13/12/2019

se me pudesses tocar, 
neste preciso momento, 
só encontrarias vazio.
sabes que há um silêncio indelével que só vem com a noite?
a cidade reduz o seu pulsar e as aves adormecem sobre as árvores despidas do inverso do inverno a anunciar o fim de mais um dia. 
o tempo é como o vento rasteiro que se arrasta hoje pelas ruas enquanto o frio se eleva ao esplendor máximo da insanidade. 
tens o corpo a tremer e as mãos vazias. 
procuras o silêncio que te abraça enquanto a noite fica, 
e permanece, 
lenta e lânguida, 
até que venha de novo a manhã. 
sabes que há uma noite que não vai terminar antes do dia recomeçar no cenário bélico que acontece em ti de cada vez que silêncio se rasga...

02/12/2019

deZembrO

é a margem deste rio que me salva de mim quando me aproximo demasiado da aresta da minha culpa
toco a água com a certeza da pele a arrefecer no lugar que fica entre minha angústia e minha distância.
a chuva, hoje, permitiu-se dar tréguas no seu combate e o sol permitiu-se ficar
sem medo, 
neste dia de um dezembro que se anuncia lento e escarpado.
é na margem do rio que me salvo de mim mesmo quando toco no frio da minha insuficiência
da minha incapacidade
da minha eterna impossibilidade de ser lugar onde o sol pára para tocar. 

toco-me na água 
na verdade
para confirmar a minha condenação.  

28/11/2019

neVoa

deita-te a meu lado. vou dizer-te porque não importa se morro agora. 
deixa-te ficar um pouco. prometo que não me alongo na explicação de que tudo isto se resume a um lugar que tu não conheces. 
nada tem de mudar esta noite. nada tem de ficar diferente. 
é só ficares aqui um pouco mais e vou ser capaz de te mostrar, nas palavras e nos gestos, no fundo do meu olhar, porque é que não importa se partires amanhã quando o dia cair de debaixo da neblina do rio. 
por muito que te possa dizer tudo o que tenho para te dizer, não quero que chores. por favor não chores. não suporto ver-te sofrer. 
abraça-me na angústia das palavras que não me dizes e deixa-te repousar na estranha sensação que tenho quando te sinto a ficares sem ar por dentro da ausência que reside em ti. 

deita-te a meu lado. prometo que morro antes da manhã chegar. 

25/11/2019

I'll faut que tu peux comprendre ce je que je ne peux pas te dire avec des mots.
Ça c’est que je vais t’ aimer jusque a la fin, sans jamais te toucher.
Je sais que je t’aime en plus, pour cela. 
E je vais t‘aimer sans, jamais, avoir connue ton âme par dedans.
Et ça, ne pourra pas changer.

23/11/2019

trazes na ponta dos dedos os contornos do meu abismo. o desenho das minhas costas. as sombras do meu corpo. 
trazes nos contornos das mãos, a minha indelével obra.

quando olho para dentro do que há em ti, revejo-me nos passos que dás quando me deixas ficar só.
quando partes.
quando me abandonas.
mas é quando eu te abandono que reconheço os lugares certos de tudo. 

trago nos dedos o começo do teu deserto. o contorno da tua face. a luz da tua alma. 
trago nas mãos o tempo que tivemos junto ao mar e escrevo teu nome na areia. 
desenho-me no voo das asas de uma gaivota enquanto aguardo que o tempo chegue. 
de ficar.

ou de partir?

trago-te nas mãos de tinta que verto sobre a maré até desaparecer no voo das ondas. 

21/11/2019

saLida

desces as escadas. de pedra. as paredes, em torno, brancas. as escadas da cor de terra.
paras a meio do caminho. o peito a latejar. um som persistente por dentro a pedir que não pares. o corpo a consentir continuar.
o frio consome-te por dentro da pele. faz frio neste lugar. mas continuas. no sentido descendente. a aguardar que saibas o momento certo para sair por uma porta. 
intentas desafiar a intuição e cedes em cada patamar. anseias que algo te indique o caminho. 
portas fechadas. paredes fechadas. o corpo fechado. 
desces o frio do caminho. por dentro do que acontece em ti. em torno das paredes que te albergam. 
decides que não paras até encontrares o caminho. 

20/11/2019

é a náusea a começar por dentro. o peito a latejar. a boca seca. a dor...

toca-me. 
se puderes. 
toca-me.
se conseguires.
leva-me.
se tiveres força.

é a náusea a tomar posse de mim. por dentro. a apodrecer-me por dentro. a levar-me para dentro. a destruir-me.

conduz-me.
se souberes como.
salva-me.
se puderes.
sossega-me
se conseguires.

sinto por dentro o mundo inteiro a consumir-me. a apoderar-se de mim. a afogar-me. a escurecer-me mais. um pouco mais.

toca-me
se puderes.
salva-me
se conseguires
respira para dentro de mim
se souberes como. 

17/11/2019

PorTo

A incapacidade de dormir queda sobre a cidade como cacimba. As ruas humedecem com a dança da chuva e as pedras ficam mais escuras. 
As folhas nas árvores cinzentas projectam-se sobre o pavimento dos espaços por onde caminhas, como pétalas de flores esquecidas pelo tempo.
A cidade tem camélias por detrás dos muros antigos onde nascem e vivem memórias de outros passos. 
Há um aroma a saudade e a tempo. Tudo te sabe a vida e sentimento.
Atravessas as ruas despidas sobre o frio que vem com o fim de Novembro e não sabes, ao certo, para onde te diriges. Talvez norte. Talvez sul. Talvez apenas a possibilidade de ir seja tudo o que te basta neste preciso momento.

A cidade adormece, inteira, em teus braços, assim que a noite chega. 

14/11/2019

segura-me na ponta da língua. 
despe-me, até não ficar nada sobre a pele. 
ama-me como se amanhã não pudesse existir e não houvesse mais nada em que fosse possível crer.
toca-me como se o mundo inteiro parasse por dentro das tuas mãos. 
acolhe-me até eu ficar sossegado. 
abraça-me até ao fim da noite inteira. 
ama-me até não ficar nada por dizer. 
canta-me enquanto houver música por dentro de ti. 
vaza-me de tudo o que não importa, até a esperança ficar a dançar de frente para nós. 
guarda-me no silêncio sagrado que existe na tua voz até meu abismo não ser mais do que um grão de areia na praia que é teu corpo. 
cobre-me com o manto de água que é tua liberdade até eu ser mais do que chuva. 
ama-me enquanto eu me desfaço dos segredos e me separo do peso que insisto em carregar pelas estradas que me levam até ti. 
segura-me na boca. 
despe-me nas mãos. 
ama o que resta de mim enquanto eu posso. 
se eu soubesse, teria ido mais longe
se eu soubesse, teria chegado mais fundo
se eu soubesse, teria sido mais longe
se eu soubesse, teria sido mais fundo
se eu soubesse, teria tentado mais,
sido mais, 
querido mais, 
lutado mais. 
se eu tivesse sabido, 



teria sido tudo diferente. 

11/11/2019

CarCerEm

Tenta compreender...
se eu sair, vai ser insuportável voltar. Estou fechado há tanto tempo que quase esqueci a vida que havia lá fora, quando eu era livre. Compreendes?
Se eu sair, mas tiver de voltar, vai ser absolutamente insuportável.
Compreendes agora?

MarGe

o teu lugar não guarda espaço para o lugar de mim.
tuas mãos atravessam meus cabelos como se eu não existisse.
teu olhar evita o meu como se eu carregasse o inferno inteiro dentro do peito. 






respiro debaixo de água para segurar a ânsia de te abandonar no leito do rio. 

MaTer

Desapareces, aos fragmentos, de cada vez que o vento sopra de nortada. 
O vento invadiu a praia, teu corpo, tua essência. 
Também chove por dentro de ti. Sempre choveu. Uma tempestade incessante que nunca te deu tréguas. Que nunca te trouxe paz. 
Olhas, com o olhar vazo, o mundo que te consome. Tudo voa nas asas do vento. 
Hesitas no passo. 
Transportas o peso inteiro do mundo preso, agrilhoado em ti, imutável. 
Por mais que tenhas - antes da nortada chegar - tentado fugir deste lugar, não te foi possível. 
Não tem importância agora.
Vou tentar seguir-te neste caminho à sombra do vento que vem do norte, até chegar o momento certo de voarmos com o resto.  

04/11/2019

hiEr

deita-te sobre meu corpo. 
serei teu leito. 
adormece nas minhas costas. 
serei teu sonho.
respira na minha pele. 
serei teu ar.
navega-me na alma. 
serei teu leme.
despe-te nos meus olhos. 
serei teu corpo.
silencia-te. 
serei tua voz.
viaja sem medo de não regressar.
serei teu mapa.
vem.
serei tua confirmação. 




01/11/2019

esperei que os caminhos se encontrassem no final da viagem.
entendi que não importava o quão depressa se vai porque, na realidade, é a vontade de ir que conta.
tudo se move do lado de fora da noite. danças até esqueceres que existes. gritas até emudecer. desfazes-te no vidro até deixares de ser.

31/10/2019

KeeV

a dor escurece tudo o que está por dentro do mundo de ti. 
dilacera. 
devasta. 
comprime.
aniquila.
revela o momento em que se te abre nas mãos, se deita - áspera e gélida - sobre as mesmas, e te conduz numa dança 
insane
incessante
interminável.
leva-te sobre estilhaços de vidro que te dá a beber, que coloca sobre tua pele em gestos lânguidos, sobre os quais te arrasta nos pés descalços.
transporta-te até ao olhar vazio que se guarda na verdadeira desesperança. 
desafia-te. 
angustia-te. 
dilacera-te. 
abraça-te por dentro até que cesses de querer continuar a abrir os olhos. 
deixa-te a um passo do abismo e aí, nesse preciso momento, abandona-te. 
abres os olhos, recuas, regressas até ti para logo ela te segurar de novo, arrastando-te até ao lugar mais vazio de ti.
dança sobre o teu corpo. até que quedes. 
porque é que continuas a cair?
fala-te ao ouvido coisas que recusas escutar. já não recuperas as palavras - as tuas. ela silencia-te enquanto te dança na voz. deixa-te longe de ti.
sentes o corpo a abandonar-te e a entregar-se à dança ébria. e tudo escurece em ti. 
para não te perderes, para que ela não te leve a alma na dança incessante do corpo ébrio e delirante que desespera na insaciabilidade fera da crueza da sua essência, imaginas-te a caminhar nas areias de Masada.
resistes
persistes
insistes
até que deixe de haver vidros, até que deixe de haver dança, até que deixe de haver escuridão. 
até que suas mãos deixem o teu corpo e retomes a respirar.
até que teu corpo serene no teu próprio abraço.


até que ela regresse.

30/10/2019

fOliUm

Começo pelo fim e, no fim, vou dizer-te que não te direi mais nada. 


Vou esperar que o outono termine e, consigo, todas as folhas quedem. Vou acabar por me reduzir às cores que vêm com o céu do inverno e desfazer-me na terra.
No fim, vou dizer-te que já não há mais folhas no lugar que eras em mim e que tudo permanece despido, simplesmente a aguardar o regresso de ti. 


No caminho, digo-te tanto quando te digo sem te chegar a dizer quase nada. Temo que me leias nos intervalos do silêncio que se faz em nós quando chegamos perto dos limites que nos impomos. 
Todas as palavras que coloco nas folhas, guardam o significado que lhes entrego e o que tu lhes dás. Palavras escritas nas folhas que quedam sobre a terra molhada pelas chuvas que anunciam a necessidade imperiosa do recolhimento. Palavras escritas nas folhas que escurecem sob o sol que se despede dos dias que terminam antes de o queremos. Palavras escritas nas folhas que se transformam em si mesmas para poderem renascer. 


Digo-te quase nada para não te dizer tudo. 


Perco-te nas folhas quando me confundes na incerteza do que vês em mim e de que esperas de minhas mãos. Toco-te em segredo, em silêncio, e guardo tua mão sobre a minha face no lugar onde se guardam as coisas sagradas. 
Abro os olhos e reconheço que, na verdade, tu não estás no lugar onde eu quedei, onde os significados se deixam cair com as folhas. 


Encontro-te numa encruzilhada. Não tenho vontade para avançar porque o tempo me trouxe insegurança e meus passos são cada vez mais lentos. Olho-te nos olhos e ouço-te na voz com que cantas, toda a noite, e sei-te tão perto dos anjos, tão longe de um qualquer lugar de mim que possa chegar até aí. 
Talvez, na verdade, sejas apenas uma doce e mágica ilusão com que minhas palavras dançam. Talvez tudo o que acontece na poesia de ti que me toca por dentro , não seja mais do que folhas que quedam por dentro do outono que subsiste em mim, e se  possam reencontrar na possibilidade divina de recomeçar.


Vou dizer-te que não te direi mais nada até que as folhas de outono terminem de cair por dentro de mim.

kArMan

há uma linha invisivel que separa terra e ar, espaço e matéria.
uma linha que define o espaço invisivel que se coloca entre o ser e o ter sido.
a linha que só existe porque reconhecemos a necessidade de impor o limite. de ser o limite. de viver no limite.
se não houvesse uma linha a separar espirito e matéria, que seriamos nós?
que restaria de nós?
se eu não estivesse do lado da terra e tu do lado do ar, onde estaríamos nós agora?

20/10/2019

sMokE

Exalo o fumo de um cigarro.
Faz noite aqui dentro. Debaixo das cinzas. Por entre a chuva. 
Toco nas mãos da janela - fria - para me saber. Pés descalços na pedra branca. Corpo despido na tela vazia. 
Inalo o ar da noite inteira. 
Fecho os olhos por um momento breve. Fecho as mãos sobre os lábios. Remeto tudo ao lugar certo. 
Consigo tocar o que fica dentro da certeza do silêncio. Enquanto me reencontro. Enquanto me sonho. 
Respiro até que a noite se desfaça em fumo. 

vIagEm

"há viagens que muito gostaríamos de fazer e que, apesar de tantos planos, não acontecem"
há lugares que tanto precisávamos de saber e que, apesar da vontade, não chegam ao lugar certo
há certezas que se desvanecem na dúvida, quando o tempo se alonga na demora
há verdades que se cristalizam por dentro das rochas quando, sem querer, nos revemos numa qualquer ilusão 
há esperas que terminam precisamente no momento exacto em que se chega a um outro lugar 
há voos que se prolongam no ar até que os lugares se transformem e a luz que vem com o cair do sol conduza as andorinhas de volta a casa
há viagens que terminam sem sequer terem começado 
há, simplesmente, viagens que não podem acontecer. 

15/10/2019

atracas o barco na doca.
resgatas a intensidade do mar nos olhos fechados sobre a tarde que arrefece.
esperas que a noite comece para te deitares no chão de madeira. até sentires o corpo a ceder. até não ouvires mais do que o silêncio que guardas nas mãos fechadas.

                                                                       a lua sorri, hoje, para quem a souber olhar

13/10/2019

ruNNing oUt oF tiMe

o tempo é uma linha fina. ainda assim, não a conseguimos transpor. 
olhas para mim enquanto eu olho para o vazio e vês o que não vejo quando me fecho por dentro de ti. 
o tempo é uma lâmina fina. rasga-te na pele e na carne quando o tentas atravessar. ainda que andes para trás ou que tentes chegar antes, o tempo desce sobre teu peito a sua lâmina fria e tens de parar. 
olho para ti quando olhas para mim e é nos teus olhos que vejo o tempo a ceder. 
neste preciso momento em que a chuva (quase) queda sobre a tua angústia, sobre o meu silêncio, percebemos, sem ser preciso dizer uma única palavra, que ficámos sem tempo.  

09/10/2019

aTa

és janela por onde se vê um mundo que tantas vezes parece ter deixado de poder existir.
poeta caminhante na vida dos outros que se (quase) perdem.

mãos que seguram a terra e a tristeza como gotas de água e a transformam em barro
e o barro em vida
e a vida em recomeço.

és porta por onde se pode entrar e chegar ao lugar mais próximo de onde o sol se deita
de onde a luz  repousa
onde o abraço serena.

és voz que entoa nas angústias e as dissolve em jasmim.
água que transforma o deserto em possibilidade.
tempo que se transforma em vida.

és eternidade em obra feita,
palavra que resgata marinheiros da beira das escarpas, 
navio que transporta passos, quedas, risos, ilusões, o cansaço ou a efemeridade, e devolve tudo na certeza da possibilidade do milagre.

és anjo que caminha a arder por dentro do homem, 
sem cessar,
até que te encontres na janela por onde se vê todo o mundo que és. 


07/10/2019

siLênciO

pego nas tuas palavras e coloco-as sobre os meus lábios fechados.

30/09/2019

ImA

Vejo-te a olhar o vazio enquanto contas os passos.
um.
dois.
três. 
Paras. Olhas em redor de ti.  Não sabes onde estás. 
quatro.
cinco.
Procuras por entre os transeuntes um qualquer rosto conhecido. Parado no tempo.
seis.
sete.
oito.
Recuas.
sete.
seis.
cinco.
Recomeças.
seis.
sete.
oito.
Escutas o que as vozes te trazem guardadas por dentro do vento. Paras. Voltas a parar.
oito.
O corpo deixa de te responder.
oito. 
Reconheces a tua imobilidade. Não reconheces mais nada nem ninguém. Só tu, inteira e absolutamente encerrado por dentro de ti. 
oito.
Tentas de novo. Um passo para a frente.
nov...
Recuas. 
Encaras o vazio. 
oito. 
sete.
seis.
cinco.
quatro.
três.
dois.
um. 
Nada mais. 

yEaRn

perdoa não ter conseguido chegar até ti. doem-me as mãos. os dedos. dói-me por dentro em lugares que já não recordava puderem existir. dói-me ser eu em mim mesmo e ser isto inteiro que se revela tão intensamente em ti. doí-me ser o que fica aquém do que podia ter sido. perdoa mas não consigo querer mais. 

hiAto

Lembro o momento exacto em que me tocaste pela primeira vez. Lembro-me a que cheirava o ar
 - a sândalo e a jasmim - 
a que sabia a chuva 
- a deserto e a infinitude - 
o que me dançava na pele 
- mar e asas. 
Lembro de tudo como se estivesse a suceder neste momento exacto em que respiro. A mesma dor no peito. O mesmo espaço entre as palavras. O mesmo hiato entre mim e o que realmente estava acontecer em nós. 

27/09/2019

anGel

é quando a luz começa a cair, no fim do dia, que me chega a memória de ti

como se tu fosses a própria luz
como se a essência de ti repousasse nos traços doirados dos restos do sol caídos sobre estes lugares que magicamente encontro
como se tivesses sido desenhado por D em tinta de oiro

caMinhO

Não adianta. Não há nenhuma asa de gaivota que te possa levar para mais longe. Não se pode fugir do destino que nos foi traçado no dia em que nos cruzámos com o mundo. 
É inevitável que tentes correr. Sentes a perna presa, a dor a recordar-te a incapacidade, os ossos a ruir, o cansaço a chorar a pele. A impossibilidade da fuga reflectida na incapacidade que te reside no corpo. 
Tens a alma aprisionada há demasiados anos. Evitas olhá-la de frente, encarar o que de mais simples e real está de frente para ti. Evitas. Ignoras. Crês que é uma bênção ignorares até que ela te esmaga de frente, olhando-te nos olhos. Pele contra pele. Beija-te a testa. Segura-te as mãos e depois dilacera-te. Desfaz-te na pele até sangrares por dentro. Até não seres nada mais para além do sangue a correr como a chuva do inverno. 
Persegues-te na tua própria sombra. Finges que percorres sonhos e vontades mas não sais do mesmo lugar. Iludes-te a sentir-te grande por dentro, assente no orgulho que te faz crescer só, mas não desarmas na vontade do innuendo. Mascaras a face e o corpo na idealização de uma construção onírica em que, quando te convenceres a ver de verdade, só encontrarás pó de cinza.
És feito de nuvens densas que descem sobre a praia emudecida. Não há nada para além do silêncio mesmo depois das marés, mesmo depois das vozes, mesmo depois dos gritos das gaivotas. 
Não adianta.
Ainda não te cumpriste. 

24/09/2019

"(...) O homem é um pássaro sem asas  -dissera-lhes Iskander -, e um pássaro é um homem sem mágoas (...)"

"Pássaros sem asas"
Louis de Bernières
2009
Editora Asa

pASsé

O passado dança sobre a pele como se a vida não tivesse, nunca, a possibilidade do fim. Enquanto caminhas por sobre a terra árida que este lugar se tornou, evitas tropeçar nas asperezas de teus arrependimentos. Tacteias, com os pés descalços, as inseguranças que te trouxeram até aqui e seguras, de cara erguida, as certezas que te completaram. O passado está vivo dentro desta casa que morre devagar. Em cada divisão, em cada fragmento de madeira, de vidro ou chão, há resquícios de ti, do que foi a tua vida, do que te trouxe até aqui. Há um odor consistente a livros velhos, linho rasgado e almas antigas. Sente-se, em cada espaço, força e maldade, amor e guerra, paixão e desesperança. Caminhas de frente para ti, na aridez de seres tudo o que és e de seres ainda tanto por ser e tão pouco que és, aqui, neste exacto momento. 

chove dentro de mim

chove na areia e chove dentro de mim.
o mar serena na brisa fria que acaricia o começo do outono. 
arrisco a olhar para trás, para o passado, para tentar perceber o agora em que me vejo
consigo sentir o odor que emana do húmus que cobre tudo o que enterrei na terra húmida.
serenamente imagino-me a caminhar sobre o lodo, sobre as folhas caídas.  
terei eu chegado antes do outono?
terei eu caído antes do prenúncio da folhagem dos freixos e das acácias?
passa um gaivota a rasgar o ar a anunciar a retirada breve do sol.
sinto a espuma de sal que chega até à nudez de meus pés e respiro tão fundo quanto me é possível.
a chuva queda mansa, abraçando-me no infortúnio que reside dentro da minha alma .
olho de frente a linha que me separa do que foi e questiono onde irei a seguir.


chove dentro de mim.


19/09/2019

ahava

a vida urge. o tempo foge. o amor acontece. a tragédia sucede. a agonia aperta. a alma instala-se. a saudade perturba. a angústia persiste. o corpo envelhece. a voz enfraquece. a certeza desperta. a crença segura. a verdade transforma. o reflexo enegrece. a vontade aniquila. a suspensão devora. a vida urge. o tempo voa. a alma envelhece. o corpo transforma-se. o amor foge. a vaidade aperta. o tempo devassa. o amor permanece. a verdade segura. o amor. 

12/09/2019

reveLation

Procuro por ti no odor da minha pele quente.
Preciso ver-te para te saber no tempo.
Construo uma ideia de ti emersa no desejo que cresce em mim.
Idealizo, imagino-te feito de azul e de luar
de mar e de sol
de frio e de lava. 
Imagino-te sobre minha pele com a intensidade com que a tinta acaricia esta folha de papel
eu folha, tu tinta
eu pauta, tu melodia.

Sento-me na aresta da pedra a escutar teu nome nas asas do vento.
Procuro por ti no limiar do tempo até me desfazer no segredo que se revela em mim.

fEveR

a febre despe-me de frente ao espelho.
a casa está escura. não há nenhuma luz que possa entrar aqui, agora, neste preciso momento em que olho - sem ver - meu corpo desnudado.
não me reconheço. não me encontro na imagem que se reflecte na escuridão. 
a febre alivia-me o devaneio enquanto me tento segurar.
tenho os dedos emagrecidos na pele envelhecida a acariciar a parede fria.

sabes que faz frio quando está escuro?

dispo-me de frente para mim e, em delírio, encontro a certeza de ti no meu abraço. 

começo sem ti. 
a verdade é que não chego longe. 
é mais fácil dizer sem dizer. ficar em silêncio. remeter tudo para a indiferença. evitar. anular. não olhar.

se olhar para ti agora estou seguro que me perco. de verdade, me entrego sem questionar rigorosamente nada. 
começo sem ti. 
se não vieres, a verdade é que eu não vou chegar até mim. 

27/08/2019

és sede em mim,
não desejo
porque com desejo a alma sobrevive
com a sede,
não. 

tHunder

sabes bem que não há como regressar.
troveja sobre a ponte. é como se o céu se rasgasse em agonia. 
raios de luz que rasgam a noite como se fosse a carne do corpo, como se fosse o reflexo de tu' alma, como se fosse o lugar que se reserva ao que já não é. 
anuncia-se uma tempestade aqui enquanto mundo inteiro arde. 
será que o que vai sobrar de aqui é apenas sangue e cinzas?
apenas aço e carvão?
apenas lágrimas em rasgos impossíveis de luz que desfazem o negrume desta noite quente?
sabes bem que já não há como regressar ao que já não é. 
partimos em busca do mundo olvidando a tempestade que estava a crescer no interior de nós.
seguimos em busca de um sentido sem assegurar se sabíamos exactamente onde nos encontrávamos. 
emanámos da lama em perfeito desnorte sempre na demanda de um norte que se desvelasse no caminho que nos arriscámos a tactear.
perdoa-me. 
estou a arder com o resto do mundo. 
será que vai sobrar apenas cinzas do que restava da luz que havia em mim?
sabes bem que não há como regressar.

steLLa

Pego nos espaços vazios que ocupam a solidão de ser eu. Coloco-os uns sobre os outros até que não reste nenhum. Peça perante peça. Como se conjugasse um jardim labiríntico em que me pudesse perder do mundo. 
Pego na solidão que me ocupa no vazio e sigo num caminho emerso em estrelas. Neste manto negro que me cobre, só eu vejo tudo o que brilha. Pontos de luz que anunciam o fim e o recomeço, o limite e margem, o estar e a queda.
Pego no que resta da minha existência e ocupo todos os espaços com a luz que emerge de cada ponto estelar no manto interminável do céu que me toca nos cabelos. 

21/08/2019

percorro os corredores que parecem nao poder terminar. paredes brancas. o chão frio de pedra branca. portas que se abrem mas não revelam nenhum destino. janelas fechadas no ar que se pesa nas sombras. paredes brancas a tocar no chão frio. portas fechadas que não sabem o lugar que guardam. como se nunca tivessem sabido o lugar que guardam. faz frio por dentro destas paredes mas é o corpo que gela. as sombras arrefecem o caminho por entre o que chega e o  que desaparece. faz frio aqui enquanto o suor escorre nas palmas das mãos brancas. vultos parecem passar por entre os espaços que nao findam e que se fundem nas memórias das coisas idas e das pontes submersas. faz frio enquanto a febre ensandece o corpo e tudo parece ter um outro sentido que estas portas já não revelam. guarda-se o tempo por entre as sombras pacificadoras que escondem a dor de quem aqui se entregou. faz frio enquanto arde uma lareira e o fogo transforma as sombras em cinzas e em segredos.
fico suspenso na possibilidade de um amanhã.
a verdade é que as manhãs estão submersas no nevoeiro que se abateu sobre a praia vazia.
pensei que te poderia encontrar se fechasse os olhos de novo. pensei que estarias deitada na linha do horizonte a aguardar por mim.
fico emerso na irrevogável certeza de que não voltas. que mesmo que amanhã chegue até este deserto que me vai aniquilando na medida certa da minha incapacidade, tu não vais estar.
pensei que te encontraria no lugar em que me encontro agora.
mas tu já não estás. 

19/08/2019

ciElo

há uma distância intransponível que vai de ti até mim. 
somos duas partes de um mesmo lugar que se divide em si mesmo em opostos absolutamente díspares.
somos duas linhas paralelas que seguem mas que não se encontram em ponto algum, mesmo tocando na infinitude de tudo o que é. de tudo o que se pode sentir. 
sou um lugar de heresia em que me desfaço em cinzas e de onde renasço sempre cada vez mais longe de ti.
és um lugar reservado às coisas mais sagradas na distância do qual eu jamais poderei chegar. 

ChiaMatA

Derramei-me na ponta da madeira velha. Foi depois da noite que começou. Tudo a acontecer por dentro do meu pensamento. O mar a embater na ravina. O vento a enfurecer o mar. A ravina a descer de encontro ao inferno que arde por dentro de mim. 
Vazei-me na aresta de um copo cheio. 
Dancei nas lágrimas da noite que passou pelo meu corpo sem me dizer sequer o nome. 
Não ouvi o meu nome. Chamaste por mim?
Sinto a madeira a abraçar-me no corpo. Detém-se. Contém-me. Amarra-me nas mãos, nos pés, no peito, enquanto o delírio me consome, me desfaz em chamas, me leva a embater contra a ravina, me sopra no vento ao ouvido um nome. 
Chamaste por mim?
Não ouvi meu nome.
Ouço a madeira cantar-me a noite ao ouvido. Até que a manhã me traga de volta ao mar de mim. 

14/08

A verdade é o lugar mais ambivalente de nós.
O mais doce e o mais amargo.
O mais simples de todos porém o mais complexo.
O mais definitivamente leve e inteiramente denso. 
Macio em toda a sua superfície mas áspero quando toca na pele.
Mágico e hediondo.
Perfeito e caótico.
Cheio de paz e repleto de angústia.
Perfeitamente imperfeito e irrevogavelmente perfeito.
A verdade é o lugar onde os encontramos mais despidos e mais cobertos. 
A planar e soterrados.
Junto de outros e igualmente sós.
A verdade é o lugar mais belo de toda a fealdade. 
O lado mais difícil de toda a nossa existência. 

07/08/2019

rEbElo

Estou a morrer, sabes? 
Ainda no outro dia toquei na morte. Segurei-lhe a pele da face com as minhas duas mãos. Toquei-a na ponta dos dedos, no âmago da alma. Senti tudo o que vivi na vida. Naquele momento a minha vida ficou imensamente grande num tempo imensamente insuficiente. Naqueles breves segundos  olhei-a de frente para me ver. A mim. Inteiramente a mim. Sem qualquer dúvida, sem qualquer anseio. 
Senti-me triste, sabes? Infinitamente triste. 
Pensei que fosse mais fácil partir. A verdade é que sinto que meu corpo me trai, me abandona, me encerra. 
A verdade e que me dói respirar, me dói não poder falar, me angustia que tu não me entendas. Queria poder explicar-te tudo, sabes? Dizer-te hoje que não entendo porque me sinto no limite do cansaço. 
Não precisas dizer que vai correr tudo bem, não precisas de dizer que tenho de parar de tentar dizer-te tudo. A verdade é que eu não quero parar, entendes? Não quero desistir. Estou assim, tão desoladamente triste porque o meu corpo se está a despedir de mim e está a levar-me aos poucos.
Sinto a minha mente a abandonar-me também. Compreendes como isto é uma traição? 
Consegues ver como tudo isto e uma injustiça? Não quero que consideres que não é justo eu morrer porque o é. É justo para todos nós. Nascer, viver, morrer. E eu tive a bênção de nascer, o prazer de viver e reservo-me no direito devido de morrer. 
Só queria que pudesse partir inteiro dentro de mim, sabes? Que tivesse as ideias no lugar certo, as mãos na dimensão certa, a alma na serenidade certa Consegues ver como já nada disso acontece em mim?
Queria dizer-te tudo isto e não posso. Meu corpo está a abandonar-me na alma e eu já não te consigo dizer nada. Nem pela voz nem pela tinta. 
Peço-te que fiques. Que não me deixes ficar só. Ninguém deve morrer a sentir-se só, sabes? 
Perdoa-me se te peço tanto. 
Queria partir comigo inteiro dentro de mim. Mas vou partir em fragmentos de mim. Pequenas partes que vão indo até que eu termine.
Preciso que fiques aqui para confirmares que todas as partes de mim me acompanham, compreendes?

06/08/2019

vAle

olha para mim.                                  sou o reflexo da tua sede.
repete as palavras da tua oração.   em voz alta.                      até que eu ouça.
canta para mim.              contra o vento que ecoa no primeiro rasgo da manhã.
diz-me tudo o que guardas por dentro da tua condescendência. até que eu entenda. 
senta-te no lugar onde começa o fim da noite.  sou o que resta da tua certeza.  
olha para mim. sou o reflexo da noite que amanhece na tua prece.
           

04/08/2019

auReo

Estou preso dentro do meu corpo. Não me consigo mover. De cada vez que me enfrento, perco. Cada luta que travo, por dentro, comigo aflito por dentro da minha pele, comigo perdido por dentro da minha ilusão, comigo escondido por dentro da minha solidão. Estou parado dentro de mim. Sinto o sangue a correr, a pele a respirar, a angústia a permanecer. Dói-me no peito e nos olhos a certeza incerta que tenho de mim. Receio partir. Temo cair num lugar de onde não consiga voltar. Esqueço-me das palavras, dos gestos, das vozes, das certezas. Esqueço-me de tudo quando a dor me ocupa por inteiro enquanto grito sem que ninguém me consiga ouvir. As paredes, aqui, nesta sala, demasiado brancas, demasiado frias, eternamente desprovidas de vida. Não me reconheço neste corpo que me aprisiona, nesta voz que me silencia de cada vez que tento cantar, nestas mãos que não tocam se não em ar e pó das paredes que ficam quando o dia termina. Pergunto como posso continuar quando tudo me impele à queda. Como vencer o cansaço que me devasta de cada vez que tento respirar. Estou infinitamente preso dentro de mim a ver-me partir. 

LinHa

Comecei pelas linhas. Desci pelas letras até encontrar o poema. 
No poema tacteei as letras que perfazem teu nome. 
Pedi ao silêncio que te levasse ao princípio da linha. Segredei-lhe que o princípio da linha poderia ser a possibilidade do recomeço. Sussurrei-lhe que a possibilidade do recomeço poderia ser o meu princípio. 

Comecei pelas linhas mas terminei aqui. 

VeriTas

Estou despojado de fé. 

Tuas palavras seguram-me na face, prendem-me na vida.
Teu silêncio é como uma noite inteira que me beija na testa.
 Tua fé é tudo o que resta em mim quando tua voz me toca nas mãos.  

LeMe

Tua voz navega-me por dentro. 
Rasga-me do peito a certeza e, lentamente, retira e repõe fragmentos da minha inabilidade de ser mais para além de maré vaza. 
Navega-me por dentro como um barco sem leme, sem vela, sem mar, somente ao dispor do vento.
Sobe e desce na corrente que se ausenta de cada vez que tento tocar no tempo que se me esvai por entre os dedos magros da perfeita insanidade que me habita de perto.
Desce definitivamente na vertigem do abandono da terra em que fui teu porto, em que tu foste areia, em que fomos quase ilha.
Um barco que navega sem leme não tem lugar onde atracar. Não tem tempo para se encontrar. Não reconhece a madeira que o (des)faz. 
Tua voz é um lugar sem âncora numa maré irremediavelmente vazia.

Procurei por tudo o que escrevi na chuva da noite em que partiste. 





Não me encontrei em palavra alguma. 

29/07/2019

NamiB

Faz tempo que te não escrevo. 
Não que não haja sempre coisas por dizer. Não que me esqueça de ti. Não que me deixe perder no tempo que passa por mim. 
A verdade é que te não escrevo porque me assola a falta de ti. Porque meu caminho deixou de ser quando partiste e a verdade é que não me voltei a segurar. Agarro-me ao que podia ter sido diferente se ainda aqui estivesses. Como eu teria sido diferente. Como o lugar onde estou seria, tão provavelmente, um qualquer outro diferente. 
Faz tempo que te não escrevo porque me evito. Porque me cansei de estar aqui e não sei bem para onde seguir agora. 
Procuro por ti nas memórias que são cada vez mais ténues,cada vez mais difíceis, até dar por mim numa espécie de deserto, no namib, num lugar onde não há nada mas onde sei pode estar tudo. 
São já 18 os anos que conto aqui, em que tu estás já sem estares, e onde te sei para me evitar.
Faz tempo que me não escrevo.

25/04/2019

saPere

Estou a viver na aresta do tempo. Revejo-me nas partículas de pó. Encontro-me nos resquícios das folhas que se despedem do inverno. Sossego-me no aroma das flores que acordam nos amores das manhãs de março. 

Sei exactamente quem sou e depois disso sei absolutamente mais nada. 


diFerE

podia ter sido diferente
se minha travessia do deserto 
se tivesse transformado 
em mar
se teu mar
tivesse sido um pouco de 
duna.

podia ter sido um lugar 
diferente este
em que nos 
(des)encontrámos.



pAlaVra

Começo a tocar o vento com as palavras que leio nas tuas mãos. Respiro no silêncio com que tua pele me cobre e fecho os olhos sob o manto frio da madrugada. Existo para te saber. Respiro apenas para te sentir. Sou tudo o que resta da tua confirmação. 

Começo a tocar as palavras que o vento leva e que o tempo traz de volta aqui. Cada linha um recomeço. Cada letra uma certeza. Cada frase a essência da tua serenidade. 

Começo a tocar-te nos dedos até que todas as palavras sejam apenas tinta no silêncio que nos cobre. 

02/04/2019

mAlaCh

toco nas margens deste rio como se te tocasse nas asas. 
repito teu nome em silêncio. em segredo. para que ninguém possa, jamais, 
saber por onde espero. 
sinto a ponta de minhas asas já queimadas do fogo de ter já sido. 
poderei voltar a voar?
toco-te nas margens de ti até saber o rio. 
meço a distância que separa a terra e a água, 
água e horizonte,
    horizonte e eteriedade. 
sinto meu corpo abandonar o lugar e ser apenas tempo.
caminho a arrastar as asas cansadas mas não desisto de seguir. 
em frente. 
em direcção de ti. 
seguindo na linha que me separa do horizonte de ser o que está para além 
de mim. 
toco-te nas asas.
é aí que reconheço a margem certa do rio que desagua 
em mim.  

susPenso

Estou suspenso num pilar de ferro. Mãos a segurarem os cabos de aço que unem este ponto, que nos separam da queda.
Pés descalços a calcar o ar que ciranda por entre o frio do fim do inverno.
Estou suspenso em finos fios de aço que me atravessam por dentro e me seguram ao começo de mim. 
Ar e água. Por debaixo da minha nudez, só ar e água no vento frio do princípio da noite.
Seguram-me nas palavras que ouvi antes de chegar até este lugar, até este tempo que se encerrou por dentro do meu corpo. Como se estivesse parado. Como se a ambiguidade me tivesse rasgado a pele em duas partes. Uma mão a segurar no aço. Outra mão suspensa no vazio.
Que lado se escolhe?

20/03/2019

esPera

fico à espera embora não reconheça o que espero. a verdade é que não sou merecedor do que esperava que um dia pudesse chegar ao encontro de mim. 
não sou merecedor da tua misericórdia. da tua benevolência. da tua mestria. 
estou à espera de saber o que espero e não espero nada que possa ser enquanto esperar for apenas o que faço para ignorar tudo o que ficou por saber. 
espero para mais nada ter de esperar. para me iludir que não poderia ter feito mais. sido mais. construído mais. 
sei que não mereço nada do que espero e ainda assim mergulho de olhos abertos nas águas negras da minha devassidão a aguardar poder chegar a um qualquer porto. a aguardar atracar em lugar seguro. a aguardar ser o que fiquei por ser. 
não te mereço. nada do que podias ter guardado para mim, eu mereço. 
fico à espera. já não tenho muito mais tempo para absolutamente mais nada por isso escolho ficar a aguardar que o deserto termine. que as minhas chagas sequem por dentro. que minha alma se redima no silêncio secreto que existe por dentro de uma solidão consentida. 
aguardo até merecer chegar até mim. 

18/03/2019

lAbyrinThe

Não me apetece mover. 
Respiro com dificuldade. 
Esforço-me por manter os olhos abertos e o sangue a correr. Esforço-me até não poder mais. 
Contrario o movimento inteiro que a vida impõe sobre mim. 
Procuro escapar ao labirinto da minha essência para me transformar. Recomeçar. 
Falho. Repetidamente. Falho.
Arrasto a alma agrilhoada por entre uma existência que não compreendo. Arrasto-me no limiar das arestas até desfazer o corpo na certeza do abismo que me espera de seguida. Recomeço. 
Afogo-me em dúvidas para as quais tardo a encontrar respostas. 
Perco-me no caminho dos caminhos que me conduzem sempre ao ruído ensurdecedor do silêncio. 
Temo terminar sem ter chegado verdadeiramente, a ser. 

17/03/2019

doLore

A dor carrega-me em braços até ao fim da noite. Lancinante.  Dilacerante. A transportar toda a minha existência prévia em pó de cinza enegrecido. Beija-me a testa, os olhos, a face, os lábios, sem pedir. Sem piedade. Sem pudor. Desnuda-me até não conseguir distinguir meu corpo deitado sob o frio do fim da noite. Inebria-me. Até eu esquecer quem fui. Ilude-me. Até eu não saber mais o lugar onde fui. Evade-me de mim até eu, absoluta e definitivamente, desaparecer de entre mim. 

30/01/2019

T

"Terra
  sem uma gota
  de céu"

Carlos de Oliveira, Trabalho Poético, I

24/01/2019

PP

"há uma saudade que não é saudade porque fica dentro de uma despedida que é boa para as partes que se despedem." 

iLusAo

Silêncio
faz noite aqui
enquanto os pássaros dormem na quietude melancólica da maresia.
Silêncio
enquanto se despem as máscaras e se despojam as armas.
Silêncio
enquanto a vigília se apodera do que resta da minha exaustão e não consigo ver o caminho de volta ao segredo que faz magia em mim.
Silêncio
enquanto atravesso a madrugada a desejar ser sono e a não ser nada mais do que ilusão.

SaveUr

Sinto o sabor da tua boca na minha angústia. O sal da tua saliva na minha chaga. A ternura dos teus lábios na minha fealdade. Sinto como tuas mãos me atravessam a pele e o sangue e os ossos e o corpo inteiro até se desfazerem no interior de mim. Sei como teu corpo se entrega ao meu como se tudo no resto do mundo parasse, por esses breves momentos, e nada mais importasse existir para além do que te acontece em mim. Vejo como o teu silêncio se torna grito quando danças de frente para mim. Como teu caminho se torna destino quando caminhas até aqui. Como tua tristeza se torna vida quando te permites respirar. Como tuas mãos me segredam certezas sem que pronuncies uma única palavra. Sinto o sabor de teu odor na minha pele até que o dia se desfaça. Sei que tudo o resto pára quando terminas aqui.   

wIre

Crescem arames por dentro de mim. Enlaçam-me as veias e a pele e prendem-me ao chão. 
Crescem farpas e lâminas e ferro que me dilacera por dentro até não sobrar mais nada.
Sou como o negro do alcatrão nas estradas antigas que o tempo mastiga sem piedade até que os caminhos se intrinquem e se confundam e se repitam e se dispersem até à aniquilação. 
Crescem em mim certezas que não me cabem por dentro e que se apoderam do meu destino e me retêm prisioneiro deste chão. 
Sou arame em farpas na minha alma e não poderei, jamais, sair deste lugar. 

03/01/2019

seGreDo

Sinto tuas mãos segredarem-me na pele a tristeza que há no lugar em que te perdes. 
A certeza incerta que reside na presença de quem está quase sempre absolutamente ausente. 
Os navios apartam do rio. Faz frio na madrugada que me impele ao recuo e me impede a queda.
Coloco-te no lugar solitário que se reserva indefinidamente à imperfeita perfeição do silêncio que morre por dentro dos segredos. 

cOMo DormEm os pOmbOs

sento-me numa aresta da noite para saber o frio inteiro. tenho despidos os pés e as mãos.
sento-me no princípio da noite. a olhar o espaço que vai de mim até ao lugar em que finda o mundo. 
curvo-me sobre mim mesmo a contemplar a imensidão do vazio que subsiste dentro de cada aproximação à plenitude.
é como se faltasse sempre algo mais. qualquer coisa mais. uma inquietante imperfeita e interminável insaciabilidade.

cubro a pele das costas com as asas cansadas. escuras. feitas de pó e de luz. feitas de tudo e de nada. dos princípios e das coisas que terminam. das causas e das consequências. das feridas e dos sorrisos. asas cansadas mais ainda vivas, a pulsar por dentro, a saberem tudo por dentro.

oiço o canto da noite e permaneço imóvel, a perscrutar o sono, a evitar a vigília, a escutar-me, com todo o meu corpo curvado sobre as asas inteiras, imóvel, com os pés despidos a tocarem o arame, imóvel, em suspenso, apenas sobre um fino fio de tempo, sem temer a queda aberta sobre a possibilidade permanente de um abismo incomensurável.

sento-me como se navegasse o rio agora. suspenso no frio da madrugada. a evitar tocar as asas.em segredo. em silêncio. absolutamente imóvel como um pombo, sobre os arames da vida, coberto em si mesmo. impenetrável. seguro. como se nada pudesse, em momento algum, desfazer a sua serenidade cansada sobre as asas escurecidas na noite. 

é como dormem os pombos. assim permaneço eu. suspenso sobre um fino fio de vida.