20/12/2024

Amanheci nas entranhas da cidade. Cheira a frio e cansaço pelas ruas. Tudo parece ter sabor de abandono. São, talvez, imensas as formas possíveis de abandonar algo ou alguém. De nos abandonarmos. 

Caminhei as ruas como se a única possibilidade fosse chegar ao destino. Caminhei com o sangue fora da pele, com o grito fora da boca, com a certeza fora de mim. 

O que permanece no abandono é a despertença.

Se não pertenço aqui, quem serei eu?

17/12/2024

Despertei de dentro da noite com um grito de tua voz espalhada sobre meu ventre. Fechei de novo os olhos e perscutei-te no silêncio segurando-te a voz com as minhas mãos abertas.


11/12/2024

Supus que a raiva iria cessar.

Acreditei como se acredita cegamente nas coisas que, na verdade, não existem senão em nós mesmos. 

Mas a raiva não parou. 

Escorre como um manto de lava incandescente por dentro do corpo do meu sangue. Jorra no fel das minhas palavras e consome tudo o que restava das cinzas da minha esperança.

09/12/2024

ReGrESso

Parei na rua por um momento, devagar, sem permitir a pressa dos dias. Escutei o sol na minha pele. Senti o silêncio que vem de dentro, obliterar o ruído da cidade. Um momento de claridade, enquanto fechei os olhos devagar, e compreendi tudo. 

Vi que sempre foram os olhos teus o que me levou de volta a esse lugar. Foram sempre teus olhos [feridos], teu olhar [vivo], tua claridade [obscura], tua intensidade [efémera], tua inconstância [consistente], teu mar [meu ar] que me fizeram sempre regressar. Impelida por tua luz, atravessei às escuras o oceano, vezes sem conta, para te [me] reencontrar. 

Compreendo, agora, que foi por ti [sempre] que regressei.


06/12/2024

Por vezes

no interior da noite

queria 

apenas

poder

segurar-te nas asas 

adormecer 

com as tuas penas 

nas minhas mãos.

05/12/2024

estou de olhos fechados. virado para a parede. nunca vi tão claramente como agora. não há nada para além de escuridão em redor. mas é agora que eu vejo. junto a pele à cal. fundo-me com a pedra. mastigo os restos de pó e deixo-me envolver pela putrefacção das formas. estou de olhos fechados a olhar para mim. só agora consigo ver tudo. cruzo os braços. quebro os ossos. vazo o interior de mim e espero. de olhos fechados. virado para ti. 

24/10/2024

Pego no vidro com as duas mãos.  

Parto-o em duas partes desiguais. 

Com a mão direita, seguro a parte mais larga do vidro e rasgo a mão esquerda.  Até chegar aos ossos. 

Com a mão rasgada, seguro o lado mais estreito da segunda parte do vidro e enterro-o na minha mão direita. 

Carrego os vidros nas mãos desfeitas e caminho até à entrada do rio. Sujo a ferrugem ocre do lugar de embarque e acinzento o olhar do rio sobre meu sangue escuro. 

Entro no navio que navegará a imensa vastidão do oceano durante a noite velejada ao sabor do outono triste. 

O mar entoa uma melodia azul. Uma melancolia inevitável. 

Fecho os olhos para escutar as ondas e o escorrer de mim. 

Quando chegar a meio do oceano, estarei exangue.

Quando atracar, o vidro estará inteiro.

16/10/2024

o vazio não segue com quem parte.

permanece sempre com quem fica.

Sa.cA.Na.

talvez 

seja

o momento 

este 

em que partes

o momento

exacto

no qual

o esboço se consubstancia em forma

a palavra se molda de silêncio 

o olhar se declara em certeza

o tempo se revela irrecuperável 

a agonia liberta suas asas

talvez seja

esse

o momento

preciso

em 

que 

eu me desfaço em invisíveis fragmentos de desespero

me desato em nós de argumentos esquálidos 

e reconheço 

na cegueira impura das minhas mãos atadas

o tamanho inteiro do irremediável que habita a minha impossibilidade.


04/10/2024

Há um homem que desce a rua da mesma forma que sempre desceu a rua. Anos seguidos. Mas agora fala em voz alta.
Há um taxista que para o carro e fica, ali, parado. Só parado. Mais nada. Todas as noites. Parado. 
Há doentes que saem a pé depois do tratamento e atravessam a noite da rua. Desconheço o lugar de onde encontram a força para andar. Talvez não tenham alternativa. Talvez estejam sós. Depois de se terem desfeito do sangue numa qualquer máquina. Atravessam sozinhos a noite doente. 
Há uma chuva timida que vai caindo e embaraça. Uma chuva que enevoa os olhos. Embacia os vidros dos carros. Não lava nada e fica a latejar sobre a pele que ainda tem sabor de verão. Uma chuva que não chove, será chuva?
Há baratas a correr desorientadas de folha em folha. Para longe dos pés.  Para perto do lixo. Para junto dos restos que sobram dos restos. Arrastam o que resta de uma asa morta de um pombo morto e parecem fazer um festim de morte. Uma asa morta. Um pombo morto. Insectos que vivem de morte. 
Uma mulher passeia o cão e olha em frente. Sempre em frente. Nunca olha para baixo. Não olha para trás nem atravessa olhando para os lados. Segue. Em frente. Como se não houvesse nenhuma alternativa possível. Quem olha apenas em frente, conseguirá ver?
Numa varanda há vozes que se riem. Não têm cara, apenas contornos feitos de vida e de movimento. Há música que salta detrás das janelas abertas e recordam anos idos de juventude. Riem de palavras vivas e ignoram o mundo. Um lugar sem conflito. Pode haver um lugar no mundo, esta noite, onde não haja conflito?
Há um aroma a jasmim na rua. Na varanda do vizinho. Os pássaros dormem na varanda do vizinho. Presos na gaiola fechada. A aguardar o nascer de novo dia. Não cantam agora. A noite canta sozinha. Porque perdem os pássaros a voz e o voar com o cair da noite?
Um gato preto atravessa o alcatrão da estrada e navega a solidão profunda da noite. Procura restos de comida. Procura gestos de vida. Talvez deseje afecto. Uma mão quente que o cubra de esperança.  Ou talvez não.  Os olhos amarelos a brilhar e a contrariar a escuridão. Os gatos são o contrário da escuridão?
Há um outro homem que parece um gato. Também tem os olhos abertos na noite enquanto procura lugar para deixar dormir o corpo. Nas arcadas dos prédios. A urinar de encontro a um lugar esconso. Talvez ninguém veja. Eu vi. Talvez mais ninguém veja. Terá uma mão, comida, chuva, coragem. É preciso coragem para dormir na noite aberta,  sem tecto. O que pensa um homem que não tem um tecto debaixo da noite?
Há pessoas que sairam e talvez não regressem a casa. Pessoas que regressaram e talvez jamais possam sair. Pessoas que não sairam. Pessoas que circulam a caminho de aqui ou de ali. Que trabalham nos segredos. Que preparam o dia. Que velam pelo resto dos que dormem, descansados. Há quem durma descansado?
Há portas fechadas e janelas abertas. Carros e aviões que não param de avançar.  Como o tempo, sabes. Como o tempo. O tempo que avança e a impossibilidade do recuo. Como a mulher que só olha em frente.
Há um homem que desce a rua da mesma forma como sempre desceu a rua. Mas agora fala sozinho.
Eu também desço a rua. A mesma rua. Há muito anos. Estarei eu a falar com quem?


02/10/2024

houvesse forma de te libertar 

                                         arrancava as asas aqui mesmo

houvesse forma de te conter 

                                         faria de meu corpo barragem de ferro e betão

houvesse forma de te salvar 

                                         tornar-me-ia definitiva condenação

houvesse forma de te suster 

                                          cederia toda a respiração 

houvesse forma de te sangrar a gangrena 

                                           faria de mim chaga eterna

houvesse forma de te parar o fogo 

                                            seria sarça

houvesse uma forma de te reescrever 

                                             derramar-me-ia em tinta

se houvesse forma 

                            qualquer forma

se

        houvesse

de bom grado     

                        ta daria.

01/10/2024

Podiam dar teu nome à próxima tempestade. Um fenómeno atmosférico não particularmente raro mas incomum, que se encontra de olhos fechados em lugares obscuros ou de olhos abertos na claridade do mundo. 

És a serenidade envolvente das areias das estepes africanas. A lânguida sensualidade do arder da pele e da boca, dos dedos e dos olhares, do tudo e do nada. És o grito gélido dos fiordes do norte. Água feita gelo, feita montanha, feita impossibilidade. Distância e austeridade tecidas da mais abissal profundidade do azul contido à força na feroz atrocidade do ser tempo.

És o vento morno que embala a ardência inebriante da vastidão cheia de vazio no deserto. És lamentação tornada, divinamente, em muro de papel e pedra, de esperança e desventurança, de crença e de perdição.  És a chuva torrencial que devasta vales e casas, lugares e memórias,  encontrando sempre o caminho da água. O caminho que regressa, inevitavelmente, ao lugar primordial. Onde tu começas e onde só podes terminar.

És viagem que está sempre a partir. Viagem que se incendeia até conseguir chegar. Viagem que viaja para encontrar tanto quanto para se perder. Viagem que não sabe onde terminar. Viagem que regressa ao princípio para poder repousar. Viagem que nunca se conclui. Que não satisfaz. Que deixa espaços por preencher. 

Imagino tua sombra a calcorrear as ruas das cidades na magnificência da cor que só o começo do outono traz no sol. 

Cinematografo tua sombra como uma folha de plátano que cai, pela noite fora, do ramo mais alto. Dança com a gravidade, beija o luar, até que o chão lhe toca, com dedos finos e envelhecidos, e o vento a empurra, sem questionar, ainda que com a mais leve das brisas, para longe da copa da sua árvore...  Assim caminhas tu. De braço dado com a vontade, de olhos cravados no desejo, as mãos abertas para o sonho, os pés voltados no sentido da fuga.

Preenches a possibilidade de um futuro nas noites com um corpo outro desnudado que inala o possível e exala o impossível. Que respira futuro e padece de abandono. Que te segura na ponta dos dedos e não ouve as palavras escritas nas cinzas. 

Tu não respiras de noite. Olhas esse corpo escolhido que deitaste ao lado do teu e viajas por dentro de ti mesmo. E queres ficar tanto quanto precisas de partir. E queres partir tanto quanto precisas de ficar. 

E terminas a viagem com a bravura de um soldado que parte no desconhecido e enfrenta a bruma, os canhões, os silêncios e a devastação, a saudade e a (des)consciência de si.

E regressas, a arder, a arrastar cinzas, a recompor desiginios, a redesenhar desejos, a reconstruir as paredes desfeitas, a guerrear contra a guerra. 

E chegas ao teu lugar de mar para cessar o fogo,  reencontrar o caminho e, com a paciência impaciente de um poema, atenuar a emergência do que te falta ser. 

Talvez a tempestade que acontece em ti possa fechar os olhos na obscuridade desse lugar e, ainda assim, vislumbrar os rasgos de claridade.

23/09/2024

sento-me com um copo numa mão e a miséria na outra. bebo de ambas as mãos como se sorvesse os restos da vida. reconheço os gestos de ingratidão que teimo em exacerbar cada vez que se me abre a boca para falar. queria poder permanecer num silêncio mudo e cego. deixar passar o tempo até que nenhuma parte do meu corpo ousasse mais mover-se. deixar que todos os cabelos quedem nos tons de cinzento, toda a textura da pele se mistifique no desespero das rugas. que toda a sabedoria me caia no colo e eu possa, de uma vez por todas, reconhecer que não fui digno de viver. bebo da miséria da minha existência os tragos de vida que deixei por ser vivida. bebo do copo para esquecer a miséria. bebo a miséria para abandonar o copo. e assim sigo, silencioso, pelo interior da noite.

20/09/2024

Considerei a possibilidade de permanecer imóvel. Fingir que já não respirava. Ficar completamente parado.  

Por vezes deixamos de respirar.  São breves segundos mas deixamos de respirar. Talvez esses segundos sejam suficientes para que me deixes partir em paz. Para que não me vejas vivo e te esqueças de mim. Que olhes meu corpo lívido e me abandones na terra. Que retires essa sombra sempre tão escura de cima de minhas mãos e me deixes terminar, à minha maneira. 

Será que permanecendo assim, cingido à ilusão da mortalidade, te poderei iludir? Será possível moldar a tua visão da realidade à minha pura intenção de me libertar? Será quebrar algum laço de fidelidade jurada em silêncio sofrido se te trair e insistir para que me deixes?

Penso que já não me importa o que sentes, o que pensas, o que precisas. Sempre foste água que precisava de terra para conseguir parar de correr numa tempestade frenética. Eu fui sempre terra que precisou de água para respirar. Até este momento. Agora andamos no reverso da nossa inteireza. Quebrámos partes. Fizemos um lugar de barro. 

Por isso permaneço imóvel. Deixamos, por momentos, de respirar. 

Deixo-te passar em torrentes incessantes de mar salgado numa beleza imperturbável. 

Deixo-te ir. 

Deixo-me ir. 

 

18/09/2024

aGoNiA

vem. 


espero por ti. 


vem.


cobre meus olhos.

ata-me nas mãos.


vem.


despe-me da pele 

com os dentes

até aos ossos.


vem. 


deixa sair o grito. por dentro do beijo.

violenta-me como se me amasses.

oferece-me a dor. 


vem. 


cobre-me a boca. 

pisa o sangue que me escorre do ventre

e pinta o resto do tempo.


vem.

 

rouba meu grito com a ponta dos dedos.

entrega-te à minha desventurança. 

oferta-me a violência com que te alinhavo.


vem. 


não espero por ti.


12/09/2024

queria ir para a rua. 

descalçar os pés. 

deixar a pele no asfalto. 

sentir os vidros rasgar a carne. 

imaginar o sangue a sangrar para os restos de areia. 

queria tirar a roupa.

olhar o vento de frente. 

galgar a frente do vento. 

despida de tudo.

na esperança de voar.

na certeza de cair. 

foi com as tuas mãos

fechadas

que me calaste o desejo e a vontade. 

emparedaste o caminho com fogo. não posso passar. 

vedaste meus lábios com gritos. não posso falar. 

pintaste minhas asas com crude. não posso voar. 

ataste-me as mãos ao cimo. não posso tocar. 

quebraste os galhos e as minhas pernas. não posso sustentar. 

roubaste-me os segredos com facas. não posso sonhar. 

incendiaste a porta com indiferença. não posso sair. 

devastaste-te a promessa na ausência. não posso ficar. 


olhaste as sombras nos olhos. viste-me desaparecer. 

11/09/2024

quando.me.negas.

deixo.de.poder.

.respirar.

04/09/2024

Lambi a ferrugem dos grilhões que arrastas dentro da noite segregada a ouvidos adivinhadores

tenho a boca a saber ao ferro

a alma a saber a miséria 

sinto-te na falta

tenho-te em falta mas não tenho falta de nada de ti

tenho os dedos a saber a tempo e a desventurança

o sexo a gritar saudade e a  secar por dentro da desesperança 

a pele a queimar inteira a poesia da incerteza e a cobrir o vazio do vento frio da serra triste. 

tenho galhos secos em lugar das mãos

ferrugem no lugar do sangue

amarras no lugar das lágrimas 

pudor ao invés de amor.


Lambi a ferrugem do tempo e fiquei parada. 

procuro formas de regressar às formas e parece que tudo foge dos dedos, dos galhos, do sangue enferrujado, do silêncio dos gritos contidos, das desventuranças da incerteza de saber sentir do lado certo da alma. 

Talvez encontre o caminho de volta ao vento que sopra de feição às ondas e às folhas. ou talvez permaneça somente assim, a arrastar-me quieta no interior da noite.

03/09/2024

Fiquei à espera que chegasses.

O dia inteiro. Que chegasses inteiro.

Fiquei na espera que regressasses com o tempo e me explicasses o sentido da vida. 

Queria ouvir-te rir da estupidez do mundo, hoje, enquanto aguardavamos a luz do cair do sol. Talvez seja aquilo que queda,  o que traz sentido ao que se sustém.  Se não entendermos a fragilidade da sustentabilidade, jamais poderemos compreender a vida. 

Talvez tenha sido essa a derradeira lição.  Aprender que as coisas que caem, que desaparecem, são o arquétipo que prova o sentido da existência.

Pergunto-me, ainda assim, porque nos recusamos a aprender? 

Porque insistimos em desafiar as leis da gravidade, num permanente complexo de deidade?

Seremos todos,  no fundo, apenas cobardes disfarçados de heróis? Ou heróis disfarçados de cobardes?

Seremos apenas sombras, puras sombras de tudo o que poderiamos ter sido. 

Quando voltaremos a brilhar?

Fiquei à espera que chegasses. Para saber. Para ouvir. Para entender


01/09/2024

tua pele sabe a seixos molhados e a marés desavindas

tua boca sabe a segredos contidos e a palavras proibidas

teu sangue sabe a ferro e à devastação das cinzas

teu corpo sabe a vulcão aberto dentro da matéria que incenera o respirar

tua existência sabe à poesia que alimenta 

consome 

respirar

.

26/08/2024

quando 

o medo 

se instala 

dentro 

da 

pele

desce 

devagar

até 

às 

veias 

e

mergulha 

no sangue

reveste 

os músculos

entranha-se 

nos 

ossos

e

segreda

baixinho

o lugar 

onde 

começa 

o fim.  

12/08/2024

Tenho a tristeza presa nos cabelos molhados. Levo as pontas ao sabor da boca e não é mar nem sol nem liberdade nem certeza o sabor em que a tristeza arde.

Afogo a voz dentro das palavas dentro da tinta dentro das páginas dentro da gaveta. O silêncio segura as pontas das correntes e dos grilhões e as palavras passam a saber a ferrugem e a cinzas dentro da pele.

Cerro os punhos encarcero os dedos dentro das mãos coloco as mãos dentro do vazio dos bolsos. 

Revisito a localização dos objectos das memória dos desejos da vontades dos por vir. Reavalio os pontos de fuga abro janelas fecho portas abro portas fecho janelas cavo buracos coloco arame farpado abro as cancelas encerro os fossos cubro as arestas estilhaço os vidros e descalço a pele. 

Afino a estratégia. Abro as portas e as janelas ao vento e deixo que o ar reclame o lugar de tudo o que não possa levar. Abandono o que resta no calor devastador da promessa e escolho a banalidade do mal que reside nos meus cabelos. 

Viro-me para trás encerro tudo fico apenas eu dentro do lugar de dentro e peço que finalmente o resto me abandone enquanto peço que se ardam os cabelos no segredo violento que guarda o calor desta noite.


olha para a verdade 

e diz-me o que vês 

01/08/2024

quero arrancar os olhos de dentro das lágrimas e escavar um buraco tão fundo quanto as minhas unhas aguentem escavar o ferro fundido de que se revestem as paredes da minha miséria.

quero arrancar as lágrimas de dentro dos olhos até escavar por mim adentro até encontrar o fundo em que lágrimas e sangue me encontrem o sufocar.

 

28/07/2024

há momentos

em que 

não 

tenho 

qualquer 

hipótese 

de 

lutar 

contra as correntes 

do 

que 

és 

junto de minha pele

27/07/2024

vOz

Por vezes,

a pele da tua voz 

é tecida com as linhas desfasadas dos fragmentos dos gritos e das preces que te ocupam os dedos,

dos segredos e dos silêncios que te prendem as asas,

das palavras e dos beijos velados que te restringem a essência,

da pedra talhada de mãos abertas sob o olhar da água e do abismo da escarpa.


Por vezes,

a tua voz,

tem o sabor do cansaço da tristeza.



Danço noite dentro como se caminhasse pelo silêncio fora.

19/07/2024

arranca a pele que tenho presa nas mãos nos braços na cruz do peito arranca com força sem hesitar agora sim agora não pares não podes parar agora arranca tudo com as unhas os dentes os dedos cerrados dentro dos punhos violentamente arranca a minha pele de mim até se ver a carne até sentires o sangue até imaginares a dor e não pares nem por um segundo continua continua até ao ventre rasga meu ventre abre o meu corpo a meio e tira tudo o que sobra lá dentro leva desfaz agora sem hesitar peço-te que tenhas coragem na violência que te desfaz para me desfazer a mim agora arranca a pele toda da minha alma. 

16/06/2024

pensei que podia tirar a roupa dos pés e dançar descalço nas entrelinhas das frases nunca proferidas. queria pegar nas palavras com a linha da tinta e percorrer os traços invisíveis dos papéis apodrecidos nas ruínas da casa que caiu no mar. pensei que podia tirar as palavras da boca e cola-las nos tectos das mãos até te vestir de certezas e de âncoras. fechei os olhos e sonhei o sonho que não é mais do que os contratempos dos tempos em fila de espera para se tornarem música. sonhei-te e não estavas lá.  caminhei descalço por dentro da minha boca e foi areia e conchas o que encontrei e mastiguei no sangue das gengivas feridas de letras sem ordem, sem palavras. o que são letras que não podem tornar-se palavras? o que serei eu se não estás no sonho que sonho de ti?

10/06/2024

Fico a teu lado. 

A morrer por dentro enquanto tu desapareces.

A arte de morrer de impotência é sublime. 

Morro a teu lado.

Está escura, esta noite. 

O dia passou o tempo a entoar uma melodia agónica que me desfez por dentro. Desconheço a razão, o motivo que me levou a perder a batalha. 

Às vezes (ou sempre) é preciso ter vontade e por vezes (nem sempre) o é possível.  

Caminho, desatenta das ruas vazias da cidade. Ouço apenas o que me diz a noite. Parece que sussurra um poema triste, feito de histórias inacabadas, monstros alados, sarilhos serenos, tempestades imperfeitas, desesperança...sobretudo, desesperança. 

Debaixo dos meus passos, morrem uma segunda morte as flores caídas dos jacarandás. Tudo tem um começo e, por isso, inevitavelmente terá fim. As flores de jacarandá cessam duas vezes...morrem de tempo e morrem de mim. 

Em cada passo, ouso querer adiar uma queda mas o que faço é mentir por dentro e devagar, uma flor de cada vez, construir a ilusão de que há uma razão.

Há tantas razões como há flores caídas por dentro da noite. 

Está escuro.

07/06/2024

há raios que trazem relâmpagos e razões 

para arrasar a noite


há um prenúncio de uma chuva que não vem mas traz 

as costas da aridez distante


há gritos e ventos que fustigam a pele dos ousados e arregaçam a pele 

até se ver osso


há raios que trazem trovões na voz e gritam nos ouvidos dos pecadores 

uma penitência surda

26/05/2024

Sento-me, a meu lado. Fico a olhar-me e tenho dúvidas sobre se este corpo será verdadeiramente o meu. Já não sei bem reconhecer se é este o meu contorno, se esta palidez é de minha pele ou de meu devaneio, se este corpo é do meu fogo ou do meu abismo, se estes gestos são imutáveis ou ensandecidos. Já não guardo muitas certezas. Sei apenas, neste momento de agora, que enquanto estou lado a lado comigo mesmo, respiro labaredas, rasgo o estômago com os dentes, engulo palavras em brasa, cravo as garras corcomidas na pele desalentada, conto os gritos inaudíveis que me implodem por dentro...um, dois, cento e trinta e nove, mil...

Deixo-me permanecer sentado. Olho em frente. Viro-me de costas. Dispo as roupas e vejo que tenho a pele a arder. Afinal as palavras começam a sair do silêncio dos gritos e as brasas incendeiam o caminho. Sinto o sabor do desalento na ponta dos dedos em cinza. Reconheço o aroma de fel na boca amargurada. Aperto o cilicio no peito. Um pouco mais, até escutar a prece dos ossos. Mastigo a culpa e pecado. Bebo o sangue. Contenho as lágrimas.  Deixo que o fogo tome conta do resto. 

Fecho os olhos.

Fico sentado.

Estou virado de costas para o meu corpo a arder.


24/05/2024

Há qualquer coisa a arrancar-me a pele. Quando olho o espelho, qualquer reflexo, em qualquer superfície que me veja, já não encontro partes de mim. 

Há algo que me fere longitudinalmente ao corpo inteiro e assisto, impotente, ao desabrochar sádico das chagas que me consomem e de onde emergem, triunfantes, as vísceras da minha insustentabilidade. 

A ausência esmaga-me a traqueia e as palavras ficam todas mudas, cegas, surdas, quebradas.

Começo a tentar escrever o que se passa em mim e são os dedos que me caem sobre o abismo (des)feito a tinta. As palavras estão partidas em pedaços minúsculos que não consigo ver. São os dedos, os meus, que as perseguem e acabam por se perder das mãos. 

Que outras partes de mim estarei a perder? Há coisas que não reconheço e que me arrancam a pele, me descarceram, me desossam e me pelam sem que o consinta, sem que o entenda, sem que o possa fazer parar.

Penso que estou próximo de perder a fé. Começo a perder as partes do corpo. As partes de mim. 

Assisto, na primeira fila, à minha própria decadência. Sou eu no palco, em fragmentos. Sou eu o meu próprio público e não há nada mais que possa dizer. As palavras, os dedos, a tinta, tudo me abandonou.

Há qualquer coisa a arrancar-me pele. 

Há qualquer coisa a terminar em mim. 







23/05/2024

queria 

ter

podido

dizer

todas

as 

palavras

que

suavam

na

lingua

minha

foram

só 

as

balas

tudo

o

que 

te 

deixei

dito

dentro

da

tua

boca.

27/04/2024

Fecho as gavetas todas. Queria vazar a casa. Retirar todas as partes.

Ficar despido de objectos.

Queria deixar a chuva entrar de forma a ocupar todos os espaços que restassem. 

Ficar desalojado de ar. 

Fecho os olhos e cubro a face com as mãos molhadas.

Queria, somente, que o tempo parasse para eu conseguir voltar a andar. 

15/04/2024

TG

Canto risos para vos iludir. Para dizer à tristeza que a tristeza não tem lugar nesta triste demanda em que me precipito, dia após dia. 

Canto para me iludir. Para dizer ao tempo que chegou o tempo de garantir que o tempo possa ter tempo para ser tempo. Mas este meu tempo já não é meu. Já não me pertence. Nem sei bem se estou no mesmo lugar que o tempo que me foi destinado...Talvez tenha perdido a métrica ao tempo e agora só resta fingir-me aqui.

Fugi da minha solidão. Encetei todos os movimentos que julguei sempre serem uma violação directa da natureza de mim, andando para trás,  com os punhos cerrados e os olhos em gritos. Fugi abraçada ao medo. Temia as rochas mas às rochas regressei. Ostracizei o mar e ao mar regressei. Repeli meu passado e a seus braços regressei. Canto para me iludir, para me sustentar,  para não cair. Para poder ficar. 

Não sei bem quem somos quando deixamos para trás, numa terra que fica para além de quilómetros de oceano que nos separam do que fomos, uma vida inteira de caminhos reunidos. Virei costas. Fechei a porta. Só D'eus sabe como me tremiam os dedos e a boca me sabia a cinzas. Só D'eus me ouviu o pranto e o vazio naquele momento em que o dia, por instantes, se revestiu do negro mais fundo da noite insana. 

O que sobra de mim agora? Sou quem fui e fui quem sou. Não encontro o lugar que ficou a meio. Sou eu mas na verdade estou incompleta. Faltam-me as penas das asas e já não posso voar. Estou calada, de frente ao oceano que a ilha recorta nas suas reentrâncias, nas suas entranhas, e não vejo mais a terra de que sou/fui feita. Voltei ao lugar que me nasceu. Morrerei aqui. Desapegada. Desviolentada. Desasada. Despedaçada. Sem inteirezas que possam resistir aos actos de coragem e de cobardia que me cobriram no meu precipício.

Canto para iludir o vazio. Ocupamos os espaços vazios, os espaços cada vez mais brancos que (me) persistem na existência, com todas as tintas que pudermos encontrar. 

Sou agora uma réstia do que fui e não espero mais ser nada. Estou a meio de mim. As memórias que me assolam são histórias contadas de quem fui e de quem quis ser mas, ainda, as histórias do que não fui, de quem não fui, de quem não cheguei a poder ser. 

E agora estou aqui. Neste lugar que é um lugar de outros. Entregue à vontade de D'eus manifesta na vontade de quem me assiste. A minha vida depende, agora, da vida que os outros me dispensam.

E eu fico a cantar para preencher os espaços vazios de tudo o que de mim tive de deixar partir. 

14/04/2024

Tenho o respirar quase a cessar. Está sob uma mão firme, pesada, persistente, esmagadora. Desde quando, não sei bem mas agora parece estar a terminar o tempo.

Tento virar-me. Para um lado. Para outro. Fugir. Por um lado. Ou por outro. E ela sustem-me contra a parede. Determinada. Quente. Imperativa. Subjuga-me.

Mantenho os olhos fechados. Talvez não a queira ver de frente. Temo descobrir se me confronto ou se me conforto. Comigo. Com ela. 

Aos poucos, com uma suavidade triste, o corpo vai perdendo a força.  Esquecendo a vontade de lutar. Incapaz de dignificar qualquer gesto. Fica fria, a pele. Fica escuro, o sangue. Fico perdida, eu. 

Decido que tento tocar a mão que me asfixia. Queria dizer-lhe, baixinho, como se fosse o maior segredo dos mundos, que não estou preparada. Na verdade, que ainda não quero. Que me pode violentar, me deve castigar, me pode desfazer, quebrada em pequenos seixos, mas que me deixe continuar a respirar.

Desafio todas as probabilidades. Escolho a audácia para o gesto final. Não é coragem, nem determinação e talvez nem seja sequer vontade. Audácia. Levanto a minha mão direita, já lívida e profundamente cansada, e deixo-a cair sobre o meu cárcere.  Espero, breves segundos...espero...Abro os olhos. 

Cessa. 

Assim. 

De repente. 

O mundo todo. 

O respirar.

Eu. 

11/04/2024

deixei cair. uma parte. inteira. enquanto me debrucei. era uma fina aresta. que me separava de mim mesmo. um breve reflexo. espelhado numa escarpa profundissima. um abismo. eu. de frente. a mim. à rocha. ao véu negro. deixei cair. uma parte fundamental. não vou poder.mover-me. agora. em breve. não poderei ir a lugar algum. não vou. é urgente reencontrar. não vou poder. olhar-me. inteiro. não mais. não vou poder ir. inteiro. nunca mais. deixei cair. uma parte inteira.

04/04/2024

Não sei se é a noite que está cansada ou se sou eu que sou o cansaço da noite.

Talvez não seja necessário continuar a escrever a negro sobre o negro. Não ficam palavras escritas, fica apenas a sombra da noite que as palavras carregam.

Assim, não sei se é a noite que me consome se sou eu que me consumo de noite.
Hoje queria ter tuas mãos dentro da minha angústia. Obrigar-me a fechar os olhos e, por tanto tempo quanto me fosse permitido ser possível, esquecer que a noite existe dentro da minha solidão. Parar de me consumir de noite.

Construo e desconstruo os muros de cimento e aço e sal e emoções confusas que me habitam a pele e acabo sempre no mesmo lugar.
Talvez seja assim que a vida funciona. Passamos tanto tempo à procura do que fica por detrás da nossa própria sombra que acabamos por nos esquecer de que é feita a matéria que nos cobre o existir.

Somos como os barcos parados na aridez das docas a aguardar que mãos abençoadas possam reconstruir as partes que lhes permitam regressar ao mar.
Somos tão frágeis como fusíveis que se queimam,  incêndios prontos a iniciar. Somos a combustão perfeita de todas as imperfeições que se salientam dos cascos que nos definem.

Já não sei se é a noite que se cansa de mim ou se sou eu que me canso da noite.
Anseio pela aurora enquanto permaneço a agitar-me nas ondas frias das marés que me despem e me jogam de encontro aos vazios que me compõem.
Evito cruzar-me comigo nesta jornada no deserto de cada noite em que me confronto, face a face, com a solidão de mim.

Talvez, um dia,  possa encontrar nas minhas próprias mãos,  a serenidade do casco remendado de um barco limpo cujo leme não teme atravessar as marés enegrecidas.
Talvez, no dia em que me reconheça nas sombras do que ficou por ser, encontre o que é, e que isso possa ser o suficiente para voltar a respirar, de olhos abertos, de rescaldos sossegados, de mãos a segurar um leme feito da matérias da noite que trazem todas as divinas possibilidades de cada nascer de dia.

É de noite.
Agora
Estou cansado.
Amanhã.
Amanhã recomeço. 

27/03/2024

quando olhas para a vida, do lado de dentro do vidro, não entendes como ela é curta. como tudo passa e despassa tão velozmente... e cresces na iludida certeza de que és eterno, invencível, inacabável, permanente. mas a vida é ceifada como todas as coisas que nascem e crescem na terra. também a nossa vida é levada, colhida, devassada, estrupada, desfeita, assassinada, violentada, eviscerada, devastada, aniquilada. 

mais tarde ou mais cedo, terminamos. e quando terminamos, não há nada que nos traga de volta. somos pó e ao pó regressamos. e regressamos vazios, despidos, desprovidos de riquezas, desproprietados, como os sem-terra, a caminhar nas terras de barro vermelho num país de longe de aqui. somos todos sem-terra. todos sem lugar. somos lugar nos lugares dos outros. somos terra sem terra na terra dos outros.

somos quem somos porque estamos num determinado tempo e espaço. como uma flor num jardim. como uma árvore numa floresta. somos um fruto do contexto em que nascemos e em que aprendemos a ser. somos apenas mais uma peça da imensidão de uma construção e que, na verdade, quando desaparecemos, fazemos falta às peças a que estávamos ligados ou agarrados, mas a construção não cede um milímetro. não cai. não desfalece. só nós é que partimos. talvez as peças que ficam, aquelas a que estávamos ligados, percam uma parte de si mesmos pois as peças que se interligam carecem das partes das outras para serem. somos os lugares nos lugares dos outros. somos as terras nas terras dos outros. somos individualidade porque nos reconhecemos no colectivo. somos quem somos em parte por causa de quem nos faz ser. e por isso há muitas pequenas partes das peças que saltam da estrutura quando um de nós parte. e a triste verdade, é que todos partimos, eventualmente. 

passamos a compreender a finitude a que estamos condenados quando perdemos alguém que nos é mais significativo. aí, por vezes, agarramos a intenção de dar mais valor à vida. mais importância às restantes peças que nos agarram, a que nos agarramos... mas logo a vida volta a acelerar, volta a correr e de novo...de novo, voltamos a esquecer que, afinal, tudo terminará em breve.

depois é o corpo que nos volta a recordar, que nos revela o segredo...as dores que começam a assolar o acordar, a pele que se pinta de tempo e se enruga de medo, o corpo que se estende na dimensão das coisas lentas e aumenta ou diminui sem pedir licença, a velocidade que reduz todas as intenções de todos os movimentos, embora estejamos com o pé sempre no acelerador... a vida começa a ficar mais lenta. o prenúncio de que tudo vai, em breve, cessar. e metemos a cabeça dentro das areias que resvalam dos nossos pés e fingimos que não entendemos e voltamos a iludir a ilusão procurando todas as razões para nos sentirmos mais jovens, de novo. enganamos o corpo. mentimos por dentro, para dentro, seduzimos as peças interligadas e fingimos, teatralizamos, levantamos o pano da pantomima. pintamos os lábios e os cabelos e dançamos até de madrugada para esquecer as linhas que a pele insiste em esculpir nas mãos, no peito, no sorriso mais tímido da face. 

passamos a vida a fugir da morte e a morte passa a vida a nosso lado. a soprar palavras meigas, ou brutas, aos nossos ouvidos no auge da noite cerrada. a cerrar os punhos quando iludimos a vida. quando desperdiçamos tempo. quando não nos deixamos encantar pelas coisas que nos rodeiam. quando ignoramos as peças a que estamos ligados e que nos fazem ser quem somos. ela fecha os olhos e sofre com o nosso sofrimento. é gentil e conselheira no frio da noite. faz-nos recordar o motivo de estarmos por aqui. uma planta no jardim. uma árvore na floresta. uma peça do puzzle. uma realidade no plano imaginado de um qualquer autor. uma parte limitada da existência. uma partícula de pó. a morte também é cruel, nunca nos abandona. suspende-nos neste fragmento do tempo e limita-nos a vida, ou faz-nos viver demais, ou qualquer coisa de intermédio. 

passamos a vida a correr. 

um dia, muito em breve, tudo cessa de se mover. 

fica só o pó de nós sobre as peças que estavam à nossa volta.  

26/03/2024

são feitas de pus e sangue 

as lágrimas que lavam

as feridas abertas 

no sal da carne apodrecida


o tempo é tão implacável 

como o vento

desfaz as coisas que estão feitas

leva os restos para a lonjura 

    das coisas perdidas

    dos choros esquecidos

    dos corpos abandonados

    dos jardins queimados

    das feridas tristes

    das lágrimas contidas até à exaustão do sangue.


terá de ser suficiente

tudo o que já foi 

até este momento.  


sou feito de pus e de sangue 

estou a apodrecer por dentro 

estou parado no lugar das coisas que se perderam

    levado pelo vento

    esquecido e abandonado na exaustão das cinzas


ateia o fogo. 

    deixa-me 

por fim

    desaparecer. 

25/03/2024

diz-me. 

o que é o abandono.


é este sabor acre que me escorre negro pelo interior da pele

ou

é o aroma negro do alcatrão quente que me calcifica as veias

ou talvez

o peso da sombra da vetusta angústia que exala a infinidade do silêncio do mundo

ou talvez seja apenas 

somente e apenas

o lugar que ficou vazio depois de me teres calado na tua voz. 


talvez haja sempre uma qualquer forma de abandono por dentro das vozes que se calam de nós. 

um silêncio que permanece. 

sempre. 

é abandono. 



08/03/2024

Queria ter podido mostrar-te as cores todas. Talvez tenha faltado uma. Já não fui a tempo. Foi implacável, o vento que levou todas as flores de todas as laranjeiras. Talvez tudo agora seja apenas de uma só cor. A que quiseres. A única que eu não te soube dizer. 

26/02/2024

há uma certeza cada vez mais certa.

tudo é já demasiado incerto.

23/02/2024

EStRaDa

Se olhares em frente

no asfalto

no caminho

só se encontram corpos em sangue


esquartejados

dilacerados

devastados

aniquilados

eviscerados

sem piedade 

no cansaço negro do asfalto

sem poderem voltar a olhar para trás.


Se olhares em frente

é sangue inteiro

o que não vês 

no âmago desta estrada.

21/02/2024

STaRLiGhT

Caiu uma estrela. 
No céu aberto sob o véu negro da noite. 
Em frente do meu olhar. Negro. Caído. 
Não sei bem o que pensar sobre as estrelas que se precipitam no abismo nocturno da incomensurável vastidão celeste. 
O que, verdadeiramente, acontece às estrelas cadentes? 
Morrem? 
Desmaterializam-se? 
Desfazem-se? 
Eclodem? 
Colidem com as sombras das coisas invisíveis? 
Desistem? 
Desencontram-se do lugar onde deveriam ser e por deixarem de se reconhecer, deixam de existir? 

Talvez, no (a)final, sejamos todos estrelas. 
Destas que quedam. 
Das que se precipitam. 
Das que se desencontram. 
Das que colidem com tudo.  
Das que nunca encontram o lugar onde deveriam ser. 
Das que não voltam a brilhar. 

Vi cair uma estrela esta noite.
Diz-me...


Eras tu?

31/01/2024

alivia-me. teu abandono. alivia. ainda fere. o teu silêncio.  ainda fere. creio não poder ser de outra forma ou a forma não teria qualquer sentido. talvez ainda espere. na distância dos gestos deformados. talvez espere. mas esperar sem ficar à espera na espera é esperar sem esperar que a espera seja esperada. talvez. pesa-me. o alivio do teu abandono. pesa-me. a inglória desconsideração do teu silêncio. pesa-me o alivio que reconheço no abandono de mim. alivia-me. compreendo a ausência do significado da forma. talvez ainda fira. talvez. ou alivio-me na certeza de que vou esperar, distante, a continuidade da ferida aberta que é o alivio deste silêncio abandonado na noite.

28/01/2024

Ponho a cafeteira ao lume. Agora resta esperar. Fico, descalço, a tentar compreender o porquê de ser tão frio este mármore. Espero. Creio que estou a respirar mas não posso garantir. Não sei ao certo os movimentos que meu corpo ainda insiste em fazer. Fico, parado, à espera que algum aroma emerja dentro da minha apatia.

Sinto que a pele dos pés grita no silêncio que anuncia o vazio deste lugar. As dores mais fundas não se gritam, só se sabem. Penso em como tudo, de repente, adoeceu. As palavras atropelam-se e desferem golpes fatais sobre as bocas e as (des)esperanças. As mãos trazem veneno nos abraços ludibriosos ( ou ludibriados?) e já nenhuma parte de parte alguma quer ficar para (re)encontrar uma possibilidade que seja de (re)haver um todo. Os olhos trazem a (des)ilusão e o (des)anúncio. Temo que já não queira mais ver. Talvez também tenha chegado o mármore ao meu olhar e eu acabe a morrer de frio por dentro. 

Tenho o corpo descalço e a pele fria. Tenho o olhar cego a aguardar que este lugar fique emerso num aroma que me faça (des)acreditar que podia estar noutra parte de outro (des)lugar. 

Espero. Sorvo o café com os lábios cansados dos gritos que se (des)aconchegam dentro da boca. Compreendo agora a razão do frio que emana do mármore despido sobre meus pés (des)esperançados. 

25/01/2024

ao corpo 

invade

quando menos se espera                                                                                                                                                                                            (deseja)

toda a sua contida dor                                                                                                                                                                                              (miséria) 

em pontos específicos                                                                                                                                                                                               (cardeais) 

nos momentos                                                                                                                                                                                                        (repetidos)

mais inusitados                                                                                                                                                                                                  (deliberados) 

que se prolongam                                                                                                                                                                                                    (sustêm) 

irremediáveis                                                                                                                                                                                                           (abissais) 

até que a voz                                                                                                                                                                                                            (o grito) 

seja tudo                                                                                                                                                                                                               (somente) 

o que é possível                                                                                                                                                                                                          (ainda). 

24/01/2024

O silêncio ficou preso nos novelos atabalhoados de palavras incompletas, engasgadas do lado de dentro da garganta ferida.

Cá fora, só sobram gritos e frases desfeitas.

17/01/2024

Fui lá fora para ouvir. O vento. 

Saber que dizia o vento. Ouvir.

Abracei a tempestade e agarrei a chuva com as mãos fechadas. 

Nunca tive coragem de medir quantas coisas podem caber dentro de uma mão fechada. Nem o que pode ficar. 

Numa mão que se fecha, há grades ou liberdade? 

Vou perguntar ao vento. 

Vou arrancar a verdade à tempestade com meu abraço enferrujado, colérico, infernal. Vou tentar saber o que falta.

Nos caminhos frios da noite, cairam muros e árvores e rochas e lama e flores e carros e rios e almas. Cairam pela noite dentro, pelo vento adentro, no coração da intempérie, sem fé nem amarras nem tempo nem sombras de qualquer possibilidade de salvação. 

Vou escutar o vento. 

Saber porquê. Saber porque partem as coisas, as das mãos fechadas e as que não cabem nas mãos. 

Vou ficar cá fora, pelo vento adentro. Talvez me leve por mim afora

03/01/2024

Mastigo o tempo, engulo as ofensas, sorvo os abandonos. Não serei mais do que o fel e a bílis despojados no lodo do pântano que habita na minha mão direita

01/01/2024

rECoMeÇo

Deitas a cabeça sobre o colo da noite enquanto procuras pelas estrelas. O céu desapareceu. Não restou nada.

Bebes o vinho que a ilha entrançou na minha boca e seguras um cigarro como se fosse um segredo. Inalas a verdade da mentira, guarda-la fundo, bem fundo, onde tudo arde sem morrer.

Entendes agora que o inevitável é não precisar começar de novo