21/08/2022

OrAçãO

Segurei-te nos braços e na voz, quando tiveste medo.
Lambi-te as feridas e comi do sal, do sangue e da terra que te compunham, até voltares a ti.
Amei-te o desespero e a desesperança, tapei teu corpo gélido com minhas mãos abertas na pele, e fui a carne e a palavra no secreto silêncio que duas almas encontram na sede de deserto.
Fui teu porto, teu barco, teu abrigo, teu canto de cisne. Fui, sendo, mas sem ter nunca chegado a ser.
Estava onde tu estavas, mas tinha sempre uma asa pronta para voar. A asa que rasgarei depois.
Pousei os pés nas areias movediças do que acontece por dentro de ti e não fui capaz de fechar os olhos e me deixar ir.
Fui, sem ter chegado a poder permanecer.
Atravessei o deserto até chegar ao mar alto. É nesse lugar que me encontro agora, onde há um abismo aberto de baixo, inacabado e incerto, e fico ao sabor das ondas e à mercê das marés com a certeza incerta da constância das inconstâncias, de que me afogarei em breve, abraçada ao castigo que se me impõe a natureza fielmente cruel da minha incapacidade de me manter à tona de água. 
Segurei-me nos teus braços e na tua voz. Usei as palavras ditas e os silêncios de lugares em branco, e preenchi o remanescente das linhas com as mentiras do meu próprio poema. E agora parto, para ir buscar as penas e deixar a pele, para me afogar, sozinha, por dentro do meu firme declarado caminho.

Sem comentários:

Enviar um comentário