31/01/2021

começo por despir a boca

depois os dedos...um a um.

fecho os olhos. quero sentir tudo, o momento em que (quase) te sinto a chegar.

desfaço-me da roupa que me cobre. o corpo arrefece quando se confronta com a noite que desce sobre o sangue e entra por dentro da pele que começa a respirar.

sento-me sobre a tua ausência. dispo-me (por fim) de mim e cubro-me de tua pele. ouço-te a sussurrar-me no ouvido as palavras melódicas da terra que te tem por dentro da alma e tudo (por dentro de mim) começa a arder. 

um por um, teus dedos recontam a história dos dias em que teu barco navegou as ondas do mundo inteiro. enquanto eu esperava. por dentro da tua ausência. ancorada na orla do porto. com os pés dentro da água que te traria de volta ao aqui. 

abro a boca já despida e o silêncio comporta a desonra em que me permito perder. não há nada para além de pecado neste lugar em que me permito permanecer. lânguida e sôfrega. perene e efémera. desesperada e pronta. 

não permito ainda (para prolongar a doce angústia em que me desfaço) que o ar me traga de volta a mim. quero sentir o odor da tua ausência dançar sobre o fogo que arde por dentro da minha eterna devastação. 

há um aroma que se suspende no ar. a maresia e a calor. a tempo e a possibilidade. a sonho e a terras distantes. 

há um sabor a vontade e ao adiado. a encontros desencontrados. 

há intenção de ir. desafiar tudo e, simplesmente, ir. 

abro os olhos. visto-me nos dedos. silencio a tua voz da mesma forma que uma âncora beija o fundo do mar. 

e deito-me (de novo) sobre as minhas próprias cinzas. 

Sem comentários:

Enviar um comentário