21/03/2010

estória III

III.

Já não suporto a maneira como olhas para mim. A julgar ver-me. A julgares saber-me. Sabes que fui e voltei sem ter voltado. Sei que as tuas mãos caídas neste balcão querem procurar as minhas mas eu não quero. Olhas-me como se eu estivesse chegado de dentro da chuva. Teu olhar parado no lugar que os meus pés ocupam neste chão imundo onde tantas vezes te vi cair. Se os meus dedos chegassem à tua pele como antes desta manhã ter começado…mas já não tens pele que eu saiba tocar. Sinto-me irritada. Desfazada. Fora de tempo. Enquanto entrava nesta sala já te sentia o cheiro e já te queria não encontrar apesar de ter a certeza – porque há coisas que se sabem por dentro sem se saber nunca como se sabem antes de se saberem realmente – que estarias mesmo ao balcão como a que não esperar que eu chegasse. É como se nos tivéssemos sempre encontrado no mesmo lugar…apenas a dois mundos de distância. Olhas para mim de forma verdadeiramente insuportável. Há anos que te digo isto e tu não consegues nunca. Às vezes preferia que cegasses. Sim, que cegasses para deixares de olhar para mim. Assim. Desta maneira sempre igual. Vejo-te sem te olhar de frente e encontro tudo o que resta da tua solidão. O lugar onde eu não cheguei a estar durante todos estes anos. Se te olhasse nos olhos veria tudo o que precisas de me perguntar. Apesar de saberes que te não responderia a nenhuma pergunta – ainda que gostasse que, pelo menos, voltasses a ter coragem de tentar – sei que te dilacera a necessidade de saberes. Disse-te que ia ao Alentejo. Que vou sempre lá. Sei que sabes que eu não tenho ninguém enquanto te disse que tenho uma família por ali, numa qualquer terra do sul, entre a seca e a sombra. Na verdade, se te olhasse agora, diria que te digo tudo o que espero conseguir acreditar. Mas fico em silêncio. Agora só as tuas mãos e as minhas neste balcão.

10/03/2010

estória I (cont.)

E o balcão encontrou todo o tacto das minhas mãos como se fosse uma memória vívida que assola quando menos se espera e não sabemos de onde vem e se nos pertence ou se somente sobrevém simplesmente por ela ter entrado na sala – trazias o cheiro a cidade; à hora de ponta e à transpiração do metro; a tua cara escorria outras caras cansadas, gastas, sofridas, sorridentes, crentes, imaginadas, suicidas, indecisas, sonhadoras, perdidas ou simplesmente empalidecidas; os teus braços tombados ao longo da tua fisionomia direita até à ponta dos teus dedos (só hoje te vi tão alta, tão mais alta do que eu; talvez porque somente hoje te vi); os teus pés molhados, sim, da chuva, seria da chuva?, soltavam gotículas incertas e indefinidas pela sala. Não te senti sair hoje de manhã, pensei, mas hoje de manhã é já tão longe, tão distante de nós, tal como a distância que vai de mim, do balcão, até ti, aí, na sala: estás aí, não estás? Ou imagino que estás? Sim, estás, estás enquanto aqui estou: não te decides em ir embora, regressas sempre e eu não me decido ficar, estou sempre de partida. Tens os pés molhados e o seco desaparece pouco a pouco, seria da chuva?, os teus pés molhados e as tuas idas ao Alentejo. Dizias que tinhas lá família. Vim a descobrir anos mais tarde que és órfã; os teus pés molhados e a sala a contar com a tua presença. Coloco as mãos no balcão e a solidão por cima do balcão sujo. (cont.)

situação

Presenciei uma discussão sobre Deus e o Diabo, e fiquei calado; calado como se a minha voz fosse uma arco de silêncio em toda a sua extensão; que poderia eu dizer? que deveria eu calar? fiquei assim, vendo de um lado gente e do outro gente, gente de humanidade e humanidade na gente, vendo a raiz a ser decepada em nome de um tal Deus diabólico e de um Diabo deificado. Esta não é decididamente a minha luta - nem de perto, nem de longe - , o chão onde me movo, o som que faz sinfonia na minha existência: quero mais além de Deus e do Diabo, e mais além é nem um nem outro - quando dei por mim estava sentado na ribeira da Fonte, junto às açucenas em flor, às bananilhas de cheiro inconfundível e o meu olhar perdia-se nas águas límpidas e cristalinas que escorriam na Granja, e o meu pensamento parecia um pousio, uma Terra do Centeio em inverno continuado; presentei uma discussão sobre Deus e o Diabo, e só me apetecia estar sentado de pés descalços dentro da água da ribeira, vendo-a levar o que restou em excesso carente de mim.

02/03/2010

estória

I
Entrou na sala como se nada o esperasse.
Virou o casaco do avesso enquanto o despia. Sempre a olhar para os pés. Para o chão.
Meia-luz. Velas espalhadas faziam o espaço parecer mais pequeno enquanto iludia no tamanho. Era pequeno demais.
Não se recorda se havia música. Talvez. Mas não ouviu. Pelo menos não no início. Pelo menos não até ela entrar ali.
Pediu qualquer coisa que o fizesse esquecer que lá fora não estava mais do que o mesmo frio que sempre o tinha perseguido desde que aqui chegou. Ali chegou. Não. Desde que aqui chegou. A esta cidade. De noite. Sim, porque chegamos sempre com a noite e partimos sempre no dia.
Nada o esperava, na verdade. Ninguém se virou para o olhar quando as mãos troçavam dos gestos que o casaco não podia fazer sozinho, quando os dedos não conseguiam segurar o copo, quando as luzes já não viam o resto dos olhos.
Nada o esperava nem ali nem em nenhuma outra parte. Pelo menos não nesta noite. Ou nas noites anteriores, a bem dizer. Há muito tempo que se encontrava só mas toda a sua necessidade de fuga o iludia num tom onírico fazendo-o crer que não era real. Que não estava verdadeiramente só senão nos momentos em que se sentia irremediavelmente só.
Não se recorda de nada até ao momento em que ela entrou na sala. Não se recorda de nada que tenha sucedido nos minutos seguintes em que o corpo que parecia pertencer à sombra que as luzes obrigavam a aparecer se aproximou, numa lentidão devassa e a cheirar a desistida, e colocou as mãos e a solidão por cima do balcão sujo.
a continuar se a imaginação assim o permitir...