, sobre a saliva dos dedos, sobre a certeza da incerteza, para poder saber tudo o que me disseste. 
Escuto. 
E
em breve
deixo tudo partir. 
 


02/10/2022

O inferno 

é 

o lugar onde 

ficam

teus olhos 

de cada vez 

que 

fecho a porta. 

Há um negrume que se instala no azul do céu de uma tarde cansada. Anuncia a certeza de que a chuva regressa, em breve. As gaivotas choram o canto dos abandonados enquanto esvoaçam, erráticas, desamparadas, num rasto de um qualquer caminho...para terra, ou para o mar? Debatem- se com a incerteza segura de que a vida é uma escolha permanente e que, por fim, termina na causalidade escolhida. Em cinza. Ou em abismo. 

Penso em ti enquanto caminho o chão de areia. Talvez seja a água que choras de dentro da pele, aquilo que te tenha transformado os pés em barro. 

29/09/2022

São sombras dos teus gestos que reencontro na chuva que me desenha a pele. 

Fecho os olhos 

e fecho as mãos. 

Deixo-te partir

mas trago-te, 

durante um momento, 

agarrado aos dedos fechados sobre as minhas mãos. 

Um momento

é o que me basta 

para suster 

a ilusão, 

consentida 

de que

é possível 

segurar(te)

a água.

E,

logo de seguida,

largar.

27/09/2022

Não sei o que causa maior temor... que me esqueças ou que eu me esqueça de ti. 

23/09/2022

R.

Morreste nas lágrimas das minhas mãos.


Neste momento, na noite ébria, queria apenas sentir teu corpo na minha língua, nas minhas mãos, na minha pele...

Não há, neste preciso momento, mais nada que me possa fazer sentido senão a incontornável ausência de tua voz.

Emana, de mim, o aroma a lima, a mosto e a fumo e é nesse lugar, sombrio de tão vivo, que me cruzo com a certeza do lugar de ti. 

E termino, nos resquícios do verão que abandona este lugar, a ansiar pelo que me não pode chegar a ser.

22/09/2022

Penso em ti. Um cavalo selvagem, sem rédeas, a correr desenfreado pelos campos e dunas e desertos e praias. Um cavalo puro, de crinas ao vento, livre. E mesmo assim, trago-te agarrado à pele.


17/09/2022

Seguro, na língua, as pontas da tua voz ferida. 

14/09/2022

 cubro meu sangue com a infinitude da tua pele.

09/09/2022

estou seguro que as minhas mãos são feitas de areia. meus pés feitos de areia. minha pele tornada areia. dá-me um pouco de água e transformo-me em barro. deixa-me aqui e partirei com o vento do deserto. 

08/09/2022

a ausência é lugar de nada

soa uma melodia qualquer por entre os silvos do vento a entoar preces por entre as folhas despidas das árvores que se cansam de aguardar pelo outono 

dança-se, numa dança sem sentido, que se vai fazendo com esse nada que passa a ser o lugar de tudo

24/08/2022

 (...)

beneath the stains of time

the feelings disappear

you are someone else

I am still right here


(..)

if I could start again

a million miles away

I would keep myself

I would find a way


Hurt

Johnny Cash

21/08/2022

OrAçãO

Segurei-te nos braços e na voz, quando tiveste medo.
Lambi-te as feridas e comi do sal, do sangue e da terra que te compunham, até voltares a ti.
Amei-te o desespero e a desesperança, tapei teu corpo gélido com minhas mãos abertas na pele, e fui a carne e a palavra no secreto silêncio que duas almas encontram na sede de deserto.
Fui teu porto, teu barco, teu abrigo, teu canto de cisne. Fui, sendo, mas sem ter nunca chegado a ser.
Estava onde tu estavas, mas tinha sempre uma asa pronta para voar. A asa que rasgarei depois.
Pousei os pés nas areias movediças do que acontece por dentro de ti e não fui capaz de fechar os olhos e me deixar ir.
Fui, sem ter chegado a poder permanecer.
Atravessei o deserto até chegar ao mar alto. É nesse lugar que me encontro agora, onde há um abismo aberto de baixo, inacabado e incerto, e fico ao sabor das ondas e à mercê das marés com a certeza incerta da constância das inconstâncias, de que me afogarei em breve, abraçada ao castigo que se me impõe a natureza fielmente cruel da minha incapacidade de me manter à tona de água. 
Segurei-me nos teus braços e na tua voz. Usei as palavras ditas e os silêncios de lugares em branco, e preenchi o remanescente das linhas com as mentiras do meu próprio poema. E agora parto, para ir buscar as penas e deixar a pele, para me afogar, sozinha, por dentro do meu firme declarado caminho.

Estás longe.

Num lugar de mar alto onde eu já não posso chegar.

Num lugar onde já não há terra para eu ter lugar. Onde já não posso ouvir-te na voz porque já não há nada que me queiras dizer. Onde minhas mãos está vazias e já não podem tocar. Onde o silêncio da distância ausente transfigurou tudo.

Já estou demasiado longe.


20/08/2022

Arranco uma asa.

Ouço te a gritar.



Arranco a outra.

18/08/2022

Cresce-me um fogo por dentro. Arde-me na voz. Arde-me no peito. Queima-me na ponta dos dedos que sinto desfazerem-se no vento que assola esta terra a oriente.

Desenho linhas que não consigo ver, usando a sombra do sangue da tua ausência...e espero que não chegue a suster-me no apelo do abismo.

Ou talvez espere chegar à orla da rocha negra dançando como um dervixe, na esperança que D me segure nos dedos de cinza e me traga de volta ao lugar anterior a este lugar que é apenas um lugar vazio. 

Sinto a crueza cruel do (des)sentido deste lugar que, por tu não estares, deixou de fazer sentido. 

Diluo meu sangue na sombra do teu, enquanto procuro nas mãos as linhas para desenhar meu passo seguinte. 

Por vezes temo não conseguir avançar pois tudo em frente, atrás, de lado, tudo o que meu olhar alcança, está a arder. Sou eu quem está a arder.

Outras vezes, sei que vou dançar até encontrar as clareiras e as linhas desenhadas com as cinzas que trago na voz, até o (des)sentido voltar a ser lugar de sentido.

O vento mantém um fogo a arder-me por dentro. Até que eu possa mudar de lugar, até um lugar fazer sentido. 

Queria ouvir-te.




Mas não tenho nada para te dizer.


Queria poder falar-te.



Mas não tens nada para me ouvir.

15/08/2022

Falta 

uma 

palavra.

11/08/2022

pensei que podia esquecer tudo. aceitar o que não sobrou. desfazer o que estava feito. deixar o já desfeito à sua própria sorte. preparar-me para sair. preparar-me para não regressar. acreditei que podia não regressar. mas não cheguei a sair daqui. 

Esvazio a casa. 


Dia após dia. Sem demorar. 

entrego

desfaço

elimino

esqueço

destruo

perco

cedo

dou


Remeto para qualquer lugar, mais um fragmento de mim. Um de cada vez. Mais um de cada vez. 

Não sei bem o que vai sobrar quando tudo terminar.

Agora ficam apenas as paredes

o tecto

o chão 

e as janelas fechadas na penumbra. 


Esvazio uma casa. De novo. 

Até não restar mais nada. 


08/08/2022

Estou parado no meio da estrada.

Os carros passam de ambos os lados de minhas mãos. Por dentro e por fora. E já não sinto quando me atravessam. Já não sinto nada. Parece que tudo parou na ausência. Talvez seja a tua lonjura que desfaz a minha (des)presença. Estou distante da distância de ti. Tu estás infinitamente longe de mim. 

O que nos distancia é inequivocamente maior do que o que nos poderia unir.

Fico parado no meio da estrada até escurecer. Até não haver mais carros. Até conseguir fechar as mãos e voltar a andar. 

28/07/2022

lOuCuRa

Minha maior loucura, foi amar-te. 

e se a loucura for um erro, meu maior erro foi amar-te. 

e se a loucura for um arrependimento, meu maior arrependimento foi amar-te. 

e se a loucura for dor, minha maior dor foi amar-te. 

e se a loucura for angústia, minha maior angústia foi amar-te. 

e se a loucura for solidão, minha maior solidão foi amar-te. 

e se a loucura for idiossincrasia, minha maior idiossincrasia foi amar-te. 

e se a loucura for sofrimento, meu maior sofrimento foi amar-te. 

e a loucura é, intrinsecamente, todas estas coisas. 

foste, portanto, o maior erro de um arrependimento doloroso, envolto numa angústia solitária, idiossincrática de tão sofrida. 

25/07/2022

Se embateres de frente no que te impede o caminho, ou paras ou saltas...

Se parares, deixas de poder ir.

Se saltares, onde irás parar?

Não precisas de quem eu sou no que sobra de ti.

Deixo-te ir.


Já não regresso mais aqui.


Fico pendurada

Pela pele dos dedos

Pela pele das costas

Em ganchos de carniceiro

À espera que a gravidade me rasgue

17/07/2022

Sei 

que te amo 

quando, 

em demasiados momentos, 

todos os lugares te trazem 

até mim. 


Sei 

que não te posso ter

quando, 

em todos os momentos 

de todos os lugares,

não sou capaz de

te pedir 

que venhas.

15/07/2022

Somos os espaços em branco das nossas vidas.

Nos espaços em branco há lugares que são vazios. Lugares vazios são lugares em que cabe tudo. Lugares em que tudo cabe talvez não seja possível deixar ficar nada. 

14/07/2022

O vento quente atravessa-me na noite e leva-te do que resta da memória de mim.

Nenhuma estrada encontra o caminho de volta ao lugar em que o que ficou, ardeu por dentro.

O vento leva as palavras ardidas e deposita as cinzas pelos cantos da cidade.

10/07/2022


21.


E isto é tudo o que pode ser neste espaço em branco.

08/07/2022

sei 

sem querer

o peso 

que inflige

a falta 

de ti 

no interior 

do deserto

desfeito

das minhas 

mãos 

vazias


03/07/2022

Tenho o corpo solenemente cansado mas é a vigilia que me comanda.

Queria poder fechar os olhos nos intervalos do tempo e permitir ao lugar do corpo voltar a ser lugar da vida, mas há grades negras de sonhos putridos que me calcam o tempo e me devolvem ao acordar.

Meu leito é de ferro e não amansa, nunca.

Meu corpo é de restos e assim não retoma a ser inteiro, nunca.

Minha noite tem os intervalos de mim, entre o sonho e o nada, sempre a tornar-me mais lento, mais fechado, com maiores intervalos entre o que sou e o que não sou.

É a vigilia que me comanda no segredo do silêncio da noite cansada.

28/06/2022

Seguro

nas mãos

o teu ar

para poder respirar.


Abuso 

sem pudor

de teu corpo

para poder viver.


Repito

os sons

de tua voz

para chegar ao silêncio. 


Seguro 

a evidência 

de tua permanente fuga

para encontrar o caminho.


Ignoro

o lugar 

de teu caminho

para iludir o meu.


Minto

para poder dizer a verdade.


Iludo-te

para me enganar

enquanto me iludo

que te engano.


Abuso 

da tua existência 

para 

reconhecer a minha.


Fico

até que parta.

Parto

assim que o digas. 


Excedo-me

para fazer de conta

porque és 

perfeição 

em forma de desculpa

para me manter 

na minha fina linha 

da ilusão 

do que me segura 

à tona de água.


Perdoa.


27/06/2022

Sabes,

há uma dor que se instala no ventre e arranca o que está lá por dentro.  Não consigo agarrar nada do que está a morrer...

Não dá para mudar o lugar das coisas que cristalizam dentro das coisas que já foram coisas e que deixam de ser, em si mesmas, o que quer seja. 

No fundo, entendo tudo o que desfalace e desaparece nas entrelinhas do que não se diz, do que não se sabe, do que se finge saber e do que se omite. 

Avanço pelo asfalto levando os pés e as mãos despidas a olhar tudo o que duvido de frente. Levo o sangue a obedecer cegamente à gravidade e a misturar-se com as águas frias do rio que traz tudo o que ainda não sei.

Tenho o lugar das coisas que guardo por dentro, esventradadas na chaga reservada ao ardor da traição. 

A ilusão do sentido que reside dentro da invenção do equilibrio é o que desiquilibra a ordem das coisas. Tudo é mutável. Nada dura para sempre. Mas o lugar das coisas, esse não muda. 

Sabes,

apetece-me dançar de olhos fechados no lugar mais fundo da noite enquanto os pássaros embatem nas janelas da minha dor e se desfazem na ilusão de que podem retomar um voo que deixou de ter lugar. Será que alguma vez soube voar?

Morro esventrado a dançar de asas abertas de frente para o muro onde escrevo, em sangue, a verdade do que não consigo segurar.

19/06/2022

guardo o aroma de ti 

nos intervalos da minha pele


guardo a tua pele

nos intervalos do meu tempo

13/06/2022

Tenho nos braços o aroma das cores com que se despe a nostalgia que reside nos céus dos fins de tarde de uma sobra anunciada de um setembro cansado.

Atravessam-me memórias do que foi, do que fui, outrora, e sempre a pairar no ar quente que o norte soprou para assolar estes céus uma qualquer ...todavia.
Podia ter feito um poema nas tranças das palavras que ontem me foram ofertadas por uma existência de que não sou merecedor. Mas não mereço as palavras. Não mereço o poema que se desenhou nos dedos de tinta. Não mereço o que a vida me entrega assim.
Não sou merecedor do jardins, por isso caminho no breu ensurdecedor da estrada vazia.
Não sou merecedor do poema, por isso é rocha o que escavo dentro das palavras.
Não sou merecedor dos fins de tarde, por isso me precipito, que nem borboleta estovada, para o princípio da noite.
Sou, neste momento, a antítese,  a contradição,  o oposto de tudo o que deveria ser. Era este o momento... e tudo se tem vindo a quebrar, desfazer, fragmentar, sem que eu consiga travar esta espiral de horrores que acontece por dentro. Este era o momento do começo do auge de minha existência e agora tudo é uma parábola a pender para a tragicomédia medida pela inegável e inexorável incapacidade de realizar qualquer acto de forma correcta.
Balanço no lado errado de tudo. Na aresta que tem a lâmina afiada. No lado do frio. No lado do breu. No lado errado do abismo invocado. No lugar inexplicável do erro peristente.
O deserto abandonou-me.
O mar abandonou-me.
Já sobra pouco e é cada vez mais difícil sair destas areias.
Sou lodo agora. Somente e apenas lodo putrefacto onde as árvores morrem sempre em formas estranhas. 

11/06/2022

 Há um calor lânguido que se segura nos poros e desce pela pele. Sem pudor. Sem pressa. Obscenamente.

Segreda-me palavras que não sei ouvir e rasga-me na carne, por dentro. Morde-me na fraqueza e dilacera o que resta de minha triste alma.
Sinto-lhe a língua, lenta e sôfrega, a cantar nos lábios cada gota de suor até eu ser inteiramente água na volúpia de um qualquer rio.
Corro sempre para sul. Caio sempre virado para sul.
Escrevo despedidas em pontas de navalha cravadas no asfalto que me prende pelos pulsos e é no calor do sangue que acontece a perfeita devastação de meu corpo.
Temo ter de comecar a respirar agora. Faz demasiado calor aqui.
Parece que tudo se vai fazer cinza. Como se tudo fosse desaparecer. Desvanecer. Cessar.

Mergulho no rio que me leva na corrente. Já não procuro formas de lutar contra a efémera incerteza do movimento das águas. Sinto como cada lâmina em cada pedra me leva mais um pedaço de alma e sorrio enquanto me tento recordar de como respirar.

Estou do lado errado do abismo e resta-me desfazer tudo o que sobra, na música que a água entoa enquanto o corpo embate nas pedras e se incendeia. 

29/05/2022

São flores de jacarandá que me cobrem os pés descalços sobre a pedra negra das entranhas da ilha.

São gotas de chuva feita de mar que me cobrem a pele e o cabelo solto no vento que me grita poemas queimados.

Respiro fundo para travar as palavras todas que me invadem no lugar mais fundo das coisas que se não podem dizer.

Fecho os olhos sobre o cinzento que pinta o céu e aniquila a vontade de estar. Aqui ou acolá.  Antes ou depois. Agora ou nunca.

Sinto o corpo a ferver por dentro e a pele a chamar por ti.

Espero uns segundos antes de abrir os olhos e de deixar cair as pétalas lilases de que são feitas as lágrimas na maré vazia que só se encontra no silêncio das palavras perdidas. 

Escrevo nas páginas vazias do tempo

as lágrimas que me fogem dos dedos cansados.

Dia após dia, 

mês após mês 

como se o tempo fosse um nada que é

como chumbo agrilhoado 

no meu andar. 

Não caminho, 

arrasto a existência.

Não vivo. 

Arrasto a vida.

Não encontro nada...

Tudo morreu contigo. 

20/05/2022

Há sangue na estrada. Há sangue dentro do calor que ascende do asfalto pregado nas rugas desta cidade envelhecida. Sinto o corpo a adoecer e não consigo segurar nada nas mãos. Sou feito de água. Sou feito de nada. Tenho os braços abertos para me segurar mas "braços abertos não agarram nada"...

Há sangue a sair de dentro de mim. Sei que vou perder a voz. Sei que me vou perder de mim. Sei que devia ter parado antes de cair no calor desta estrada mas não o quis. Agora sou eu o sangue. Agora sou eu a pele enrugada da cidade. Agora está em mim o princípio do fim.

Abafo o grito na água. Fecho os braços para segurar o sangue. 


Cheguei tarde.

Seguro o amargo da tua ausência nas coisas que ficam presas na voz. Sei a que sabe o fel enquanto recordo a que sabiam os sabores de ti antes do grito se afogar por dentro.

05/05/2022

Arrasto 

o sabor 

dos teus 

dedos

agrilhoado 

dentro 

da 

minha alma.


Todo 

o corpo 

se 

incendeia 

por dentro 

e

ardo 

sem 

desaparecer. 


Desfaço-me 

por dentro 

sem 

que 

se vejam 

as

chamas. 


Transformo-me 

em 

cinzas 

em 

carvão 

com que 

escrevo 

nas linhas 

do horizonte 

o teu 

nome 

gritado 

em sangue 

ao silêncio 

que 

cobre 

o interior 

do 

meu 

deserto.


Finge 

que 

me seguras 

com 

teus 

dedos 

feitos 

de 

água.


Deixa cair 

tua boca

sobre 

o lugar 

triste

de minha 

alma 

despida

detida 

vencida

e repete 

repete

repete

repete

que 

já parti.  

04/05/2022

vou mudando coisas de lugar. mudando os lugares das coisas. 

não sei bem se procuro o lugar certo ou se é somente a necessidade de mudar. deixar o que foi. partir para o que é. pensar no que pode vir a ser. 

caminho, lento, sobre o deserto do meu interior, até sentir que me abandonei. podemos começar de novo de cada vez que nos abandonamos. quando nos perdemos nas lâminas do nosso próprio abandono, talvez sejamos forçados a arriscar escolher um caminho. qualquer direcção. talvez para nos perdermos ainda mais. talvez para nos procurarmos. talvez somente porque precisamos de continuar o movimento. talvez porque não esperamos nada. talvez porque não queremos ou porque queremos demais. 

depois de sentir o deserto a desfazer-me por dentro dos dedos do vento do norte, corro selvaticamente pelas planícies douradas à procura de flores frescas onde possa deixar cair a pele dos pés. 

depois volto a mudar as coisas de lugar. ponho as flores no deserto e a areia planto-a ao vento das planícies. 

03/05/2022

compreendo que não é de mim que fogem os pássaros

fogem do medo que lhes roube o voo

25/04/2022

sento-me no canto mais a sul do jardim. o murmúrio das asas dos pássaros que sobrevoam este pequeno espaço de céu, passam a ser apenas ruído. tapo os ouvidos e espero que termine. queria dizer tantas coisas e não me sai uma única palavra. só ruído. na verdade, queria conseguir gritar para calar tudo em torno de mim. mas atrapalho os gestos e confundo a pele com a  terra lamacenta que me circunda os pés. por momentos, não consigo entender bem onde estou. por vezes, de facto perdemos-nos. deixamos de saber quem somos e o lugar em que estamos. mas talvez, ainda que possa assustar, não seja uma coisa nefasta. talvez nos possa deixar mais alerta, mais convictos, mais alargados. ou não. talvez faça somente e apenas o oposto disso mesmo e ficamos ainda mais pequenos, mais insignificantes, mais ruidosos. há qualquer coisa a desfazer-me por dentro. não sei se é angústia. não sei se é dor. não sei se é uma via sacra. não sei se são espinhos. não sei se são feridas. não sei se são palavras. não sei se é tinta negra que se confunde com lodo. não sei. sei que me é estranho e que, quando estava quase a passar e eu já via para além da lama que me cobria os olhos, voltou a descer sobre mim, como o pano do palco no momento em que nos despedimos do público e tudo cessa de respirar. sento-me no canto mais a sul do meu corpo devastado. o ruído dos pássaros, percebo agora, afinal é música. embala-me as lágrimas e acaricia-me a pele arrefecida. esperava que chovesse para me lavar do dia mas o sol insiste em celebrar a vida. queria não estar acordado. conseguir não ver. deixar os dedos de lama sobre meus olhos e sonhar na cegueira com o que ainda não foi. esperar que este tempo deixasse de ser tempo e a lama deixasse de ser lama e a angústia deixasse de ser angústia e o jardim deixasse de ser lugar confuso e eu deixasse de ser assim. de vez em quando deixamos de saber quem somos. deixamos de saber onde estamos. deixamos de saber quem queremos ser. deixamos de saber para onde vamos. sento-me no canto mais a sul do desespero, na esperança que o norte se revele nas linhas de sol das asas dos pássaros que embalam a tristeza do dia. 

18/04/2022

Temo que todos os actos de amor sejam, na verdade, somente actos de egoísmo puro.

Amamos as pessoas que amamos ou amamos o que nos faz sentir o amado? 

Talvez amemos apenas o que recebemos e não o que damos. Mesmo quando queremos entender que é o oposto, não o é.  Amar é um acto de egoísmo. 

E se, talvez, o que dermos não seja mais do que o reflexo do que recebemos? Estamos verdadeiramente a dar ou apenas a reagir? Se o que damos é igual ao que recebemos e seja sentido na mesma intensidade, então aí seria um acto equitativo e justo. Mas não andaremos apenas nas arestas do amor a encontrar o que podemos receber pois é, de facto, o que recebemos, o determinante que nos mantém a arder nas arestas? 

Aquilo que damos esgota-se. Repete-se. Arrepende- se. Entedia-se. Aniquila-se. Cansa-se. Esconde-se.

O que se recebe, não. O que nos é dado, alimenta o fogo. Facilita. Constrói. Estrutura. Serena. Engana.

Não se amam as pessoas em si mesmas mas somente o que elas nos deixam trazer de si para dentro de nós. 

Temo ter nascido no lado errado das coisas certas porque amo sempre de todas as formas erradas de amar. 

17/04/2022

Não é preciso nenhum perdão. Não houve nenhum pecado.

É chegado o tempo de recomeçar. Pegar nas feridas e fechá-las com o sal e com a terra. Cravar a pele dos pés no caminho e seguir. De novo. Em frente.

É tempo de olhar para o que o luar revela sob a terra quente, por dentro das sombras da noite. É a lua a lamber as arestas do que foi, e a impedir que a escuridão seja o que tem possibilidade de permanecer. 

Não. Embora pareça triste o canto das gaivotas que recolhem as asas do calor do dia, é livre seu voo e é pura sua esperança. Amanhã, tudo recomeça.

É tempo de pegar em todos os gestos de amor e guardá-los na lembrança do caminho. Ter a mestria para saber usar o que deles nasceu para o que está por vir. É tempo de agradecer o tempo e aceitar o que sobrou. E ver a beleza do poema que se escreveu nas linhas incertas dos espinhos e das marés.

Não há perdão pela razão de não haver lugares de culpa. Amanhã, será menos triste o canto e mais livre o voo. 

É isso que se faz com o amor. Coloca-se sobre as asas, sobre a pele dos pés, sobre os dedos e sobre o caminho e segue-se em frente, renascido. 

10/04/2022

o amor é muitas coisas.

é ver-te de costas

a atravessares a areia

até ao lado da outra margem

sem olhares para trás.

é vil teu abandono

e o silêncio está coberto de espinhos 

que dilaceram carne e alma

passado e presente

e obrigam as pedras a cobrir os gestos

e o desapego absoluto a cobrir os dias.


o amor é muitas coisas.

é eu a deixar-te ir

em silêncio 

porque te recusaste à música.

06/04/2022

não se pode pegar uma borboleta pelas asas.

ela deixa de poder voar.



30/03/2022

 caem estrelas por entre o vazio que desce sobre o horror de minhas mãos

16/03/2022

são como alísios 

estes ventos que carregam sobre suas penas

todas as lágrimas desfeitas em pó 

de todos os desertos 

que nascem

e morrem

na fronteira de todos os gritos

que o silêncio morde nos dedos

onde reside a solidão de cada um de nós. 

são ventos que trazem ventos 

que não levam lágrimas de volta.


14/03/2022

a ausência tem o aroma da noite das flores de laranjeira

08/03/2022

Por vezes.

A irremediabilidade da tua ausência.

Bate-me de frente.

A qualquer momento.

Sem piedade.


Trazemos sempre.

Quem morre.

Pregado numa cruz.

Dentro do peito.

Na espera.

Do momento certo.

Para fazer.

Tudo arder.


06/03/2022

Meu amor é desinteressado, não pede, não cobra, nao espera nada em troca. É em verdade e cede sem questionar, devoto na sua certeza pura. Não olha para trás, não espera nada em frente. É,  em si mesmo, tudo o que é e nada mais. É sereno, dança como flores de amendoeira na brisa breve do fim do inverno. Resiste, de pé,  no deserto ou na ilha. E não teme. Não desiste. Não abandona. Permanece. 

Minha paixão deseja tudo. Pede. Espera. Anseia. Questiona. Rasga. Fere e quer ser ferida. É feita de sangue a correr, suor na pele, força nos dedos, quer tudo nas mãos e lugar no corpo. Grita, chora, corre, viaja e atravessa vales, montanhas e oceanos até ter o que deseja. Não cede. Soma tudo o que foi, tudo o que é, tudo o que pode ser. Guarda tudo no egoismo escarlate da tempestade da ânsia até chegar à linha do abismo e dá as mãos à queda. Sabe permanecer tão bem quanto desistir. Resiste mas não insiste. Permanece e muda. Hoje quer, amanhã oblivia. Hoje incendeia, amanhã é fria como uma manhã de janeiro. 

Talvez sejamos feitos do que sustém o limite entre estes dois lugares.

05/03/2022

estou deitado 

num lugar em chamas

de olhos fechados sob o mundo

a ouvir a chuva.

04/03/2022

sustenho-me

pela ponta dos dedos

na fina aresta do abismo

de saber ter a fé entregue

à esperança incerta de que

um dia

a espera termina

e tu chegas

ao lugar de mim.

É o vinho que me escorre nas lágrimas e no sangue e me inebria o sentido das palavras e a rudeza dos caminhos.

Há,porém, uma indiferença na cacimba que anuncia a possibilidade de chuva por de dentro da noite. 

E todos os anuncios de possibilidades são, de certa forma, anuncios de vida. 

Mesmo que escorram lágrimas dentro do sangue. Mesmo que corra vinho dentro das veias. Mesmo que tu nao estejas no lugar das mãos. Mesmo que o mar seja feito dos teus olhos. Mesmo que a areia seja fruto do teu corpo. Mesmo que as minhas mãos nao segurem nada para além de agua,

água que é sangue

sangue que é lágrima

lágrima que é ausência.

ausência que é um acto de amor 

amor que é cacimba a anunciar a possibilidade 

possibilidade que é uma espera 

espera que é razão 

razão que é sentido

sentido que é caminho

caminho que é perdição 

perdição que é o lugar de ti,

em mim,

irremediavelmente. 

22/02/2022

 Escuta...


Consegues ouvir?

20/02/2022

Há pássaros estranhos que cantam o silêncio da noite. Dentro do silêncio só pode haver mais silêncio.  Depois do silêncio,  pode haver tudo. Dentro do canto destes pássaros, só pode haver mais estranheza. Depois, quando já não cantarem o silêncio da noite, o que virá a ser?

18/02/2022

É chuva

o que me sai da voz

de cada vez que intento pronunciar teu nome.

16/02/2022

Tua voz confabula palavras nas histórias impulsionadas na sólida solidão que remanesce na aridez da noite fria.

12/02/2022

talvez  nenhuma forma de amar seja a certa.

ou talvez haja apenas estranhas formas de amar.

11/02/2022

Preenches os vazios

com as mãos cheias de vidros

11/01/2022

somos, 

talvez, 

pouco mais do que pó. 

05/01/2022

encontro-te em lugar nenhum. na verdade não estás aqui. ou eu não estou no lugar certo. qualquer uma das possibilidades é uma possibilidade possível. 

não sei bem qual foi a ideia das mãos que deixaram o corpo e te levaram até ao lugar inverso daquele em que gostarias de chegar enquanto eu saí à procura de qualquer coisa que, para te ser sincero, não faço ideia o que era e só encontro sombras nos gritos das asas dos pássaros que são atropelados pela loucura dos carros que não deixam a cidade respirar. cada vez gosto menos de aqui estar. estou cansado deste ruído todo e o que invade cada fragmento das minhas artérias, dos poros da minha pele, das lâminas da minha angústia. 

sinto que morri pouco depois de teres saído daqui. na verdade, acho que cessei de respirar. juro. não estou a respirar. podes colocar a mão sobre o meu peito. podes percorrer-me as costas despidas no frio de janeiro. nada. nem uma réstia de sopro. nem uma réstia de luz. nada que se assemelha, minimamente, a uma realidade viva. sinto-me como uma gaivota atropelada a bater as asas na esperança de conseguir voar antes da morte a abraçar. 

por dentro, estou da cor com que a cidade despertou hoje. não. na verdade, com a cor do manto enevoado com que a cidade se deitou e com que dormiu toda a noite. isto é tudo um erro, sabes. um profundo e perfeito erro. e vamos cair de um lugar qualquer que nem sequer sabemos nomear. 

reencontro-me no vórtice de um qualquer lugar, num qualquer fragmento de tempo de que ambos partimos, à procura de algo que fica sempre longe da possibilidade de se ser em nós. até cedermos ao lado do verso em que caímos de forma inversa. talvez um lugar de coisa nenhuma. talvez lugar nenhum. 

02/01/2022

Meu corpo adensa-se na névoa que cobre o inverso da noite. 

Sinto tua mão a subir pelo meu ventre, 

pelo meu tronco, 

pelo meu peito, 

até parar, 

segura e firme, 

no meu pescoço. 

Deleito-me na ausência e sinto o fogo que te arde mas te não consome.

Permito-me terminar num êxtase de cinzas até a noite voltar a ser verso. 

Venho aqui para ouvir os pássaros. 

Depois, talvez, os sinos.

E depois, ainda, o que resta por dentro de mim.

Não há silêncio de verdade nos lugares onde procuramos o silêncio. Há outro volume de sons. Outra textura. Outra dor. Mas há sempre um qualquer ruído por dentro. Uma qualquer voz. Um murmúrio de qualquer coisa. 

Tocam os sinos, cantam os pássaros, 

ou será que gritam?

Ouço o resfolhar de asas e cantos entre as árvores enquanto o vento as acaricia ao de leve. 

Ouvem-se os restos da cidade na curta distância que vai deste lugar até aos sons que saltam entre o telhado dos sinos e a copa dos pinheiros. 

Há vida aqui, talvez, no lugar do murmúrio de silêncio que guarda os que já partiram.