29/04/2020

tira-me da roupa, 
amor.
despe-me até eu ficar desprovido de tudo o que me é em demasia. 
roda em torno de mim até que a fúria da vida se encha inteira de minha mansidão e aprenda a parar.
preenche-me de noite. depois vaza-me até caber o dia inteiro dentro das ruas que são teus olhos e o meu sonho.
descobre-me, 
amor, 
até que reste pouco
que meu tempo já está surdo e quase, mesmo quase, a chegar ao seu fim. 
seu eu morrer, 
amor, 
segura-me na alma, 
respira-me na ausência, 
despede-te de mim em risos e melodias, 
leva meu corpo por dentro da tua memória até que só sobre o pó e eu permaneça inteiro do lado que fica aquém do conflito do momento que me fez saber a verdade do mundo. 
tira-me de dentro de mim, 
amor, 
e faz-me livre enquanto beijas a minha vida. 
deslizo para a linha do porto que me amansa
e o rio diz-me que faz falta o mar por dentro.
resvalo na incerteza do amor à memória do que não esqueço
e o mar canta-me um poema de abandono.
mergulho na boca inteira do mundo que sonhei
e o tempo abandona-me na falta do poema. 
dispo-me do que faltava antes de ter chegado  
e invento a antítese de meu desespero. 
é vã e lisa a linha da mansidão do porto 
onde meu rio repousa até o mar ser tudo o que fica da memória de um abraço.  

23/04/2020

pesa-me o corpo submerso no peso do dia.
sento-me sobre a beira da janela à espera,
pacientemente,
que a noite passe.
não a oiço no silêncio que faz por dentro de mim. não a vejo na imagem que tenho dentro de ti.

deito-me de costas no chão de madeira fina e espero que o pó me cubra.
sinto teus dedos tocarem minha pele, tão leves como se fossem palavras que se dizem no vento que chega antes das marés de Setembro.
imagino-te deitado a meu lado, como se fosses o prolongamento de meu corpo. como se fosses a continuidade da minha certeza incerta. como se pudesses ser uma frase solta num poema aberto.
sinto como aqueces o pulsar do sangue que quase morria em mim e como o meu corpo começa a dançar submetido à tua devassidão.
ou será a tua devastação?

espero o momento exacto em que começas a cantar-me ao ouvido.
tua voz pousada sobre minha nuca,
tua melodia a descer-me sobre a pele das costas,
tuas mãos a desertarem por dentro da minha alma despida.

tudo o que acontece aqui, fica sob o peso da noite que espera,
pacientemente,
que uma janela se feche.

22/04/2020

se eu pudesse escolher

se me fosse dada a possibilidade de escolher entre o céu e o inferno, hoje escolhia o inferno
escolhia deixar-me queimar até ao último fôlego, 
decidia permitir-me rasgar até ao ultimo milímetro de pele
deixava-me dançar nua até perder o controlo
perdoava a minha incerteza e caminhava descalça até cair desfeita em cinzas.

se eu pudesse escolher entre o feio e belo, hoje escolhia o feio
deixava-me corromper até não sobrar nada da minha alma
permitia-me aniquilar até não ser mais do que pó ao abandono da chuva de abril
pintava-me de cinzento até desaparecer por completo por dentro da náusea do mundo
desfazia-me de tudo e deixava só o erro

se me fosse possível escolher entre eu e tu, escolhia o eu
deixava-me caminhar as estradas da minha ilusão
desfazer-me em lágrimas surdas até me ouvir cantar
entregar-me ao prazer infinito da ausência de critica
deixar-me vestir de pecado e caminhar pelas páginas do teu livro

se me fosse dada a liberdade de escolher, 
escolhia chegar cada vez mais próximo de ti
enquanto me afastava.


11/04/2020

priMus vEr

Março está a chegar ao fim. Ainda nada terminou mas tantos outros momentos já iniciaram a sua marcha. A primavera foi anunciada antes das chuvas de Abril e está sentada entre nós. Aguarda, pacientemente, o momento em que possamos parar para a vermos. 
Hoje sou como uma criança a dançar no campo de flores que sempre residiu dentro de minha pele. 
Calcorreio as pedras da calçada, danço no ar que beija as copas das árvores do jardim, pinto-me do vermelho que repousa na madeira antiga dos bancos. Atravesso as gentes até chegar à beirinha do mar. Aí, devoro-me na contemplação do tempo e agradeço o que a vida me deixa ficar nas mãos, todos os dias. 

moMentO

Diz-me, onde fica a verdade? 

Onde fica quando tudo o resto parece não ser mais do que um cenário idílico numa película antiga a rotar dentro da tela numa sala de teatro vazia. 

Diz-me, onde fica a verdade?

Quando tudo parece ser a antítese da possibilidade da salvação. Em que tudo começa a confundir-se e a tornar-se cada vez mais cinzento, mais ilimitado, mais profundo, terrivelmente triste.

Diz-me, 
onde estamos, 
na verdade?

mAs...

"Para aquele que ama, não será a ausência a mais certa, a mais eficaz, a mais viva, a mais indestrutível, a mais fiel das presenças?" (Marcel Proust)

mas eu não sei  o que me sucedia se tua voz parasse de cantar por dentro da minha alma
não sei o que seria de mim se deixasses de existir aqui
não sei para onde poderia ir pois não se pode conceber qualquer sinal de vida num mundo em que tu não te encontres. 

02/04/2020

Kv


Começas no momento exacto em que o sol desponta na miragem do prenúncio do dia e terminas quando o corpo te segreda a necessidade de parar.

Guardas em ti o silêncio que é mistério, que é segredo, e que dança nas margens indefinidas (indecisas?) da verdadeira magia de se ser apenas inteiramente seu.

Como se fosses feito de água por dentro, navegas à deriva das margens do rio que defines ser necessário atravessar, até que encontres o lugar de terra - não areia, terra - onde possas, enfim, serenar. 
Procuras e tocas para logo te esconderes por dentro das árvores que cantam nessa terra acre (ou doce?) do teu sul, até que consigas regressar ao norte que te orienta.

És lugar de luz onde a noite aceita repousar como se fosse feita da harmonia mais imperfeitamente perfeita que reside na certeza incerta do que permanece por dentro das sombras. 
Guardas as arestas finas da fé e a rugosidade da distância que vai de ti até ao lugar em que precisas saber-te. E acabas (quase?) sempre por te reencontrar.

Tão claro como a água do rio que te desfaz por dentro, olhas através de ti para evitar ver-te em toda a imensidão do que fica por entre as margens. Evitas chegar ao lugar em que te sabes ser- absolutamente - como se não quisesses saber-te - finalmente - inteiro.

Danças sobre a tua angústia de braços abertos ao tempo que te conduz como um cavalo a correr o vento na terra quente, na esperança (vã?) que o resto do pó que te cobre te abandone e te permita (re)começar.

Amas com a intensidade de quem vai partir e partes com a imensidão de quem precisa parar.

És lugar onde pode terminar a ânsia e onde as palavras cobertas de lágrimas se podem tornar música, e a música se pode fazer silêncio sem medo de morrer. Lugar onde a espera cessa de ser e a incerteza regressa ao lugar reservado às coisas que se podem deixar partir. 

És verdade que se guarda na sombra dos dias e na margem das noites, onde o silêncio acaba e onde o silêncio tem espaço para regressar. 

É lugar onde outros aprendem a respirar e em que lhes seguras, na sua frágil vulnerabilidade - com as pontas leves dos dedos esguios - a amargura da sua inconstância e lhes permites pousar em terra branda. 

Começas o dia no primeiro fôlego de luz e terminas quando o mundo se permite cobrir de esperança e pó de estrelas. 
Repito as palavras como se fossem memórias.
Repito e repito para que possa, jamais, vir a esquecer.