25/04/2022

sento-me no canto mais a sul do jardim. o murmúrio das asas dos pássaros que sobrevoam este pequeno espaço de céu, passam a ser apenas ruído. tapo os ouvidos e espero que termine. queria dizer tantas coisas e não me sai uma única palavra. só ruído. na verdade, queria conseguir gritar para calar tudo em torno de mim. mas atrapalho os gestos e confundo a pele com a  terra lamacenta que me circunda os pés. por momentos, não consigo entender bem onde estou. por vezes, de facto perdemos-nos. deixamos de saber quem somos e o lugar em que estamos. mas talvez, ainda que possa assustar, não seja uma coisa nefasta. talvez nos possa deixar mais alerta, mais convictos, mais alargados. ou não. talvez faça somente e apenas o oposto disso mesmo e ficamos ainda mais pequenos, mais insignificantes, mais ruidosos. há qualquer coisa a desfazer-me por dentro. não sei se é angústia. não sei se é dor. não sei se é uma via sacra. não sei se são espinhos. não sei se são feridas. não sei se são palavras. não sei se é tinta negra que se confunde com lodo. não sei. sei que me é estranho e que, quando estava quase a passar e eu já via para além da lama que me cobria os olhos, voltou a descer sobre mim, como o pano do palco no momento em que nos despedimos do público e tudo cessa de respirar. sento-me no canto mais a sul do meu corpo devastado. o ruído dos pássaros, percebo agora, afinal é música. embala-me as lágrimas e acaricia-me a pele arrefecida. esperava que chovesse para me lavar do dia mas o sol insiste em celebrar a vida. queria não estar acordado. conseguir não ver. deixar os dedos de lama sobre meus olhos e sonhar na cegueira com o que ainda não foi. esperar que este tempo deixasse de ser tempo e a lama deixasse de ser lama e a angústia deixasse de ser angústia e o jardim deixasse de ser lugar confuso e eu deixasse de ser assim. de vez em quando deixamos de saber quem somos. deixamos de saber onde estamos. deixamos de saber quem queremos ser. deixamos de saber para onde vamos. sento-me no canto mais a sul do desespero, na esperança que o norte se revele nas linhas de sol das asas dos pássaros que embalam a tristeza do dia. 

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