09/08/2010

estória

VII

Tiro os olhos de ti e deixo-os cair sobre as minhas mãos. Meu punho banhado de sangue. Desenhado nos nós dos dedos, o resto de ti. Alisa. Eu. Tu. Olho as mãos paradas num tremor que sinto que se vai eternizar a partir deste preciso momento. Tremo como se fosse frio isto que me rega o corpo todo mas não. Apesar da chuva não faz frio. Apesar de tudo isto, não faz frio. Nas mãos tenho o temor e as rugas. Sim, consigo ver tudo debaixo do sangue sujo. Consigo ver as marcas do tempo que me vandaliza por dentro, que me dilacera e me desfaz com o toque sereno de uma lança afiada. Desvio os olhos para ti enquanto alguém te levanta do chão. Olho os teus pés (já descalços), e os teus joelhos (já negros), o teu vestido (já rasgado), o teu peito (já seco) e a tua boca…a tua boca…Aposto que neste momento querias que te olhasse nos olhos e eu sigo para as mãos que são minhas e onde tu já não estás. Limpo na camisa o que restou de ti e bebo o que me sobra no copo. O balcão está ainda mais conspurcado. Tu estás ainda mais pura. Mais a cheirar a chuva. As minhas mãos são a prova de que eu e tu e ela já envelhecemos. Eu nas mãos e na alma, tu no sangue e na memória, ela na distância ausente de quem não está e é um jamais contido em nós. Porque insistes em regressar sempre? Porque insistes em vir de encontro a este lugar que já não tem espaço para o que nos separou quando nos uniu para sempre? Olho-te de frente enquanto as tuas mãos choram. Levas os dedos ao cabelo baço e seguras o negro dos teus olhos como se me segurasses a traqueia. Sinto-me velho. Sinto-te a morrer. Fecho os olhos e sei que posso morrer, que devia ter sido eu a morrer, assim, como ela. Jazemos os dois. Tu e eu vivemos o fim depois do fim e não encontrámos mais o caminho de volta. Diz-me porque insistes em voltar? Porque insisto em não conseguir partir?
Enlaça teus dedos na minha traqueia enquanto as minhas mãos velhas quedam para onde antes estava o teu sangue. Não adormeças. Por favor, não adormeças.

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