25/04/2011

caLçada

Os espaços são pequenos. Às vezes, as ruas não chegam para fazer passar tudo.
Vagueias, abandonado, pelas calçadas desfeitas desta Lisboa esquecida. Noite após noite, passas por aqui e por ali sem saberes bem para onde vais, mas a reconhecer os odores todos. Segues todas as ruas que vêm de onde estás até onde chegas e, por breves instantes, esqueces tudo o que não faz falta lembrar.
Passeias livremente agrilhoado à tua solidão. Sabes o que te espera. Conheces o retorno inteiro e deixaste de o conseguir temer.
Aceitas uma mão estranha sobre tua face envelhecida e fechas os olhos para saberes esse momento inteiro. Começas a medo e, de forma lenta e ponderada, deixas-te serenar.
Se pudesses, ficarias onde a mão que te toca te é segura. Mas não podes.
As ruas que te separam de onde estás até aqui, até este lugar exacto, são demasiado distantes.



19/04/2011













Retratos de Mulheres


"Fotografias de mulheres por três artistas distintos: Jorge Martins, Man Ray e Julião Sarmento. Até 30 de Abril na Fundação Arpad Szenes - Vieira da Silva, em Lisboa.
"The Fifty Faces of Juliet" é a série de retratos apresentada do norte-americano Man Ray (1890-1976), que foca a mulher do artista, Juliet Browner, fotografada entre 1941 e 1955.
Já Jorge Martins nunca pensou em mostrar fotografia, actividade que tem paralelamente à pintura. Nesta exposição revela " Eros cromático", um conjunto de 20 registos de modelo feminino, feitos em Paris, entre 1964 e 1073. Algumas das fotografias apresentadas foram realizadas no ateliê parisiense de Vieira da Silva.
Por fim, Julião Sarmento exibe 62 fotografias de 31 mulheres, realizadas ao longo de 42 anos. Um núcleo de imagens, sua maioria inéditas e realizadas entre os finais dos anos 60 e os dias de hoje, escolhidas pelo artista e pelo comissário Sérgio Mah.
S.Po. (PÚBLICO)"



exposição na fundação arpaz szenes - vieira da silva
vista domingo. ao sol. no jardim das amoreiras.
Não te consigo proteger. Não sei ser mais do que isto. E isto não chega. Vai ser sempre em espiral. Em queda.
Daqui até ao fim. Vai ser assim.
Não te posso proteger. Nem sequer te segurar nas mãos.
Remeto-me à sombra.
Sabes que aqui faz sempre sombra?

18/04/2011

this world looks something like this tonight

www.nasaimages.org

ecoar

Ela estava completamente nua quando entrou na sala. Trazia areia no cabelo. Trazia vidros nas mãos. Olhou para mim como se olham as coisas que não estão no sítio certo e perguntou o que eu ainda fazia ali.
Nem eu sabia. Estaria ainda ali? Quanto tempo teria passado desde que cheguei?
Lá fora ecoava o riso da tempestade que se abateu sobre a cidade. Sem aviso. Sem qualquer sinal. Que eu visse. Que tenha percebido. Assim como o que ela me dizia. Não consegui compreender e ela compreendeu que eu não havia compreendido nada e simplesmente virou as costas e saiu da sala. Não tive opção nenhuma para além de guardar as mãos no saco junto com o resto das coisas que achei que deviam, eventualmente, poder fazer falta. Guardei dois livros. Não sei quais. Era como se não tivessem capa, nem letras, palavra nenhuma, só as páginas amareladas. Penso que guardei o caderno, o relógio, as bolachas que ela tanto odeia. As chaves. E as mãos.
Olhei para o outro lado da sala para perceber se ela voltaria atrás e me diria algo que eu pudesse, realmente, entender. Mas não.
Nada.
A última imagem que poderia levar comigo era o seu cabelo cheio de areia despida. E a certeza de que o sabor do corpo dela desapareceria de mim e toda a sua dimensão se desvaneceria assim que eu tocasse a chuva.
Segurei o saco nas mãos guardadas e desci as escadas sem olhar para trás. É preciso saber deixar as coisas. Aprendi a saber deixar as coisas assim, em silêncio, no torpor da trovoada, nos corpos despidos, nos resquícios das páginas por escrever.
Desci a rua como se fizesse parte da chuva. Como se não houvesse mais nada, naquele momento e para todo o sempre, que não a certeza da chuva.

Passaram 5 anos. E o rosto dela de costas para mim ainda ecoa no trovão das minhas mãos guardadas em silêncio.

13/04/2011

rigoletto

entras e sais da noite de mim como se mais que uma sombra nos meus olhos não fosses e,
de todas as vezes que chegas,
eu sei que te vou deixar partir de imediato.
e é assim que tu e eu seremos sempre:
palavras por dizer na névoa do que nos
eternamente
separa.

06/04/2011

laranjeira

Perguntas porque é que as coisas nunca são fáceis.
Cheira a flores de laranjeira mesmo aqui à porta. Mesmo aqui, no coração da cidade coberto de fumo negro. Cheira a flores de laranjeira e as pétalas quedam no avançar das asas dos melros sedentos.
Começa a primavera e tudo se mantém pouco simples. Parece que as coisas na vida não podem ser simples para alguns de nós. Como se fosse importante passar cada dificuldade como se de um teste se tratasse, como se de uma demanda nos torneássemos. Como se não houvesse, definitivamente, nenhuma outra alternativa possível.
Houve um tempo em que esperei que te tornasses em algo que se parecesse com as asas de um pássaro vestido de negro. Houve dias e noites em que iludia os sonhos, os compassos de tempo, as melodias inventadas em silêncio, numa ilusão perfeita de que eu era, e podia ser, mais do que isto que efectivamente reconhecia ser. E não era. E nunca fui. E nunca cheguei a ser. Sabes que o odor das flores destas laranjeiras acaba tão rápido. Remete-me para a infância e logo me arranca a carne da cara e me atira contra o muro de cimento que construí, dia após dia, ao longo de todos estes anos.
As coisas não são fáceis. Não podiam ser fáceis. Para ti, que arrastas uma existência mascarada pela necessidade de conseguires ser aquilo que te não compete, nem pertence, ser. Não podias querer mais do que o que te foi destinado e ainda assim insistes em remeter tudo ao carnaval insano que acontece nas ruas da tua amargura. Se olhares para dentro com os olhos de quem sabe ver, encontras o ponto exacto em que as coisas deixaram de ser simples, deixaram de ser fáceis.
Aprendemos, tão cedo, a saber deixar partir. A assimilar a perda como apenas mais uma componente de nós. A aceitar a queda como uma necessidade inevitável. A sorrir perante o que se tornava adverso e nos atingia como uma tempestade em alto mar. Estamos sempre nas vagas do mar alto a enfrentar a chuva e o vento das coisas que acontecem em nós e que ninguém vê. Sei que sabes que ninguém, por mais perto que esteja, pode ver o que acontece em ti. O que acontece quando as pétalas da flor da laranjeira caem sobre as pedras frias da calçada, levadas por asas pequenas de abelhas atarefadas ou asas grandes de pardais e melros chilreantes.
Porque é que as coisas nunca são fáceis?
Porque hoje não temos direito a que as coisas sejam fáceis mas amanhã…amanhã, pode sempre haver a simplicidade do odor a flor de laranjeiras mesmo aqui, à porta de nós.